O neoliberalismo jurídico lavajateiro e o campo da advocacia

Aqui mesmo no GGN já escrevi dezenas de artigos criticando a atuação dos juízes e procuradores lavajateiros. Hoje concentrarei minha atenção na questão dos advogados que foram abduzidos pela operação que está destruindo os pilares do Sistema Jurídico brasileiro.

Partirei do comentário feito por Luis Nassif, que me parece reunir os elementos fáticos essenciais:

“E o que aconteceu com Beatriz Catta Preta (advogada da Lava-Jato e especialista em delação premiada): descobriu-se que ela estava negociando delações com seus clientes com outros réus em potencial. Chegava no réu e falava ‘olha, se você não me contratar o meu cliente vai falar de você’”.

“A ficha disso caiu na Lava-Jato de Curitiba, e o que a Lava-Jato de Curitiba faz: ao invés de denunciar Beatriz Catta Preta por chantagem, dá um toque ‘se manda ou você vai comprometer toda a operação. Se manda com o que você já ganhou e desapareça’”.

“Então, você tem o caso do advogado que foi denunciado por pagar mensalidade para procuradores para blindar a clientela. Tem duas hipóteses: a primeira é que esses advogados estavam em conluio com o juiz e com os procuradores pagando propina”
https://jornalggn.com.br/tv-ggn/tv-ggn-20hs-o-advogado-de-marcelo-bretas-que-vendia-facilidades/amp/?__twitter_impression=true

O que me proponho a fazer aqui é preencher um vazio deixado pelo jornalista.

A advocacia é uma profissão regulamentada. Ela é essencial à administração da justiça, pois é da essência do processo que as partes sejam representadas por advogados. No caso específico do processo penal, a validade da condenação está condicionada ao efetivo exercício do direito de defesa e isso é impossível de ocorrer sem uma atuação eficaz do defensor do réu. A ineficácia da atuação do advogado compromete a validade do processo porque o réu ficou indefeso.

Para desempenhar satisfatoriamente sua atividade, o advogado tem algumas prerrogativas legais. As que eu gostaria de destacar aqui são: 

a) a inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações (art. 2º, § 3º, da Lei nº 8.906/1994); b) o exercício da profissão com total liberdade e sem qualquer tipo subordinação em relação aos outros membros do Sistema de Justiça (art. 7º, I c.c. art. 6º, ambos da Lei nº 8.906/1994). 

Essas duas prerrogativas definem uma característica essencial da advocacia: a autonomia de cada advogado em relação aos seus colegas de profissão e em face dos juízes, promotores e procuradores. Essa autonomia é tanto um direito quanto um dever (art. 31, § 1º, da Lei nº 8.906/1994). 

Um advogado que, por qualquer motivo, se coloca sob a tutela, proteção ou influência de outro ator processual deixa de cumprir seu dever de preservar a própria autonomia. No caso específico do processo penal a atuação submissa dele poderá ser considerada prejudicial ao réu acarretando a inevitável anulação do processo. “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão.” (art. 31, § 2º, da Lei nº 8.906/1994).

Quando o The Intercept noticiou que Deltan Dellagnol e Sérgio Moro mantinham uma relação promíscua, a comprometer tanto a autonomia do MPF quanto a isenção do Judiciário, algumas pessoas defenderam a conduta de ambos dizendo que isso é natural. Outros fizeram questão de dizer que os advogados de Lula também tinham ou poderiam ter o mesmo tipo de acesso ao procurador e ao juiz. 

O advogado realmente pode conversar com o juiz e com o procurador. Sempre que for necessário ou útil à defesa dos interesses do cliente dele ele tem o direito de fazer isso (art. 7º, incisos VIII, X, XI e XII, da Lei nº 8.906/1994). Todavia, o advogado não deve participar de camadas processuais secretas extra-oficiais (como aquela criada por Deltan Dellagnol e Sérgio Moro utilizando o Telegran). É vedado ao profissional inscrito na OAB entabular negociações ilegais ou participar de fraudes processuais. Caso isso ocorra ele poderá ser responsabilizado (art. 32, da Lei nº 8.906/1994).

A advocacia pertence àquilo que, na linguagem de Pierre Bourdieu, pode ser chamado chamado de Campo Jurídico. Todavia em virtude de ter regras próprias a advocacia também constitui um campo autônomo. As normas que foram aqui mencionadas vinculam tanto a atuação dos profissionais inscritos na OAB quanto a dos membros das outras carreiras jurídicas. 

Ao estudar o neoliberalismo, Bourdieu notou duas coisas importante. A primeira foi a capacidade da lógica das finanças de penetrar, controlar e defomar todos os campos de atuação humana:

“Quando o capital econômico, se torna, assim, princípio da legitimidade da ação política, pode-se falar em dominação simbólica e real da economia no campo político. Mas pode-se dizer o mesmo do ‘peso do dinheiro’ em outros campos: no esporte, na arte, na informação e mesmo, cada vez mais, no ensino e no mundo científico. Em outros termos, a época neoliberal se caracteriza pelo fato de que o capital econômico funciona, de uma sóvez, como poder material e simbólico no campo econômico e como princípio de dominação máxima sobre todas as formas de capital, em particular político, midiático e cultural, as quais não encontram legitimidade, salvo servindo, justificando e até incensando a acumulação do capital econômico.” (Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal, Christian Laval, Editora Elefante, São Paulo, 2020, p. 231/232).

A outra coisa que Bourdieu notou foi que a submissão das pessoas à lógica da acumulação financeira está fazendo-as sabotar e comprometer os limites (e até mesmo a credibilidade) dos campos em que elas atuam:

“Ora, o ‘herético’, portador de uma nova legalidade e de uma nova doxa no interior de um campo, se arrisca fortemente a se transformar em instrumento por vezes inconsciente da heteronomia econômica e política. E é bem isso que acontece na época neoliberal, quando o artista, o acadêmico ou o docente ‘inovador’, tentado talvez a contornar as regras do meio apelando às ‘leis de mercado’, aos financiamentos privados ou ainda aos modelos da empresa, se coloca, assim, a serviço do que arruína as condições da autonomia de seu campo.” (Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal, Christian Laval, Editora Elefante, São Paulo, 2020, p. 259).

Não compete a mim julgar a conduta do jovem advogado objeto do comentário de Luis Nassif. Todavia, me parece evidente que ele pode ter sido vítima da “geléia geral” criada pela Lava Jato, operação caracterizada por uma infinidade de abusos pequenos e grandes praticados por procuradores e juízes e legitimados pelos Tribunais (algumas vezes pelo próprio STF, Tribunal que até hoje se recusou a reconhecer a parcialidade de Sérgio Moro para julgar Lula).

O sucesso financeiro é importante, mas ele não é e não pode ser considerado o principal fundamento estruturante do campo da advocacia. O advogado não deve comprometer sua autonomia profissional em troca de dinheiro, de clientes ou do resultado favorável nos processos que têm perante uma Vara Federal ou Tribunal. 

A sedução do neoliberalismo judiciário lavajateiro é grande, especialmente quando ele garante remuneração farta e grande visibilidade na imprensa neoliberal. Mas quem pagará o preço da decadência do Sistema de Justiça não será apenas este ou aquele cidadão sem condições de comprar privilégios processuais.

As consequências deletérias da submissão do campo da advocacia à neoliberalização do Judiciário serão suportadas pela sociedade em geral e pelos advogados em especial. Eles são o último elo de segurança na corrente de uma civilização fragilizada que está prestes a se romper.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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