Guerra na Ucrânia – os críticos russos se fazem ouvir

As sanções ocidentais, embora negando esta opção “simples”, enfraquecem o poder da burguesia compradore

DONETSK REGION, UKRAINE – SEPTEMBER 8, 2020: A war memorial at Savur-Mohyla Height during an event marking the 77th anniversary of the liberation of the Donbass Region from Nazi invaders. Valentin Sprinchak/TASS (Photo by Valentin SprinchakTASS via Getty Images)

Guerra na Ucrânia – os críticos russos se fazem ouvir

por Yakov Rabkin[1]

Tradução do francês: Abel de Castro

Publicado originalmente no jornal La Presse em Montréal em 21/01/2023.

Original:https://www.lapresse.ca/debats/opinions/2023-01-21/guerre-en-ukraine/les-critiques-russes-se-font-entendre.php

De São Petersburgo, o autor russo relata as críticas da “oposição patriótica”, e mostra opiniões que diferem um pouco do discurso oficial do Kremlin.

(São Petersburgo, Rússia) Relatórios diários sobre a guerra dão espaço na mídia russa a discussões de perspectivas militares e políticas. Elas contêm opiniões que diferem consideravelmente do discurso oficial do governo e merecem ser mais conhecidas, pois influenciam a opinião pública e, talvez, as decisões do Kremlin.

Por exemplo, Daniil Kotsubinsky[2] do diário online Fontanka.ru se opõe à “guerra até a vitória”. “A experiência histórica mostra que somente um acordo pode levar à reconciliação; caso contrário, continuamos a jogar a roleta russa, com uma munição que é nuclear”. Sergeï Peresleguine, no mesmo jornal, lança luz sobre a intelligentsia técnica cujo humor, ao contrário dos círculos artísticos bastante deprimidos, estaria em alta. As políticas de substituição de importações permitem que os engenheiros utilizem seus talentos há muito frustrados. “Durante anos eles esperaram por uma oportunidade de trabalhar, ao invés de serem informados de que é mais fácil comprar da Siemens”.

As sanções ocidentais, embora negando esta opção “simples”, enfraquecem o poder da burguesia compradore[3]. O outrora influente Anatoli Tchoubaïs, o arquiteto da privatização de empresas estatais nos anos 90[4], foi citado esta semana defendendo o fechamento da Ouralvagonzavod[5], o principal fabricante de armas e infraestrutura ferroviária do país. “Ainda podemos comprar tanques e vagões no exterior”, disse ele na ocasião. Tchoubaïs emigrou com sua família pouco depois do início da guerra na Ucrânia. Há alguns dias, para enfatizar a importância das indústrias militares, Putin comemorou o 80º aniversário do início do cerco de Leningrado, visitando uma fábrica de defesa que agora funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana. Esta fábrica reparou tanques durante todo o cerco de 900 dias.

Neste contexto, a venda de de hidrocarbonetos e metais para o Ocidente é controversa. Peresleguin argumenta que eles só devem ser vendidos em troca de materiais estratégicos, como chips de computador e motores.

Outros, como Sergueï Mikheïev, ativo na televisão e na blogosfera, consideram essas vendas incompreensíveis, uma vez que esses metais e o petróleo são usados “para produzir tanques e abastecê-los para combater nosso exército”.

Ele também critica as deficiências na estratégia militar russa, incluindo o fornecimento contínuo de armas e munições ocidentais às forças ucranianas, e que as forças russas “não podem ou não querem” interromper. Se as razões são militares, ou seja, a incapacidade de superar as defesas aéreas da Ucrânia, ele vê isso como a incompetência das forças russas. “Se não conseguirmos superar as defesas da Ucrânia, como poderemos eventualmente enfrentar as defesas dos países da OTAN?” Se as razões são políticas, elas são, para ele, imorais. “Não pode haver nenhuma justificativa para permitir um fluxo contínuo de armas ocidentais que matam nossos soldados e oficiais, especialmente no contexto de uma mobilização que está arrancando os homens da vida normal”. Ele acrescenta que vem fazendo estas perguntas há meses, ainda sem resposta.

Sergueï Markov é um ex-parlamentar russo que foi membro da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa. Ele passou um tempo no Instituto Nacional Democrático em Washington e foi próximo do presidente Putin. Markov acredita que a Rússia deu vários passos rumo à derrota. “Considero os resultados deste ano catastróficos. […] Se sofrermos uma derrota no conflito com a Ucrânia, a guerra poderá se estender ao território da Rússia, o país poderá ser ocupado e desmembrado, o que resultará na perda de seu status de Estado”.

Confiança ingênua

Os erros cometidos seriam tanto militares quanto políticos. Markov lamenta a ingenuidade do Kremlin nos acordos de Minsk. Esses documentos, como agora reconhecem seus cossignatários Angela Merkel e François Hollande, nunca tiveram a intenção de trazer paz ao Donbass, mas sim oferecer às forças ucranianas uma pausa para respirar e rearmá-las a fim de reintegrar o Donbass pela força. Markov em uma entrevista, diz que a estrutura interna de poder não é confiável. “Se as elites não fugiram para o lado do inimigo, isso não significa que estejam consolidadas para combater esta guerra. Certamente eles não estão envolvidos em sabotagem, mas muitos deles pensam que esta guerra não é sua”, acrescenta Markov.

O filósofo conservador Alexandre Douguine resume a situação atual em termos dramáticos: “É como se uma pessoa adormecida lutasse contra lobos. Eles o mordem, mas ela não sabe se está sonhando ou se os lobos são reais. Este meio sono em que nossa sociedade e nosso Estado se encontram causa uma impressão monstruosa”.

Estas críticas vindas do que poderíamos chamar de “oposição patriótica” ajudam a esclarecer certos aspectos sobre a sociedade russa no auge da guerra na Ucrânia.


[1] Yakov Rabkin é professor emérito de história pela Université de Montréal e autor do livro Judaïsme, islam et modernités (mars 2022, Éditions I).

[2] N.T.: Todos os nomes próprios e de empresas russas foram mantidos no original escrito pelo autor, salvo o nome do presidente Vladmir Putin em que usamos a grafia em português.

[3] N.T.: “Nos países em desenvolvimento, um membro da burguesia local enriquecido no comércio com os estrangeiros”. https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/comprador/17767 (acesso 25/01/23).

[4] N.T.: Muitos russos culpam Anatoli Tchoubaïs, ex-ministro das finanças e chefe da administração presidencial sob o comando de Boris Yeltsin, por permitir que um pequeno grupo de empresários enriquecesse durante a onda de privatização dos anos 90, deixando milhões de russos na pobreza. https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/1871106/anatoli-tchoubais-conseiller-poutine-russie (em francês -acesso 25/01/23).

[5] N.T.: Ouralvagonzavod é uma empresa de armas russa localizada em Nizhny Tagil, Rússia. É o maior fabricante dos principais tanques de batalha do mundo, embora também produza veículos civis, como vagões de trem, tratores, ônibus. https://military-history.fandom.com/wiki/Uralvagonzavod (em inglês – acesso 25/01/23).

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