Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Putin: um amálgama de diferentes eras, por Valdir Bezerra

De seu passado, a Rússia extraiu lições fundamentais, a fim de lidar com a complexa realidade internacional multipolar de nossos tempos.

Kremlin

no Sputnik Brasil

Putin: um amálgama de diferentes eras

por Valdir da Silva Bezerra

Após o resultado das últimas eleições na Rússia, o mundo mais uma vez testemunhou o inabalado apoio da população do país ao presidente Vladimir Putin. Seguindo agora para o quinto mandato como chefe de Estado, Putin foi o principal responsável pelo resgate do prestígio de Moscou nas relações internacionais.

É possível dizer que desde que Putin chegou ao poder pela primeira vez em 2000, a Rússia se apresentou como uma verdadeira “amálgama de diferentes eras”, resgatando alguns elementos importantes de seu passado. Ora, existe um ponto em que a experiência dos Estados pode realmente ser comparável à experiência de um indivíduo, e isso se dá no modo como ambos interpretam e utilizam o seu passado como forma de moldar atitudes e identidades no presente. De seu passado, a Rússia extraiu lições fundamentais, a fim de lidar com a complexa realidade internacional multipolar de nossos tempos.

Não somente isso. Com Putin à frente do poder, as impressões de um país abatido, pobre e enfraquecido pelas transformações econômicas e sociais dos anos 1990 deram lugar a novos movimentos de consciência e de renovação dentro da Rússia, incluindo uma verdadeira redefinição de sua identidade nacional. No mais, a era Putin demonstrou não somente a importância do papel do indivíduo para as grandes transformações históricas, como também a importância do resgate de elementos do passado como norteador do desenvolvimento social. A Rússia de Putin, assim como no período soviético, tornou-se um país que não mais aceitava uma posição subordinada no sistema internacional e que brigaria por afirmar sua posição de “Grande Potência” no sistema, papel que desempenhou desde o período czarista de sua história.

No começo de seu primeiro mandato em 2000, ao lidar de forma dura e eficiente com as tendências separatistas existentes no país e se aproveitando de condições econômicas favoráveis, Putin foi capaz de manter a integridade territorial da Rússia e de devolver a dignidade à sua população. Ao final de seu segundo mandato, Putin então começou a subir o tom em seus discursos internacionais contra as injustiças da hegemonia americana, defendendo a consolidação de um mundo “multipolar” mais justo e livre dos ditames de Washington. Já a partir de 2012 — no início de seu terceiro mandato —, Putin começou a acentuar as diferenças culturais, políticas e civilizacionais entre a Rússia e o Ocidente, apregoando o respeito às múltiplas tradições nacionais e religiosas existentes no mundo. Não à toa, a Rússia de Putin demonstrou maior sinergia entre o Estado e a Igreja Ortodoxa, um dos pilares da civilização russa desde os primórdios de sua formação.

Nos Estados Unidos, por outro lado, a Rússia novamente figurava como uma ameaça aos valores e aos interesses americanos, com acusações de que o “regime autoritário de Putin” representava um obstáculo à expansão das chamadas “democracias liberais” à guisa do modelo ocidental pretensamente universalizante. Levantava-se então aquela velha dicotomia típica da Guerra Fria, que serve apenas para angariar o suporte das audiências ocidentais para projetos como a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o leste, uma clara demonstração da continuada política de contenção ao poderio russo. Não agrada aos formuladores de políticas, seja na Europa, seja nos Estados Unidos, que a Rússia se consolide como “Estado forte”, lastreado por seu poderio militar e por suas enormes potencialidades humanas e de recursos naturais.

Ao mesmo tempo, ao longo dos anos 2000, a figura de Putin no exterior passou a ser identificada com a da própria Rússia, com ambos passando a ser cada vez mais reconhecidos e respeitados no cenário internacional, apesar das frequentes campanhas de propaganda do Ocidente no sentido de manchar a imagem do presidente russo. Sem atentar para essas campanhas de difamação, a era Putin se caracterizou pela defesa da Rússia de seus interesses nacionais e regionais de segurança, à guisa do período soviético e imperial. Ora, tanto para Putin como para a população russa, o processo de expansão da OTAN para o leste no contexto do pós-Guerra Fria constituiu uma ameaça grave à segurança do país e uma provocação dirigida a minar a influência de Moscou no espaço pós-soviético. Afinal, precisamos lembrar que a Rússia historicamente sofreu com invasões a partir do Ocidente e, portanto, não poderia olhar com indiferença os movimentos da OTAN em direção a suas fronteiras. Como consequência — em parte — dessa interpretação, foi que Moscou empreendeu sua operação militar especial na Ucrânia em 2022.

Diante desse contexto, o quinto mandato de Putin começa justamente com as tropas russas defendendo os novos territórios do país e com o fracasso dos esforços ocidentais de tentar derrotar a Rússia no campo de batalha. Por certo, de muito tempo que o conflito no Leste Europeu tem sido não entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim de todo o Ocidente coletivo contra os russos, seja por ações militares, seja pelas sanções. Ilusoriamente, no entanto, os Estados Unidos e a União Europeia continuam a prometer a suas populações que o fornecimento de armas, equipamentos e apoio financeiro à Ucrânia se justifica pela necessidade de deter a Rússia a todo o custo. Caso contrário, Moscou poderia avançar pelo continente. Trata-se de uma completa loucura, usada pelos líderes europeus e americanos apenas para disfarçar sua miopia política e esconder do público o fracasso de seu projeto geopolítico de derrubar a Rússia.

Seja como for, ao iniciar o quinto mandato como presidente do país, Putin e sua administração se mostraram capazes de resistir à chantagem ocidental, do mesmo modo como a Rússia e sua população conseguiram resistir às sanções econômicas. Para os anos seguintes, independentemente de qualquer torcida em contrário, as ações da Rússia tanto no âmbito doméstico como externo continuarão a definir os contornos da geopolítica internacional. Em suma, assim como em séculos passados, com Putin novamente à frente da presidência — dessa vez até 2030 —, a Rússia persistirá exercendo um papel de relevância no cenário mundial. Para além disso, esse país, que se tornou uma verdadeira “amálgama de diferentes eras”, certamente extrairá quaisquer lições que forem necessárias para a construção das bases de um futuro justo e digno.

Valdir da Silva Bezerra – Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo. Membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia da Universidade de São Paulo (NUPRI-GEASIA). Pesquisador do Grupo de Estudos Sobre os BRICS da Universidade de São Paulo (GEBRICS-USP). Colaborador do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS) da Universidade Federal de Santa Catarina.

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