Colégio Eleitoral nos EUA: um sistema obsoleto que resiste, por Tatiana Teixeira

Por que os estadunidenses preservam sistema tão complexo, apesar de todas as mudanças sociais e demográficas ocorridas nas últimas décadas?

(Arquivo) #NãoÉMeuPresidente: Protesto em NYC, em 9 nov. 2016, contra a eleição de Trump, que perdeu no voto popular para Hillary Clinton, mas venceu no Colégio Eleitoral (Crédito: mathiaswask/Flickr)

Colégio Eleitoral nos EUA: um sistema obsoleto que resiste à mudança dos tempos e da sociedade

por Tatiana Teixeira* [Informe OPEU]

A cada quatro anos, ressurge nos Estados Unidos o debate sobre a obsolescência, eficácia e validade de um sistema eleitoral que elege o presidente do país de forma indireta, por meio de um Colégio Eleitoral (CE). A depender dos resultados do pleito, a discussão ganha renovado e prolongado ímpeto, sem nunca chegar, no entanto, a uma mudança real, esvaindo-se e voltando a perder fôlego, até o próximo ciclo eleitoral.

Em alguns momentos, esse debate é mais intenso. Em 2020, a candidata democrata, a ex-secretária de Estado e senadora Hillary Clinton, superou o rival Donald Trump em mais de três milhões de votos, mas perdeu no Colégio Eleitoral, por 227 votos contra 304. Em 2000, a acirrada e polêmica disputa entre o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush deixou o país em suspenso até a decisão da Suprema Corte sobre os votos do estado da Flórida. O então vice do presidente Bill Clinton venceu no voto popular por cerca de 540 mil votos, mas foi derrotado no Colégio Eleitoral, por 266 contra 271 – um dos resultados mais apertados da história do país. Nesta mesma extensa linha do tempo, há outros três registros de situação similar: com Andrew Jackson, derrotado por John Quincy Adams, em 1824, apesar de ter mais votos; com Samuel Tilden, que perdeu para Rutherford B. Hayes, em 1876; e com Grover Cleveland, vencido por Benjamin Harrison, em 1888.

Se é verdade, neste sistema de escolha indireta do presidente, que o eleito pode não ser aquele diretamente “escolhido” pelo povo, conforme o princípio democrático de “uma pessoa, um voto”, por que os estadunidenses preservam um sistema tão complexo, apesar de todas as mudanças sociais e demográficas ocorridas nas últimas décadas? Por que o Colégio Eleitoral persiste, apesar de a maioria da população se declarar a favor de sua reforma, como mostram diferentes pesquisas? Em sondagem publicada em setembro de 2023 pelo Pew Research Center, por exemplo, uma maioria dos eleitores americanos (65%) “afirma que a maneira pela qual o presidente é eleito deveria ser mudada, de modo que o ganhador do voto popular em todo o país ganhasse a Presidência”. Na imagem abaixo, uma linha do tempo desde 2000 mostra que os adeptos da mudança são, consistentemente, em maior percentual do que aqueles que preferem manter o status quo.

A line chart showing that, by about 2 to 1, Americans want popular vote, not Electoral College, to decide who is president.
Maioria quer voto popular nos EUA (Fonte: Pew Research Center)

Um elemento complicador é o fato de os estados serem responsáveis pelas normas e pelos detalhes desse processo. Entre outras tarefas, cabe aos estados estabelecerem como serão o sistema de votação e as regras para o registro dos “Eleitores”; regular as diferentes modalidades de votos (se presencial, se pelo correio); decidir como será a cédula, como os votos serão contados, e como será a certificação dos votos. São praticamente 50 eleições diferentes acontecendo em um mesmo país, não necessariamente ao mesmo tempo.

É pela mediação desse mecanismo que presidente(a) e vice-presidente(a) são eleitos(as) nos Estados Unidos. O Colégio Eleitoral é composto de 538 “Eleitores”, o que inclui o número de representantes da Câmara (de distribuição variável, conforme a população registrada nos estados pelo censo nacional realizado a cada dez anos) e de senadores (sempre dois) de cada um dos 50 estados, mais três do Distrito de Colúmbia. Salvo nos casos de Maine e Nebraska, o que ainda vigora é o winner-take-all, ou seja, quem tiver a maioria dos votos, ganha todos os “Eleitores”. Para vencer no CE, é necessário obter a supermaioria de 270.

O Colégio Eleitoral aparece no artigo II, na seção 1, da Constituição, que teve seu texto aprovado em 17 de setembro de 1787 na Convenção Constitucional da Filadélfia, e ratificado, em 21 de junho de 1788. Em relação ao CE, duas emendas foram aprovadas desde então: a 12ª, proposta em 1803 e ratificada em 1804, que estabelece voto separado para presidente e vice; e a 23ª, ratificada em 1961, que concedeu os três votos a D.C.. Ou seja: do primeiro presidente do país, George Washington (1789-1797), ao atual, Joe Biden (2021-), são as mesmas regras, desde os séculos XVIII e XIX, com pouquíssimas mudanças (e todas de procedimento, sem implicar uma reforma e/ou atualização real do sistema), que elegem o(a) presidente dos Estados Unidos. Esta é uma das principais críticas ao CE.

Estados Unidos: uma história

Como explica o professor Vitor Izecksohn (UFRJ) no livro Estados Unidos: uma história (Editora Contexto, 2021, à página 167), “a Constituição federal foi ratificada para que o governo central dispusesse de poder suficiente para conduzir as relações internacionais e fortalecer o poder da elite política nacional […] com o objetivo de manter a unidade entre um grupo muito diverso de comunidades políticas”. Tratou-se, assim, como argumentam os defensores do CE, de buscar superar as acentuadas divergências entre federalistas e antifederalistas.

Três alternativas foram apresentadas para a escolha daquele que seria o chefe do Executivo: eleição pelo voto popular, votação pelo Congresso, ou votação pelas legislaturas estaduais. Cada uma delas teve sua cota de apoiadores e de críticos, em defesa, quase sempre, de seus interesses particulares.

A primeira delas (eleição direta pelo voto popular) foi de pronto rejeitada. Isso revela, de acordo com o professor Alexander Keyssar (Harvard Kennedy School), em Why Do We Still Have the Electoral College? (Harvard University Press, 2020), que o CE não foi uma ideia em oposição à eleição popular do presidente, porque esta proposta nunca esteve, de verdade, no horizonte de possibilidades dos Framers. O caráter exclusivista está lá, desde a origem. Entre justificativas e considerações feitas contra a eleição direta, estavam as baixas taxas de alfabetização (algo que, alegadamente, afetaria o discernimento do eleitor comum); e a dificuldade de um candidato e de sua agenda serem conhecidos em todas as regiões de um país tão extenso, em uma época de escassos recursos tecnológicos, de ausência de veículos de comunicação de alcance nacional e de precariedade da rede de transportes nos níveis locais e federal (algo que poderia beneficiar os candidatos de áreas mais densamente povoadas, como os do Sul, e tenderia a um voto paroquialista).

A escolha do presidente por parte do Congresso era vista com preocupação por alguns, temendo que dividisse e paralisasse os trabalhos da Casa, além de estimular a troca de favores, o excesso de barganha política, ou ser suscetível à influência estrangeira. No caso da terceira opção, a de eleição pelo voto das legislaturas estaduais, o risco alegado era de desgaste do poder federal, pois o presidente poderia beneficiar um estado em detrimento do outro.

Em meio aos embates estendidos até o último minuto da Convenção Constitucional, a narrativa que prevalece até os dias atuais e que compõe parte das justificativas para se manter tudo como está é a de que o pragmatismo venceu e trouxe uma solução. Chegou-se não à melhor fórmula, mas ao desfecho possível naquele contexto histórico e político específico. Quando se olha para 200, 300 anos atrás, há sentido nessa explicação, mas ela parece insustentável como argumento em pleno século XXI.

Why Do We Still Have the Electoral College? (Edição em áudio): Alexander  Keyssar, Stephen Bowlby, Blackstone Publishing: Amazon.com.br: Livros

Assim, por pressão dos delegados do Sul, que temiam que a eleição popular colocasse seus estados em desvantagem, o voto seria baseado na densidade populacional, e não no número de eleitores. Junto com isso, os mesmos estados conseguiram aprovar, para a composição dos votos do CE, o Compromisso dos 3/5 adotado durante a escravidão: cada escravo desses estados “contava” como 3/5 de uma “pessoa”. Este ponto está na base da tese de Keyssar, no livro supracitado (capa à esq.) considerado hoje a principal obra sobre o tema. Segundo ele, a escravidão se encontra na origem da formação do sistema eleitoral americano. O autor observa que o número de votos no CE dado a cada estado continua sendo a representação de cada estado em ambas as Casas do Congresso estadunidense. Este desenho constitucional, analisa Keyssar, deu aos brancos do Sul uma influência desproporcional na escolha dos presidentes.

Para os que defendem o Colégio Eleitoral, tratou-se, conforme descrito, do caminho possível diante de uma parte (o sul) que era contra o voto de escravos, e de outra (o norte), favorável a leis eleitorais menos restritivas. O CE espelhava a distribuição do poder no Congresso. Como seus “eleitores” seriam determinados pelas assembleias estaduais, com independência dos governos no mesmo nível subnacional, e se dispersariam após a eleição, não ameaçariam a independência do Executivo. Além de resguardar o Executivo em sua relação com estados e Congresso, o CE teria um papel insubstituível no equilíbrio da federação e combateria a tirania de um e outro extremo da sociedade, assim como as tais “facções políticas” e o paroquialismo.

Ainda no entendimento dos Pais Fundadores, o voto dos “eleitores” (no inglês, “electors”) também seria “mais bem informado” do que o dos “votantes” (ou “voters”, no inglês). Extinguir o CE seria, hoje, na visão de seus partidários, uma tentativa de ataque aos direitos políticos dos brancos, buscando dar voz apenas às minorias. Séculos se passaram, e a questão racial permanece como ponto nevrálgico da política e da sociedade estadunidenses.

Mexer nesta mais do que centenária instituição da política estadunidense não é tarefa fácil. Para se aprovar uma emenda constitucional, são necessários 2/3 do Congresso, somados à aquiescência de 3/4 dos estados, ou à convocação de uma convenção por parte de 2/3 dos estados. Uma outra opção (polêmica) é abolir o CE e adotar o voto popular, mas isso ainda encontra forte resistência dos partidos.

Saiba mais neste episódio do programa Diálogos INEU, apresentado pela profª Neusa Maria Bojikian

Para seus críticos, o CE é uma anomalia histórica e de baixa legitimidade. Não incorpora cidadãos dos territórios estadunidenses e acentua a desigualdade da representação, ao privilegiar estados maiores e menores, prejudicando os estados médios, assim como os mais populosos. Já “favorecidos” com sua super-representação no Senado, onde cada estado tem o mesmo número de senadores, independentemente de sua população, e com mais votos eleitorais per capita no CE, os estados menores estariam sendo “duplamente beneficiados”. É o caso, por exemplo, dos estados rurais, que têm sido redutos republicanos nas eleições contemporâneas. Inversamente, as grandes cidades e seus estados mais densamente povoados, que costumam optar pelos democratas, ficariam em desvantagem.

Outro aspecto característico do sistema eleitoral estadunidense, o winner-take-all, também seria um desestímulo à participação do povo, que já tem de enfrentar dificuldades aparentemente triviais que fazem do ato (não obrigatório) de votar uma maratona de obstáculos – entre eles, o fato de a eleição acontecer em um dia útil de trabalho (e não em um domingo, como no Brasil), haver um número reduzido de seções eleitorais em determinadas localidades, ou exigência de documentos que impediriam o voto de determinadas minorias, por exemplo. Por conta disso, as campanhas se concentram nos estados mais populosos (com maior número de eleitores) e nos swing states, ou estados-pêndulo, onde é maior a chance de alternância no voto (se democrata, se republicano).

Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). Contato: [email protected].

** Este texto é uma versão resumida do capítulo “Colégio Eleitoral: o arcaísmo não acidental do sistema eleitoral dos Estados Unidos”, publicado no livro De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas, organizado por Sebastião C. Velasco e Cruz e Neusa Maria P. Bojikian (Editora Unesp/INCT-INEU, 2021). Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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1 Comentário

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  1. Quem reforma o Sistema é o próprio Sistema e o Sistema (elefantes e burros) não querem mudar zorra nenhuma.

    Os deputados querem manter suas bases no sistema atual.

    No fim é um matuto do Arkansas ou um rico de NY que quer deixar quieto.

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