Do Zeitgeist dos anos 1930 aos ‘exilados posers’ de 2020

Antes de entrar no assunto, farei um pequeno desvio de natureza pessoal.

Meu avô materno, João Ribeiro de Freitas, e o irmão do meu avô paterno, Godofredo de Oliveira Ribeiro, foram soldados paulistas na guerra de 1932. Derrotados, os dois retomaram às suas atividades cotidianas e seguiram com a vida. Eles sobreviveram à ditadura Vargas. O primeiro morreu na década de 1990 com 97 anos. O outro, um pouco mais velho, morreu em meados da década de 1970 com 88 anos.

Vice-prefeito e vereador algumas vezes, meu avô foi homenageado pela Prefeitura em 1999.

“Art. 1º As ruas da Vila Nova Esperança passarão a ter as denominações abaixo especificadas e, ficam oficializadas:

XVIII – a rua que tem seu início na Rua 7, conhecida como a Rua 20, paralela as divisas da C.B.R. (Companhia Brasileira de Reflorestamento) sem denominação, passará a ser denominada a “Rua Poeta João Ribeiro de Freitas”;”
https://leismunicipais.com.br/a2/sp/e/eldorado/lei-ordinaria/1999/23/237/lei-ordinaria-n-237-1999-da-denominacao-e-oficializa-vias-publicas-da-estancia-turistica-de-eldorado

Em sua dissertação de mestrado “Os trabalhadores da Construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil” (página 64 da tese – p. 55 do PDF disponível na internet), Thiago Moratelli narra alguns aspectos da vida de Godofredo de Oliveira Ribeiro no princípio do século XX.

“Como não demorou muito para que as notícias sobre as possibilidades abertas pelo desenvolvimento das obras e serviços de construção da ferrovia chegassem aos grandes centros urbanos, algumas pessoas despertaram para o desejo de conhecer e conferir de perto a veracidade das informações. Este foi o caso, por exemplo, de um “moço” da cidade de São Paulo, chamado Godofredo de Oliveira Ribeiro. Em 1907, ele se mudou para Bauru com o objetivo de “ganhar dinheiro para seguir para Mato Grosso e Goiás e procurar meios melhores de vida”. Primeiro proferiu na localidade uma “conferência literária”, depois outra em Agudos e Lençóis Paulista. “Talentoso, afável e bom, escrevia boas produções na folha local e teve um curso noturno para adultos”. Essas atividades não lhe renderam o dinheiro pretendido e então mudou de ramo, passando a ser “empregado do Sr. Saraiva, empreiteiro da Noroeste”. Pouco tempo depois, acabou sendo dispensado do serviço, ao que parece, devido a uma “perturbação mental”. A condição de desempregado o deixou “em situação bastante precária”, embora fosse membro de uma “boa família”; seu pai havia sido juiz de direito e seu irmão era o “conhecido professor Faustino Ribeiro Júnior”. Em maio de 1908, perturbado e com “a mania de perseguição”, Godofredo cometeu um homicídio, sendo o episódio acompanhado pela imprensa local com certa “compaixão” do assassino e não do assassinado. Ele objetivava ganhar algum dinheiro em Bauru, mas sua investida foi por água abaixo.”
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/281967/1/Moratelli_Thiago_M.pdf

Na página 2 do jornal “São Paulo dos Agudos” de 11/10/1908 foi publicada a nota de Constantino Pomati repudiando a campanha de difamação de que foi vítima e dizendo que não se vendeu ao advogado do réu Godofredo de Oliveira Ribeiro.

https://issuu.com/hemerotecaherculessormani/docs/spa_11.10.1908

Meu pai gostava muito do velho Gôdo (como Godofredo era chamado em Eldorado) e costumava me dizer que uma tragédia havia modificado totalmente a trajetória de vida do tio dele. Narrarei aqui os fatos tal como me foram contados pelo meu pai e pela minha mãe.

Após o crime, Godofredo se apresentou na delegacia de polícia. Sabendo que ele era filho do juiz Faustino de Oliveira Ribeiro https://jornalggn.com.br/historia/fragmentos-de-uma-vida-no-seculo-xix/, o delegado se recusou a efetuar a prisão e orientou-o a fugir. Godofredo perambulou pelo Uruguai e pela Argentina por uma década e voltou para o Brasil com um nome falso se estabelecendo como professor na fazenda de Getúlio Vargas nos anos 1920.

Incorporando a “persona” que havia criado para seu novo nome, Godofredo acompanhou a evolução política do futuro presidente brasileiro e apoiou o golpe de 1930. Convidado para ser Ministro da Educação ele recusou o cargo, pois tinha certeza de que a imprensa rapidamente descobriria quem ele era o que havia feito. Ele romperia com Getúlio e se tornaria soldado paulista em 1932 por discordar das ações do interventor getulista em São Paulo.

Fiz essa pequena homenagem ao meu tio-avô para criar o contexto necessário à citação da obra Paulo Duarte https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Junqueira_Duarte, um dos companheiros de Godofredo na guerra de 1932. No livro que escreveu no exílio, o intelectual paulista diz que:

“O avacalhamento dos intelectuais tem sido, aliás, nos tempos modernos, o sintoma talvez mais grave da queda de um povo. O nazismo e o fascismo venceram mercê disso. A maioria dos homens de pensamento, expulsos da Alemanha, eram judeus e assim foram atingidos mesmo os que se dispuzessem a aceitar o regime. Raríssimos os intelectuais alemães não semitas – como os irmãos Mann – que não se conformaram. Na Itália, onde o antisemitismo coercitivo só apareceu no fim, o panorama ofereceu o mesmo aspecto deplorável. Até Ferri, o grande Ferri da Escola Penal Positiva, conformou-se ao ponto de admitir a pena de morte, cuja monstruosidade ele mesmo demonstrara cientificamente. Poucos, pouquíssimos os que se revelaram. O resultado aí está. A enormidade da potência material da Alemanha e da Itália, mesmo através da forma implacável com que se usou, não foi suficiente para fazê-las continuar.

Dois países, durante o horror dos últimos anos, alçaram-se como maravilhosas excepções dessa desanimadora regra geral: a Espanha e a França. A primeira conta cerca de quatrocentos professores universitários exilados. Sem falar em centenas de outros intelectuais. Dentro da Espanha, dezenas foram assassinados, como Garcia Lorca; outros encarcerados e proibidos de escrever, como Pio Baroja. Na França, não houve um só intelectual de alta classe, em pleno domínio de suas faculdades que se tornasse colaboracionista. Todos fugiram para o exterior, de onde continuaram a luta, ou entraram para a Resistência. O Instituto de França não contou cinco por cento de aderentes a Pétain. A Academia Francesa, dos seus quarenta membros, teve seis dissidentes. Assim mesmo, desta meia dúzia, dois militares, incluído no número o próprio Pétain. E Maurras, que não foi um adesista, porque toda a vida era já o que continuou a ser. Justamente ao contrário da Academia Brasileira, onde o ditador, ao gazuar as suas portas, só não teve a ajudá-lo o auxílio de quatro membros: um exilado, um no estrangeiro, e dois no Brasil, que não compareceram à Academia.” (Prisão, Exílio, Luta…, Paulo Duarte, Livraria Editora Zelio Valverde S.A., Rio de Janeiro, 1946, p. 47/48)

Um pouco antes, o autor já havia esclarecido que a “… Academia Brasileira de Letras, entidade suprema da representação intelectual do Brasil, modificou os seus estatutos exclusivamente para fazer membro daquele grêmio da inteligência, o homem que mais atentados perpetrou contra a inteligência do Brasil.” (Prisão, Exílio, Luta…, Paulo Duarte, Livraria Editora Zelio Valverde S.A., Rio de Janeiro, 1946, p. 47)

Abraham Weintraub, Allan dos Santos e Eduardo Fauzi fugiram do Brasil. Os três disseram que fizeram isso em virtude de serem perseguidos por uma ditadura comunista gayzista que só existe nos delírios que eles mesmos criaram para justificar tanto seu apoio aos abusos cometidos por Jair Bolsonaro quanto seus atos criminosos.

Os três se tornaram fugitivos da justiça. Mas não de uma justiça de exceção e revolucionária, como aquela que atingiu os intelectuais europeus e brasileiros nos anos 1930, e sim da mesma justiça anti-petista que ajudou Bolsonaro a chegar ao poder.

Não existe semelhança entre as pessoas aqui citadas e Abraham Weintraub, Allan dos Santos e Eduardo Fauzi. Meu avô e meu tio-avô foram soldados em 1932 e não fugiram do país com medo de perseguição. Godofredo, aliás, poderia muito bem ser tratado como traidor, pois conhecia Getúlio Vargas, havia apoiado a revolução de 1930 antes de se tornar soldado inimigo do ditador. Após a proclamação do Estado Novo, vários intelectuais brasileiros foram expulsos do país. Paulo Duarte rumaria para o exílio por ordem do Ministro da Justiça.

E já que falamos do Ministério da Justiça da era getulista, nunca é demais lembrar como ele funcionava:

“De imediato, outorga a nova Constituição, elaborada por Francisco Campos, então ministro da Justiça e Negócios Interiores. Inspirada na Constituição da Polônia, de origem fascista, a nova Carta instituiu o autoritarismo corporativista, restringindo a prática efetiva e plena dos direitos dos cidadãos. Os poderes do presidente da República foram reforçados, ampliando-se a possibilidade de intervenção nos estados e abolindo o Poder Legislativo em todos os seus níveis.

O controle da informação e a propaganda foram fundamentais no primeiro governo de Vargas. Inicialmente esses assuntos ficaram sob a esfera do ministério da Justiça. O Departamento Oficial da Publicidade tinha a finalidade de divulgar atos oficiais e controlar a imprensa quanto à publicação de temas que pudessem prejudicar o governo e a ordem pública.

Em 1938, o ministério ganhou nova estrutura e adicionou à sua competência os assuntos ligados à extradição, expulsão, estado de emergência e de guerra, assistência jurídica, reconhecimento de utilidade pública e entidades e registro de sociedades civis. Naquele momento, o ministério assumiu a prerrogativa de tratar explicitamente dos direitos políticos – algo relevante para um governo autoritário, que cassou esse direito de muitos opositores e proibiu a organização de partidos.”
https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1562598337.43

Francisco Campos, o Ministro da Justiça em queAndré Luiz de Almeida Mendonça buscou inspiração para transformar ilegalmente a Polícia Federal num novo DOPS https://jornalggn.com.br/noticia/dossie-contra-antifascistas-e-inauguracao-de-linha-de-perseguicao-diz-membro-da-comissao-arns/, havia ocupado a pasta Educação que Getúlio Vargas ofereceu à “persona” incorporada por Godofredo de Oliveira Ribeiro nos anos 1920.

Existem obviamente várias diferenças entre a ditadura Vargas e a tirania que está sendo criada por Jair Bolsonaro e André Mendonça. A primeira e mais evidente é a existência de um Poder Judiciário que ainda é suficientemente independente e capaz de cumprir suas obrigações constitucionais.

Nos anos 1930 os intelectuais eram triturados ou expulsos dos seus países pelos regimes políticos totalitários que Jair Bolsonaro gostaria de emular. Na fase atual, está ocorrendo algo diferente. Até a presente data, apenas os “intelectuais bolsonaristas” fugiram do Brasil. O próximo a fugir do país certamente será o próprio Ministro da Justiça, pois é quase impossível ele não responder pelo abuso que cometeu na forma da legislação em vigor.

Abraham Weintraub e Allan dos Santos não corriam nenhum risco de serem torturados e executados pela ditadura comunista gayzista que eles atribuem ao Judiciário. Eles não são homens excepcionais em tempos conturbados. Eles são apenas “exilados posers”. A dissidência que eles dizem representar é apenas fashionista. No exterior eles continuarão criando “memes” paga levantar grana fácil na internet. Weintraub, aliás, receberá um salário extremamente suculento para emporcalhar o nome do Brasil numa instituição multilateral.

Georg W. F. Hegel, filósofo alemão curiosamente confundido com Engels por outro “intelectual” defensor do bolsonarismo, acreditava que cada época gerava e incorporava seu próprio espírito. O Zeitgeist ou genius seculique domina o Brasil nos anos 2020 não é em nada semelhante àquele que dominava novo país quando meu tio-avô era professor na fazenda de Getúlio Vargas.

Há cem anos o fluxo de comunicações era lento, hoje ele é extremamente acelerado. Em 1920 a quantidade de informação disponível para os cidadãos era limitado e podia ser controlado por empresas de comunicação ou pelo Estado. Em razão de sua arquitetura, a Internet representa uma ameaça permanente para qualquer regime autoritário.

Em 2020 a produção e circulação de informações é descentralizada, o que certamente possibilita a disseminação mal intencionada de Fake News como aquelas que levaram Bolsonaro ao poder. Todavia, e isso precisa ser dito, até o presente momento nenhum governo conseguiu se manter no poder apenas e tão somente espalhando mentiras na internet.

A obsessão do Ministro da Justiça com o monitoramento e o controle de intelectuais e policiais não é apenas inconstitucional, ilegal e possivelmente criminoso. Ele é totalmente incompatível com o genius seculi. Esse tipo de coisa somente produziria efeitos práticos no mundo em que Paulo Duarte, Godofredo de Oliveira Ribeiro, João Ribeiro de Freitas, Getúlio Vargas e Francisco Campos viveram. Em nosso mundo, a gestação de uma tirania se torna imediatamente notícia dentro e fora do país acarretando consequências negativas para o país.

Há um século, os meios que os intelectuais utilizavam para produzir e expor suas obras eram limitados e também podiam ser controlados. Nos dias de hoje os tiranos e seus tiranetes acabam se expondo ao ridículo em lives e teleconferências em que proferem ofensas aos seus colegas de trabalho e a população em geral. Os vídeos produzidos por Bolsonaro dizendo que a pandemia é uma gripezinha e receitando cloroquina para a população certamente serão utilizados como prova contra ele nos Tribunais intenacionais.

Ao criar e incorporar uma “persona” para se distanciar do crime que havia cometido, meu tio-avô Godofredo conseguiu ficar incógnito durante as décadas de 1920 e 1930. Nos dias de hoje também é possível ficar incógnito, mas não por muito tempo. Todavia, mesmo utilizando que seja capaz de utilizar recursos sofisticados de criptografia as pessoas podem ser eventualmente localizadas e responsabilizadas pelos crimes que cometem na internet.

O Zeitgeist dos anos 1920 e 1930 não pode ser reproduzido em 2020. Portanto, os devaneios autoritários de Jair Bolsonaro e André Luiz de Almeida Mendonça estão fadados ao fracasso. O máximo que ambos conseguirão é fazer os próprios “intelectuais do bolsonarismo” fugirem vergonhosamente do Brasil como fizeram e Abraham Weintraub e Allan dos Santos.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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