Grande vitória de Trump acelera avanço autocrático no mundo
por Marcelo Siano Lima
Donald Trump está (re)eleito Presidente dos Estados Unidos, com “pompa e circunstância”. Ele obteve não apenas a maioria dos delegados votantes no Colégio Eleitoral, mas também milhões de votos populares à frente de sua oponente, Kamala Harris. Trump é um ator político que divide a emoção e o voto do povo dos Estados Unidos. Seu estilo agressivo, composto por um arsenal de mentiras, de produção e difusão de fake news, de incitação e legitimação do ódio; sua gramática populista e arrogante, aliada ao competente uso das redes sociais e à retórica do medo; a violência nos ataques aos setores sociais e aos países por ele definidos como “inimigos”, todo esse conjunto se tornou um divisor de águas na política estadunidense, com reflexos em nível mundial. O eleitorado do país decidiu, por questões ideológicas e pragmáticas, retornar com Trump ao comando da Casa Branca em 2025.
Ganha impulso o que o cientista político Pedro Costa Júnior chama de “Contra-revolução liberal extremista”, uma era de privatizações dos serviços públicos sociais, como educação, saúde e previdência, sempre reafirmando a narrativa farsesca da eficiência e da racionalização, da prevalência do setor privado sobre o público, sepultando as últimas estruturas do Estado organizado na forma do racionalismo weberiano e de suas políticas de bem-estar social, originárias do século 19. Para Costa Júnior, a “contra-revolução liberal” dos anos 1980, conduzida pelo então Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e pela então Primeira-Ministra britânica, Margareth Thatcher, reformulou o paradigma de Estado que ganhou força após o fim da Segunda Guerra, com uma feroz política de privatizações em massa de todo o patrimônio público, de cancelamento de direitos sociais, de economia globalizada e de retração do papel estatal na vida dos diversos países. Essa “contra-revolução” dos anos 1980 se expandiu para além das fronteiras dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, imposta de forma imperial às nações de todo o globo, especialmente no hemisfério ocidental. Ganhava impulso avassalador a era do neoliberalismo, a “nova razão do mundo”, como definiram Pierre Dardot e Christian Laval em sua obra publicada na França em 2009 – “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, lançada no Brasil pela editora Boitempo em 2016.
Trump, neste ano, com notório sentido de vingança restauradora, derrotou quem o derrotara em 2020, o Partido Democrata, que teve como candidata a atual Vice-Presidenta, Kamala Harris. Ela sucedeu o candidato natural do partido, o atual Presidente Joe Biden. Trump disputou e venceu as eleições se valendo da leniência e da conivência da justiça dos Estados Unidos, que permitiu a candidatura de uma pessoa notadamente envolvida em todas as articulações para um levante popular que revertesse sua derrota nas urnas, em 2020, e que responde a processos que podem levar à sua condenação pelas instâncias judiciais do país. Uma pessoa que se lançou na esfera pública da política atacando as bases da democracia liberal, manipulando as emoções conforme as claras regras do mais latente populismo extremista, com evidentes e preocupantes impulsos que despertaram medo, por evocarem um conjunto de práticas de matriz autocrática, própria dos regimes fascistas derrotados em 1945.
Pelo conjunto de suas ideias e de seus atos, Trump e sua farândola trazem enormes preocupações quanto ao futuro da democracia liberal, especialmente pelo fato de haver sido a opção de escolha da maioria absoluta do eleitorado dos Estados Unidos. Estamos assistindo à reentrada em cena de um modelo de governo cujo ideário é autocrático, bastante similar aos dos regimes fascistas das décadas de 1920 e de 1930. Estes, como Trump, galgaram o poder através do voto popular e da leniência das instituições republicanas, que logo subordinaram, subvertendo toda a ordem institucional no contexto de uma democracia liberal.
O levante de 2021, arquitetado e incentivado por Trump – que não admitia a derrota eleitoral –, culminou com a invasão do Capitólio no dia de reunião do Colégio Eleitoral que elegeu Joe Biden. Trump, como um soberano tomado pela loucura na realidade paralela em que habitava, desfilou pela praça nas proximidades do Capitólio, acompanhado do Chefe do Estado das Forças Armadas, como quisesse demonstrar, a exemplo dos imperadores de Roma, que a espada lhe respaldara as ações, algo logo negado pelo oficial que ao seu lado caminhou. Esse levante fracassado tinha claras semelhanças com os clássicos processos de sedição, de ruptura institucional através de Golpes de Estado, algo vivido no Brasil nos meses finais de 2022 e nos oito primeiros dias de janeiro de 2023.
Trump, processado, mas ainda impune quase quatro anos depois de todos os fracassados eventos, disputou e venceu as eleições, com o mesmo discurso que o projetou como um meteoro na política local e planetária, em 2016, só que agora alicerçado sobre um conjunto de agendas elaboradas pela Fundação Heritage, um ícone do pensamento reacionário, o “Projeto 2025”.
Esse projeto é um conjunto de propostas da extrema-direita mais reacionária, voltadas para remodelar o governo do país, consolidando o domínio do Presidente da República, que governará com poderes similares aos desenhados pelo filósofo e jurista alemão Carl Schimitt, para quem o “soberano decide sobre o estado de exceção”, abertura de sua obra clássica, “Teologia Política”, publicada originalmente em 1922. No “Projeto 2025”, o Presidente e seus aliados, dentro e fora do Partido Republicano, irão ocupar os cargos principais do aparato de Estado, com pessoas ligadas direta e organicamente às suas estruturas e interesses. Haverá uma subordinação do aparato de Estado ao soberano, ao Presidente, que governará seguindo os ditames de Schmitt, blindado contra os controles das instituições de que deseja se apossar e submeter à sua vontade. Diversos especialistas classificam o “Projeto 2025” como “um plano autoritário e nacionalista cristão para transformar os Estados Unidos em uma autocracia. Ele mina o estado de direito, a separação de poderes, a separação entre igreja e Estado e as liberdades civis.” Para concretizá-lo, Trump contará com maioria folgada nas duas Casas do Congresso, além da simpatia da maioria extremista dos juízes e juízas que integram a Suprema Corte.
Está montado o enredo da virada de chave dos Estados Unidos para um modelo de Estado próximo ao que Viktor Orbán implantou na Hungria ao longo da segunda década deste século: um regime autocrático, iliberal, que sabota a Democracia e a Constituição, e isso com o conhecimento e consentimento da maioria da população que, para tanto, o elegeu. Nem todo o conjunto do eleitorado de Trump comunga com seu pensamento autocrático, mas o vê como uma solução rápida para a reversão de uma realidade adversa vivida por cada pessoa de forma dramática. Aceitam a autocracia, como na Itália fascista e na Alemanha nazista, em troca de uma saída das suas realidades opressoras, de sua redenção enquanto membros de uma sociedade em crise. Não se importam com a perda de direitos, desde que sejam atendidos em suas aspirações mais elementares de sobrevivência e de reconhecimento. As narrativas populistas da extrema-direita radical sabem catalisar esses sentimentos, canalizando-os para o alcance de seus objetivos. O populismo radical da extrema-direita projeta esperança, com uma gramática rasa, porém edulcorada com símbolos capazes de garantir a ilusão e a mobilização das massas. No tempo presente, as redes sociais e as plataformas digitais funcionam como elementos prioritários para o sucesso eleitoral e para a garantia de apoiamento uma vez alçado ao poder o projeto extremista. Trump, como é notório, tem pleno conhecimento do poder desses elementos, que opera com grande competência.
Uma das características de Trump é jamais furtar-se de revelar a extensão daquilo que pretende fazer no governo. Durante a campanha, disse claramente que não governará, no segundo mandato, com as inibições que teve no primeiro (2017-2021), que colocará apenas pessoas fiéis a ele e aos seus objetivos políticos em todos os cargos de confiança do aparato de Estado, e que perseguirá seus adversários políticos, para ficarmos em alguns exemplos do modelo autocrático que, a partir de janeiro de 2025, guiará os rumos daquela que ainda é a principal economia do hemisfério ocidental, e cujos interesses lhe fazem interferir diretamente na dinâmica histórica de diversas nações, atendendo apenas aos seus objetivos geopolíticos.
Durante a campanha, Kamala Harris o classificou como fascista, algo que, pelos resultados eleitorais de 5 de novembro, não surtiu o menor efeito prático no sentido de afastar o eleitorado da candidatura republicana. Ao contrário. Trump seguiu alardeando impunemente o seu projeto autocrático, encantando as massas, sem que qualquer autoridade pública instaurasse algum tipo de procedimento investigativo sobre o prenúncio do crime que deseja cometer. Os objetivos e as diretrizes do “Projeto 2025” chocam-se frontalmente com a Constituição dos Estados Unidos e com suas leis, afrontam a democracia liberal e suas instituições, mas isso foi solenemente ignorado pelas autoridades competentes. Mais uma vez, de forma acintosa, Trump se vale da impunidade e do apoio das massas e do grande capital para manter-se à margem da lei, contrariando todos os princípios elementares que devem sustentar a democracia liberal e a República.
Sua impunidade, ao menos na prática de crimes contra o Estado, é notória. Nada foi feito, como visto, para puni-lo no caso de sua participação nos atos sediciosos de 2020 e 2021. Continua, quase quatro anos depois, na condição de investigado, tão somente. Parece surreal, mas não é, principalmente em se tratando dos Estados Unidos e da peculiar forma de organização política de suas instituições, bem como da pressão organizada dos grupos econômicos. A decantada democracia do país é, desde há tempos, mais um produto de sua competente indústria cultural, uma miragem que se decompõe a uma mera exposição à história em sua longa duração. Os Estados Unidos são governados por uma plutocracia, que despreza a maioria da população, afastada de todo e qualquer tipo de decisão importante, submetida, pela força, a ocupar um lugar de subordinação na organização da estrutura social do país.
A Constituição dos Estados Unidos, elaborada no final do século 18, criou um sistema eleitoral que impede a prevalência da vontade da maioria – uma pessoa, um voto –, que precisa ser contida. Vem daí a instituição do Colégio Eleitoral, com delegados representantes dos 50 Estados, instância que elege, de fato, o mandatário do país. Nesse sentido, os Estados Unidos nasceram e se sustentam como uma democracia manca, excludente, contendora da soberana vontade popular, jamais receptiva a resultados que fujam do bem planejado plano de funcionamento das estruturas políticas do país traçado por suas elites, especialmente após os traumas da Guerra Civil, entre 1861 e 1865.
A (re)eleição de Trump tem o poder de introduzir, em todo o cenário político, elementos altamente mortais aos fundamentos da democracia liberal e ao conjunto de direitos e garantias fundamentais que foram sendo erigidos ao longo dos séculos, fruto de intensas lutas dos diversos setores sociais. Ela ocorre em uma quadra histórica de agravamento da permanente crise do capitalismo, agora em suas feições neoliberais, com movimentos que se irradiam por todo o hemisfério ocidental. Isso explica, e muito, o grande apoio popular do candidato republicano e de sua agenda autocrática.
No processo de ascensão ao controle do poder político, os grupos autocráticos sempre questionam os princípios democráticos, identificados como uma moléstia a ser extirpada do organismo social, por serem a projeção do mal que consome os corpos. A redenção dessa moléstia será o seu cancelamento, com a consequente substituição por governos e regimes de viés autocrático, que buscam legitimar-se junto ao conjunto da sociedade valendo-se de um populismo pornográfico e de todos os meios para a prevalência de seus projetos e narrativas, especialmente, no tempo presente, das redes sociais e de toda a sua gramática, bem como da aliança com seus proprietários, alçados à condição de super ricos em um momento no qual a informação, sua produção e difusão, se transformaram em mercadoria das mais valorizadas. Não por acaso, o empresário Elon Musk se dedicou de forma tão decisiva à vitória de Trump nas eleições deste ano.
Todos e todas sabemos que a (re)eleição de Trump gerará consequências que irão ser sentidas para muito além das fronteiras estadunidenses. Nessas três décadas do século 21, Donald Trump se impôs como o grande estimulador do extremismo radical de direita, contido desde os fins da Segunda Guerra, em 1945, mas jamais extirpado, haja vista que uma ideologia e uma mentalidade têm as características próprias da imortalidade.
Com Trump, esse extremismo saiu das catacumbas e rompeu o silenciamento contido ao qual estava aferrado, se expôs e passou a disputar, no contexto das democracias liberais, o espaço e as agendas públicas, cuja subordinação e controle por completo se inclui como sua prioridade absoluta. Isso é fundamental para eles, em razão do desejo inconfessável de autocratização das sociedades, do cancelamento e banimento das dissidências e diferenças, do controle dos corpos e da imposição de um ideário autoritário.
É esse ideário que dá visibilidade e legitimidade a todo um conjunto de arquétipos reacionários difusos, unificados a partir do empoderamento propiciado pela competente forma com que travam a luta pela conquista do poder, lhes autorizando as manifestações radicalizadas e a permissividade quanto ao ódio e à exposição dos preconceitos de toda a ordem em suas narrativas e em seus atos. Os extremistas de direita vêm dando mostras incontestáveis de que sabem, como ninguém, operar toda essa engenharia de forma exitosa.
No hemisfério ocidental, personagens como Jair Bolsonaro, Javier Milei, Viktor Orbán, Giorgia Meloni, Marine Le Pen, Nayib Bukele, dentre outros e outras, festejam de forma vibrante e obscena, juntamente com suas farândolas, o retorno ao poder do grande ícone do extremismo reacionário e de direita desta quadra histórica. E não poderia ser diferente. Trump encarna em si uma geração de líderes políticos que resgatou o extremismo de seu silenciamento, e o empoderou.
Até o surgimento de Trump, na maioria dos países, esse extremismo militou, com suas ideias e agendas, dentro das organizações partidárias de direita e de centro-direita, o que deixou de fazer a partir da sua organização em grupos legalmente reconhecidos, e que têm como propostas seu ideário reacionário e autocrático. Passaram a disputar o proscênio das lutas cultural e política, que travam incessantemente, avessos a acordos e composições, galvanizando o sentimento das massas com seu discurso vago, mas atraente, e de cunho populista.
Encantadas, as massas empobrecidas e desalentadas com as crises sistêmicas do capitalismo se enamoram e se deixam seduzir pela extrema-direita, abandonando antigos campos políticos, que acabam por sucumbir ao caldo extremista – como ocorrido no Brasil em 2018. Foi assim no fascismo histórico dos anos 1920 e 1930, na Itália e na Alemanha, e está sendo assim agora. É o fascismo eterno, o ur-fascismo, magistralmente descrito pelo filósofo italiano Umberto Eco, em uma conferência em 1995.
As crises sistêmicas do capitalismo, especialmente do neoliberalismo e suas fundações alicerçadas no predomínio do capital financeiro e especulativo, nunca no produtivo, criam legiões de desempregados, de insatisfeitos de toda ordem e de desalentados, que se veem à margem da história e da sociedade em que vivem, movendo todo um conjunto de ressentimentos, de desamparo e sentimentos intestinos de natureza raivosa. Desejam ser observados e atendidos em suas necessidades mais prementes, nem que para tanto tenham que legitimar uma autocracia.
O neoliberalismo, no bojo da crise do capitalismo, cria e alimenta esses personagens sociais, ao mesmo tempo em que retira da democracia liberal, especialmente do Estado, os meios pelos quais a redenção possa ser possível a essa parcela das massas. Uma redenção que preserve a democracia é suplantada, pelo enfraquecimento, leniência ou conivência do Estado, pela autocracia. Primeiro se agudiza o caos, para, então, escalar a luta política rumo à autocracia, ao fascismo.
A esses personagens sociais, imersos em uma realidade sórdida, só resta a revolta e a manifestação incisiva de seu descontentamento, quer pelo voto, quer pela descrença plena na democracia liberal cada vez mais incapaz de atendê-los, quer pelas constantes e conturbadas manifestações de rua – virtual ou real. Esses são os meios projetados como viáveis para sua (re)afirmação como indivíduos vivos no âmbito de suas sociedades. Ao mutilar o Estado, o neoliberalismo aprofunda a insatisfação das massas, que passam a projetar contra aquele toda a sua ira, descrentes de sua capacidade de ação, o que se reafirma verdadeiro a cada instante, a cada acordo político, a cada adoção de medidas de caráter austericida.
As massas são manipuladas pelos interesses neoliberais e pela sua ação afirmativa no sentido de anular o Estado, permitindo o retorno ao estado natural de Hobbes – que precedeu a construção do Estado Moderno, com toda uma gramática atualizada pelos signos do tempo presente. Trata-se, pois, de uma armadilha cruel, que, uma vez aprisionando o indivíduo, o transforma em um ser ativo na luta contra o Estado e a democracia liberal, apresentados como males insolúveis de uma doença que a todos acomete. O caos, pois, é um terreno fértil, desde sempre, para a afirmação triunfante da autocracia e do fascismo histórico.
Não há espaços para comportamentos juvenis nessa pantomima representada a todo instante de forma cada vez mais cruel. A conquista do Estado e de seu aparato pelo extremismo, legitimado pela vontade e pela ira das massas, é apresentada como única forma de redenção destas. A supressão do Estado e de seu aparato, projetados como elementos causadores de toda a miséria social, é, segundo essa narrativa, a única solução para a reversão de realidades tão adversas. As massas, mais uma vez, são alvo do populismo extremista, hoje associado aos interesses neoliberais, que deseja impor-se como senhor absoluto das estruturas, cujo controle exerce de forma autocrática e sob o signo da exceção permanente.
Orbán, Primeiro-Ministro da Hungria, foi o primeiro desses líderes políticos a perceber que a autocracia, que o caráter iliberal do Estado, seriam objetivos a serem alcançados a partir do controle deste no contexto de uma democracia liberal. E assim operou, com sucesso, todo o seu projeto político. Por sua vez, Milei, Presidente da Argentina desde dezembro de 2023, caminha no mesmo sentido, destruindo tudo o que possa representar uma saída segura para a longa crise de seu povo. Trump, que reconhece os erros por ele cometidos no seu período de governo entre 2017 e 2020, por não radicalizar na medida necessária ao sucesso de sua agenda, foi categórico em afirmar, ao longo da campanha deste ano, que repetirá a fórmula de Orbán, aparelhando o Estado e procedendo ao desmonte do que considera desnecessário, as áreas sociais e os mecanismos de controle e regulação, vistos como fontes de gastos prescindíveis e de entraves para o crescimento das forças vivas em sua sanha empreendedora.
Se o fascismo histórico italiano e alemão, dos anos 1920 e 1930, se valeu das contradições existentes no imaginário e na dinâmica das sociedades de então, essa nova onda de crescimento da extrema-direita repete a estratégia, requalificando-a com novos elementos históricos. O competente domínio das redes sociais e a captura das plataformas digitais tornaram-se prioritários na pavimentação do caminho que conduziu o extremismo para fora das catacumbas e dos locais de marginalização e de silenciamento ruidoso no qual haviam se entocado há décadas.
Trump, entre 2017 e 2021, presidiu os Estados Unidos, governando conforme as premissas do fascismo histórico, incentivando a mobilização permanente dos grupos extremistas em torno de suas agendas e deles absorvendo o apoio político necessário à sua governação. Seu estilo se irradiou pelo ocidente global, despertando o extremismo radical ou potencializando aqueles, como no caso francês, que já vinham se empoderando desde há alguns anos. Trump é o centro dinâmico do movimento – a grande articulação transnacional dos extremismos de todas as ordens, idealizada por um dos principais arquitetos políticos do trumpismo, Steve Bannon. Este divide com o empresário Elon Musk – cujos interesses econômicos dependem de forma direta dos recursos recebidos das diversas agências que integram o aparato de Estado – a operação que resultou no sucesso eleitoral do republicano em 5 de novembro.
Trump foi o primeiro e exitoso ator político no cenário mundial que se valeu das plataformas digitais para criar e disseminar toda a sua narrativa populista e suas versões falsas, fantasiosas, sobre a história, estabelecendo um liame sólido e frutífero com parcelas consideráveis da população, que careciam desde sempre de alguém que encarnasse em si o descontentamento diante dos avanços das pautas comportamentais, das lutas pelo reconhecimento de direitos e da diminuição dos níveis de desemprego, miséria e desalento. A realidade paralela da narrativa trumpista seduz as massas, encantadas com sua virilidade e potência arrasadoras.
O Presidente (re)eleito dos Estados Unidos governou, e voltará a governar, sobre os escombros do neoliberalismo, da desindustrialização, com a hegemonia do capital financeiro especulativo sobre o produtivo, com a lenta e constante decadência do poder imperial dos Estados Unidos e com as consequências da grave crise financeira de 2008 – cujos efeitos se fazem sentir até o presente.
Trump é uma pura expressão do investidor financeiro, daquelas pessoas que fazem fortuna manipulando as riquezas de outros em proveito próprio, sem que gerem nada no campo produtivo. Ele carrega em si todos os arquétipos do neoliberalismo e de sua gramática, e conseguiu, sendo esse personagem, construir a imagem pública de grande defensor de uma população empobrecida ou que vive no desalento. Seus oponentes democratas não souberam lidar com essa realidade, não conseguiram com ela dialogar ou reverter o cenário de drama, o que os afastou da maioria da população dos Estados Unidos, aqui tomada em seu caráter prismático.
Há alguns aspectos na (re)eleição de Trump que precisam ser ressaltados. Os democratas, que o derrotaram em 2020, falharam na construção de melhorias objetivas para milhões de habitantes dos Estados Unidos. Agarraram-se em indicadores de avanços econômicos, sem se atentarem que, entre os números e a vida das pessoas, existe uma realidade dramática, e esta foi se agravando a cada dia um pouco mais.
Trump soube, de forma competente, explorar os erros dos democratas em seus quatro anos de governo. A uma massa de desempregados, fruto da desindustrialização do país, da globalização que transferiu para a Ásia os parques produtivos, Trump acenou, de novo, com vagas propostas de recuperação da qualidade de vida e da empregabilidade. Soube tratar essa massa como pessoas que sofrem as consequências das transformações econômicas, criando liames sólidos para com elas.
Os membros do Partido Democrata estadunidense, como de resto os partidos e grupos de viés democrático em todo o ocidente global, não entenderam que está havendo, como classifica a filósofa Marilena Chauí, uma “mutação civilizacional”, na qual “você tem uma subjetividade nova, que é narcisista, depressiva e que depende desesperadamente do olhar alheio”. Para Chauí, “não houve uma mudança tecnológica. Houve uma mutação civilizacional. É um outro mundo, é uma outra coisa. O mundo virtual é outra coisa.”
Essa separação dos partidos e grupos políticos e sociais da realidade fática da maioria da população advém de sua incapacidade de lidar com a gramática do tempo presente, de radicalizar contra a ordem neoliberal que nos arrasta para o caos de onde surgirá a alternativa autocrática, fascista, de conversar com a sociedade entendendo sua corporificação e seus anseios no tempo presente.
O Partido Democrata, bem como a ampla frente política que governa o Brasil desde 2023, parecem estar desplugados da vida real do povo. Não entendem, ou não querem entender, as transformações pelas quais o mundo vem passando. Estão presos, muitas vezes, a paradigmas já ultrapassados, o que lhes impede de encontrar um caminho que os aproxime dessa parcela da população.
As pressões do capital financeiro sobre o Presidente Lula (PT) e seu governo, bem como a forma com que vêm lidando com elas, buscando uma incessante conciliação, podem levar a que o governo perca, de forma perigosa, parcela importante da base social que o mantém, e conduzir, no Brasil, o retorno do poder de uma extrema-direita ainda mais radical e organizada, messiânica por força de suas crenças e de sua sólida aliança com o fundamentalismo religioso cristão, mais entranhada nas alianças com as organizações criminosas de toda a ordem, e com uma aliança plena com o pensamento autoritário e com os valores reacionários sobre os quais se funda o país desde o seu surgimento, em 1500.
Esse processo é histórico, e está em pleno curso, com as lutas sendo travadas a todo instante no contexto de guerras informacionais, culturais e híbridas. No momento, valendo-nos do jargão futebolístico, a bola está com o adversário da democracia, que joga de forma livre e desinibida diante de oponentes ainda perdidos em suas ilusões. Mais que nunca, o momento merece uma especial atenção de todas as pessoas que desejam manter viva a democracia.
Marcelo Siano Lima – Historiador, professor, assessor parlamentar e consultor político. Doutorando em Direito e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV)
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