Esta é uma história real
por Felipe Bueno
O cinema produzido nos Estados Unidos tem sido um dos maiores e mais bem sucedidos exercícios de soft power desde meados do século passado e, na era do streaming e das redes sociais, continua demonstrando sua relevância.
Porém, o contraponto de tantas histórias sobre sua própria História é a abertura para dentro de uma vasta quantidade de janelas. Se o cinema dos Estados Unidos existe para influenciar e dominar mentalidades, ele também permite que vejamos a criatura internamente, numa versão contemporânea e invertida do Cavalo de Troia – uma cortesia de um soft power mais antigo e duradouro, a literatura grega.
Fargo, série cuja quinta e até agora última temporada foi exibida pela primeira vez na virada de 2023 para 2024, é uma dessas janelas, diria escancaradas, que permitem observar inúmeras camadas de explicações sobre o que são os Estados Unidos.
A origem do trabalho assinado por Noah Hawley é o filme de mesmo nome perpetrado em 1996 pelos irmãos Ethan e Joel Coen, uma obra prima do sarcasmo e do pessimismo que aqui recebeu o autoexplicativo título de Uma Comédia de Erros. Em um dia como outro qualquer, vivido por pessoas ordinárias, algo que sai errado desencadeia enganos, decisões erradas, violência e tragédia.
Entre 1996 e 2014, quando é apresentada a primeira temporada da série, o país ficou mais difícil de governar, assim como o mundo virou um lugar mais difícil de habitar. O sonho liberal já havia se tornado um pesadelo e o fim da História anunciado por Francis Fukuyama estava revogado. Vale a pena observar: em ambas as datas, os Estados Unidos eram liderados por presidentes democratas que, ocupados com outras tarefas, não se preocuparam ou nem perceberam que a América profunda estava preparando sua passagem dos subterrâneos para a superfície.
Cada temporada se passa em um período da História. Respectivamente os anos de 2016, 1979, 2010, 1950 e 2019. São unidades independentes, mas com alguns entrelaçamentos sutis. Estão lá as imigrações, a liberdade, a independência, o racismo, as conquistas civis, o american way of life, o ultra capitalismo, os cidadãos armados, a violência extrema, a religião e a política. Há inúmeros momentos antológicos, como os primeiros vinte minutos da quarta temporada, que poderiam ser ministrados em qualquer boa aula de História.
Tem também a autoridade policial, eterno fetiche das produções audiovisuais e das mentalidades norte-americanas. Aqui, a série expõe, à cada temporada, exemplos do que poderiam ser estereótipos dos representantes da lei e da ordem, ao mesmo tempo idealistas de si mesmos e fantoches controlados por mãos maiores e mais poderosas, numa mistura impossível de conciliar entre um modelo ideal e a crua realidade.
Como o país ficou mais complexo e difícil, pode-se dizer que, à medida que segue seu rumo, a série se desloca um pouco do filme original porque a comicidade derivada da estupidez humana deixa de produzir aquele riso nervoso do espectador, abrindo espaço para a indignação e a revolta – claro que esses são todos valores subjetivos.
Mas chega, não darei spoilers.
Ah, faltou falar o óbvio: é também uma obra do mais alto nível em termos de cinema: direção, edição, fotografia, roteiro, atuações e o que mais você pensar.
Mas por que estou escrevendo sobre essa série mesmo? Ah, claro! É porque me pareceu muito difícil encontrar em muitos desses norte-americanos retratados na ficção uma empatia com as gargalhadas ou a presença em redes sociais de Kamala Harris. Pessoas assim, alienadas, obtusas e/ou egoístas, podem ter poucas qualidades, mas têm direito a voto. E novembro está chegando. Talvez lá nos lembraremos de outra obra de arte do cinema, outra maneira de contar a História dos Estados Unidos: a sequência final de Dogville (2003), de Lars Von Trier.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.