Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Com que roupa, por Felipe Bueno

Do mundo da queda do Muro de Berlim pouco restou; menos ainda sobrou dos tempos em que Bertrand Russell fez suas observações sobre o poder nu

Com que roupa

por Felipe Bueno

Voz sábia e ponderada numa época em que isso ainda tinha bastante importância, Bertrand Russell desenvolveu, no século passado, o conceito de poder nu, que ocorre, segundo o filósofo britânico, “quando os seus súditos o respeitam somente porque se trata de um poder, e não por qualquer outra razão”.

Para Russell, “a maioria das abominações” até então vividas pela humanidade teria relação com tal tipo de poder, resistente a restrições morais e origem de injustiças fundamentadas em tradições ilegítimas.

Naturalmente tal tema pode nos despertar a memória da fábula de Hans Christian Andersen, escrita no século anterior, sobre o rei que preferia suas roupas a seus súditos.

Guardemos a lembrança, por enquanto.

O poder nu observado por Russell, por mais falho de validação ou envolto em injustiça que fosse, era obrigatoriamente exercido por uma ou mais pessoas em nome e por meio do Estado, numa conveniente troca de legitimações – falsas ou não – com o propósito de transformar em poeira o conceito iluminista de soberania do povo. De qualquer forma, ainda que ignorada na prática, a vontade da sociedade era no mínimo formalmente representada por uma instituição – a instituição nacional.

E, para além dos Estados, havia os órgãos políticos internacionais, e talvez o papa, dependendo da fé de quem lê essas linhas.

Décadas depois dos escritos de Russell, o velho mundo bipolarizado da Guerra Fria se transformava no novo mundo da democracia liberal globalizada, no qual a rápida ultrapassagem das fronteiras geográficas se somava ao desmanche dos limites entre os poderes nominais das nações e os poderes efetivos exercidos pelo capital privado transnacional.

Estudado à exaustão entre as décadas de 1980 e 1990, o assunto das cercas derrubadas, assim como tantos outros, passou por um processo de normalização no noticiário, enquanto ao cidadão comum coube – e ainda hoje cabe – pouco além de cuidar da própria vida, tendo como compensação as maravilhas de consumir cada vez mais ficando cada vez menos satisfeito.

Do mundo da queda do Muro de Berlim pouco restou; menos ainda sobrou dos tempos em que Bertrand Russell fez suas observações sobre o poder nu, que, em 2024, cada vez mais desavergonhado, abre mão de seus trajes – disfarces – para se apresentar como resposta a eleitores incapazes de depositar suas esperanças em promessas desgastadas repetidas de maneira interminável. Se esse strip tease civilizatório não for impedido antes da retirada da última peça, não restará à humanidade nem a chance de abandonar o cabaré no meio do espetáculo: as saídas de emergência estarão todas fechadas.

Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.

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