De volta à Década Perdida, por Maria Luiza Falcão Silva

A associação com o mundo do pós 1ª Guerra Mundial e da crise do petróleo dos anos 1970 que levou à década perdida de 1980, é inevitável.

Basquiat

De volta à Década Perdida

por Maria Luiza Falcão Silva

A Inflação nos aterroriza com a possibilidade de revisitarmos a década perdida dos anos 1980. Ela é real, e ameaça a estabilidade da economia mundial, em 2022. O acompanhamento dos movimentos do Federal Reserve Bank (na sigla em inglês, FED, o banco central americano) deixa o mundo em estado de alerta. No passado, a resposta dos Estados Unidos ao aumento dos preços, em escala mundial, provocou turbulências e levou a “décadas perdidas” para grande parte do mundo. Foi assim nos anos 1920, e a partir do final da década dos anos 1970, nos lembra Jamie Martin, em artigo publicado no New York Times, em 28 de abril de 2022. (1)

A primeira vez que o FED – junto com outros grandes bancos centrais – ajudou a desencadear uma recessão global, foi em 1920. No final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o mundo enfrentava uma grave crise inflacionária causada por situações que voltamos a vivenciar hoje:  interrupções nas cadeias de suprimentos globais, atrasos no transporte de mercadorias e políticas monetárias frouxas. Então, como agora, o preço do trigo disparou quando as fontes russas desapareceram dos mercados globais. Da Costa do Ouro à Argentina, alimentos, combustíveis tornaram-se inacessíveis, ao mesmo tempo em que uma pandemia de gripe matou milhões de pessoas. Como os salários não conseguiram acompanhar o aumento do custo de vida, uma onda de revoltas, violências racistas envolvendo multidões e greves em massa eclodiram em todo o mundo. (2)

A causa imediata da inflação foram os impactos da Guerra no comércio, transporte e finanças. A política conjunta de aumento drástico das taxas de juros adotada pelo FED e seguida pelos demais bancos centrais, segurou os preços, mas veio à custa de uma retração significativa da economia mundial. As consequências mais duradouras dessa estagnação ocorreram nas economias mais pobres e não industrializadas, em todos os impérios coloniais da Europa e na América Latina. Quando os preços das commodities caíram, os produtores e exportadores de bens como trigo, açúcar e borracha foram devastados. Os efeitos de longo prazo do crash de 1920-21 sobre essas economias foram semelhantes aos da depressão de 1929 e da recessão dos anos 1980.

Nos anos 1970, o mundo voltou a enfrentar uma inflação que se propagou por todos os países. Na realidade, foi um estagflação global, desencadeada, dessa vez, por choques na oferta de petróleo. O período provocou guerras no Oriente Médio, com conflitos entre países árabes e Israel, além do consequente embate entre os EUA e a recém-criada OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Foram dois, os choques do petróleo, em 1973 e 1979.

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O mundo vivia sob a dominância do dólar americano desde o acordo assinado em Bretton Woods, em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial. O dólar sofreu uma desvalorização que levou ao rompimento do acordo de paridade em relação ao ouro, em 15 de agosto de 1971, sob a decisão unilateral do governo do Presidente Richard Nixon, abalando a estrutura do sistema monetário internacional.

Após os eventos de 1971, a fim de evitar uma perda de posição da moeda americana na hierarquia monetária internacional, o governo Nixon estabeleceu o centro de sua estratégia defensiva: iniciou conversações com a Arábia Saudita – maior exportador de petróleo do mundo – para garantir que os preços internacionais de venda do petróleo permanecessem denominados em dólares, a despeito de seu comportamento nos mercados de câmbio. O petróleo estava no centro da matriz energética das forças armadas e dos transportes em geral, e seus derivados faziam parte, como perdura até hoje, das mais diferentes cadeias produtivas globais.  A grande jogada foi que assim, os Estados Unidos, asseguraram a manutenção da supremacia do dólar na hierarquia monetária e, com tal movimento, acabaram por obrigar os mais diversos países a “precificarem”, em dólares, seus produtos de exportação de modo a viabilizar seu abastecimento de petróleo e seu comércio exterior. (3) Foi assimque surgiram os “petrodólares”.

Dois anos depois, no final de 1973, os países árabes membros da OPEP quadruplicaram o preço do petróleo, no espaço de três meses. Entre 1979 e 1980, ocorreu mais uma crise. Com a queda da oferta, os preços do barril do petróleo no mercado internacional subiram, com graves repercussões sobre os demais preços e se espalhando por toda a economia mundial, como hoje volta a ocorrer. Os “petrodólares” alimentaram as dívidas de inúmeros países e, de forma aguda, dos países menos desenvolvidos.

No governo de Jimmy Carter, assume como CEO do Federal Reserve Bank, entre 1979 e 1987, Paul Volcker, presidente de banco central mais poderoso que o mundo já viu. A taxa de inflação média anual no país era de 9%. Volcker defendia que a única maneira de deter a inflação era lançar a economia em uma recessão profunda e acentuada.  De fato, essas políticas colocaram a economia americana em uma profunda recessão que durou até 1983. As políticas de Volcker empurraram a taxa de juros de curto prazo para quase 20% e elevaram o desemprego para 11%, em 1981. Foram os anos em que o movimento dos trabalhadores industriais foi derrotado nos Estados Unidos e no Reino Unido, e as crises das dívidas externas do Terceiro Mundo explodiram.

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Nos países em desenvolvimento, as crises das dívidas que se seguiram ao  choque Volcker foram traumáticas e acompanhadas por  crises financeiras. Houve uma onda de inadimplências entre os países que haviam tomado empréstimos ​​nos mercados internacionais, começando com o México, em 1982, e depois se espalhando por toda a América Latina, África e além, levando ao colapso do PIB, aumento do desemprego e níveis vertiginosos de pobreza em todos eles. A recuperação foi lenta e desigual ao longo da década de 1980, a “década perdida”.

 A ideia aplicada por Volcker, na economia americana, foi a resposta monetarista à inflação. O argumento desenvolvia-se da seguinte forma:  sendo a inflação um “fenômeno monetário”, agindo sobre a oferta monetária, mais precisamente sobre as reservas bancárias, de olho sempre nas metas oficializadas (inclusive junto ao Congresso) de expansão dos meios de pagamentos, operacionalmente o Banco Central  deixaria de atuar diretamente sobre a taxa de juros, mas os juros subiriam. Emissão de títulos públicos contribuíam para retirar dinheiro de circulação e controlar a inflação. Tornava-se mais difícil tomar empréstimos para investimentos ou consumo e pagar dívidas existentes, e mais lucrativo economizar dinheiro. Esse processo, de acordo com a visão monetarista, reduziria a demanda agregada e levaria à queda dos níveis de preços e aumento do desemprego.   “Na economia como um todo”, disse Volcker em 1981, “o trabalho é responsável pela maior parte de todos os custos, e esses custos crescentes, por sua vez, mantêm o ímpeto do processo inflacionário”. (4) O ambiente de altas taxas de juros e alto desemprego moderaria novas demandas salariais e pressionaria os sindicatos a concordar com concessões porque os trabalhadores temeriam o desemprego e não buscariam mais aumentos para compensar a inflação esperada.

A politica de Volcker freiou o descontrole dos preços nos Estados Unidos, em 1981, mas   o custo de pagar empréstimos denominados em dólares, na América Latina e na África, disparou, ao tempo em que a contração global reduziu os preços recebidos por suas exportações de commodities,  principal fonte de moeda estrangeira desses países.

As mudanças de longo alcance que a economia mundial sofreu por volta de 1920 e, novamente, a partir de 1979, levaram a uma deterioração gradual nos termos de troca que, a longo prazo, se refletiu nos preços reais das commodities. A agricultura tropical teve o pior desempenho, enquanto os minerais tiveram o melhor.

No século XXI, após a sucessão de eventos desencadeados pela crise financeira de 2008, o mundo enfrentou uma crise sanitária, ainda não debelada, provocada pela Covid-19 e a eclosão da guerra no Leste Europeu entre EUA/OTAN/Ucrânia e a Rússia, deixando um rastro de desabastecimento, de aprofundamento das desigualdades sociais, de fome, de estagflação.

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A associação com o mundo do pós Primeira Guerra Mundial e da crise do petróleo dos anos 1970 que levou à década perdida de 1980, é inevitável. Temos todos os ingredientes presentes: o aumento e a persistência da inflação, em escala mundial, levando ao aperto da política monetária em diversos países, por meio de elevação de juros e baixo crescimento. As perspectivas de um desacelerar da China, motor de crescimento importante da economia mundial no século XXI, por conta dos rígidos lockdowns associados com sua política de Covid Zero; a guerra  no Leste Europeu, interrompendo o comércio internacional e provocando escassez de oferta e disparada de preços de commodities e de inúmeras matérias primas – trigo, milho, fertilizantes, sementes; choques de petróleo – mais uma vez o petróleo porque o mundo não caminhou o necessário na direção das energias renováveis e menos emissoras de gases de efeito estufa; a elevação dos preços dos alimentos, levando a crises alimentares, insegurança alimentar e fome, de forma mais pronunciada em países mais pobres; e a degradação ambiental que se soma a eventos climáticos extremos, penalizando a produção agropecuária; são sinais que nos levam a descortinar uma nova década traumática para os anos 2020.

O remédio ortodoxo, recomendado para conter a estagflação e seus efeitos nefastos, continuam os mesmos que prevaleciam nos anos 1970,  tempo em que reinou o controverso presidente do FED,  Paul Volcker. Os Estados Unidos da América do Norte, agora sob o comando de Joe Biden, que suportam e lucram com a guerra, que se apropriam de reservas internacionais alheias colocando em risco a confiança no sistema financeiro internacional, que impedem o livre circular de mercadorias estratégicas e se beneficiam da supremacia de sua moeda na hierarquia monetária mundial, acenam com o aumento dos juros como medida suprema de controle do crescimento vertiginoso dos preços.

Os EUA enfrentam o maior nível de inflação desde 1981, quatro décadas atrás, mas a economia não está estagnada, muito pelo contrário está próxima do pleno emprego. A inflação é tanto de custo quanto de demanda. A taxa de juros americana começa a ser empurrada de forma agressiva, para cima, pelo FED. O mundo estremece porque a história registra, ao longo do século passado, os efeitos imprevisíveis associados com a elevação dos juros pela maior economia do mundo: em geral são longos anos de baixo crescimento para o resto do mundo e com consequências nefastas para as economias do Sul Global. Estaríamos no limiar de uma nova década perdida? Será uma catástrofe com contornos de crise humanitária.

Referências:

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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