A Geografia: isso serve para fazer (e também ocultar) a guerra, por Francisco Ladeira

Conhecer a Geografia foi fundamental para a limpeza étnica promovida por Israel na Palestina, através do chamado “Plano Dalet” (1947-1948)

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A Geografia: isso serve para fazer (e também ocultar) a guerra

por Francisco Fernandes Ladeira

Em 1976, Yves Lacoste lançava o livro “A Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra” (título posteriormente mudado para “A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”), em que apresentava a tese de a Geografia ser um saber estratégico, intimamente ligado a um conjunto de práticas políticas e militares. Isso significa que, em um conflito, é necessário ter informações e estratégias de combinações geográficas, das relações entre os homens e as condições naturais.

De fato, no decorrer da história, os conhecimentos geográficos (ou a falta deles) foram essenciais nos mais variados tipos de conflito. “A derrocada de Napoleão Bonaparte começou após perder a batalha para dois inimigos: o exército e o inverno russos”, escreveu Tolstói, em seu clássico “Guerra e Paz”.

Décadas depois, este inverno deixou de ser “russo”, para se tornar “soviético”, mas não deixou de ajudar a derrotar outro poderoso inimigo: Adolf Hitler.

Conhecer a Geografia também foi fundamental para a limpeza étnica promovida por Israel na Palestina, através do chamado “Plano Dalet” (1947-1948), que almejava expulsar todos os árabes palestinos da região para impor um Estado exclusivamente judeu em toda a Palestina.

Segundo o historiador Ilan Pappe, por meio desse projeto, foi organizado um meticuloso mapeamento de todos os vilarejos palestinos (urbanos e rurais), registrando detalhes precisos como localizações topográficas de cada vila, suas vias de acesso, qualidade da terra, nascentes de água, principais fontes de renda, composição sociopolítica, filiações religiosas, nomes de líderes comunitários, relações com outros vilarejos e idade da população masculina.

Já no atual contexto da geopolítica palestina, podemos observar a presença de questões relacionadas aos conhecimentos geográficos nos ataques israelenses à Faixa de Gaza.

Nesse sentido, Luís Nassif, em artigo publicado no GGN, lembra que as cidades mais atingidas pelos bombardeios israelenses nos últimos dias – Gaza, Khan Younis, Rafah e Jabalia – estão localizados em uma área para a qual o governo de Tel Aviv possui um projeto (intitulado “Gaza MEZ”) que prevê a construção de um porto marítimo e uma rodovia.

O porto seria usado para exportar mercadorias produzidas em Gaza; a rodovia para transportar mercadorias entre Gaza e Israel. Trata-se, portanto, de criar a infraestrutura adequada para adaptar este espaço geográfico de acordo com as necessidades de circulação e acumulação capitalista.

Em relação aos recursos naturais palestinos, intelectuais como o economista canadense Michel Chossudovsky e o jornalista iraniano Hamid Hajizadeh, têm insistentemente denunciado que as incursões do exército israelense em Gaza não objetivam apenas desmantelar o Hamas, sob alegação de “combate ao terrorismo”. Há o interesse do Estado Sionista em controlar e se apossar das estratégicas reservas de gás naturais litorâneas que se encontram na porção setentrional deste território palestino.

Por outro lado, os conhecimentos geográficos podem ser utilizados para distorcer e/ou manipular informações, transformando-se, assim, em materiais para propaganda de guerra no conflito Israel-Palestina.

Em uma edição do Jornal da Globo, a apresentadora Renata Lo Prete associou as mortes de três mil e quinhentas crianças (ocasionadas por ataques do exército israelense em Gaza, no intervalo de um mês) às características etárias da população daquela região.

Decerto, conforme dados do Escritório Central de Estatísticas Palestino, a Faixa de Gaza possui uma das populações mais jovens do planeta, com 48 % dos habitantes na estrutura etária entre 0 e 14 anos. A taxa de crescimento anual da população é de 3,7%; a Taxa de Natalidade é 3,9%; e a Taxa de Fecundidade, 4 filhos por mulher.

No entanto, como advertiu o sociólogo Gabriel Feltran, em sua conta no X (antigo Twitter), é controverso analisar conflitos armados a partir da demografia, como feito por Renata Lo Prete, haja vista que os misseis israelenses possuem GPS; logo podem atingir um determinado alvo com “precisão cirúrgica”.

Portanto, o exército de Israel possui a tecnologia adequada para evitar ataques a regiões onde há altas concentrações de crianças.

Além das mídias tradicionais, as tecnologias digitais tem sido utilizadas como soft power em defesa da agenda bélica israelense.

Em texto intitulado “Satellite companies are restricting Gaza images” (Empresas de satélite estão restringindo imagens de Gaza), Max Tani revelou que, após a invasão do território de Gaza por Israel, no mês passado, empresas de satélite privadas estadunidenses – como Planet Labs e Maxar Technologies – optaram por “borrar” imagens do norte de Gaza, com objetivo de ocultar a localização de tanques israelenses (imagens estas que vinham sendo usadas por jornais para relatar o que se passava no terreno).

Aparentemente, a mudança ocorreu após uma reportagem do New York Times detalhar o posicionamento das forças invasoras, fator que gerou preocupação em oficiais de segurança do governo dos Estados Unidos. Em outros termos, as imagens de satélite poderiam exibir para o planeta eventuais crimes de guerra cometidos por Israel.

Desse modo, a partir do exemplo acima, parafraseando o livro de Lacoste, podemos inferir que “a Geografia não serve apenas para fazer a guerra”. No presente contexto geopolítico, a Geografia também serve para “ocultar a guerra”.

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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp

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