Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
[email protected]

O Momentum Olímpico – da Grécia a Hitler e Marine Le Pen, por Daniel Afonso da Silva

O presidente Macron dissolveu o Legislativo francês seguro de que teria o hiato olímpico para descansar e meditar. Mas não deu.

do Insight Inteligência

O Momentum Olímpico – da Grécia a Hitler e Marine Le Pen

por Daniel Afonso da Silva

A ambiência desportiva tomou conta dos espíritos neste julho-agosto de 2024. O mundo inteiro sucumbiu aos encantos dos Jogos Olímpicos de Paris. Todos os olhares – uma hora ou outra – se moveram para a França e, notadamente, para a sua capital, sedes da edição olímpica do 26 de julho ao 11 de agosto. Desde a cerimônia de inauguração que os qualificativos começaram a se proliferar, de modo que expressões como “fantástico”, “chocante” e “histórico” têm sido as mais empregadas desde então.

Patrick Boucheron, responsável pelo argumento da encenação, traduziu o feito como “un récit sans paroles” [uma narrativa sem palavras]. E ele, nisso, tem razão; pois, foi mesmo.

Jamais mobilizou-se tanta história nesse tipo de evento. De Lady Gaga à Céline Dion. De Snoop Dogg a Tom Cruise. Da Catedral de Notre-Dame ao Trocadero e daí à Torre Eiffel. Quase tudo sobre a pulsão do Rio Sena. Inédito e, sim, fantástico. Fantástico, sobretudo, porque jamais se ousou integrar fisicamente uma cidade no protocolo de abertura e encerramento. A convenção, até agora, antes de Paris, sugeria espaços controlados. Em estádios, quase sempre. Tudo comportado e com muito decoro. Alguma decoração, sim, mas nunca em namoros prolongados com a transgressão.

Na abertura dos Jogos de Londres, em 2012, por exemplo, ousou-se simular um salto de paraquedas de Her Majesty Elisabeth II, ladeada pelo ator Daniel Craig, encarnando James Bond. Isso e só isso. E mesmo assim foram severas as críticas contrárias ao cerimonial. O que, seguramente, ajudou a impor o caráter – embora bonito – extremamente sóbrio e discreto da peça de abertura dos Jogos do Rio de Janeiro em 2016.

Agora, 2024, em Paris, foi diferente.

O véu caiu e nenhuma ilusão ficou. A transgressão tomou conta. Tudo foi transgressivo e transgressor. O espetáculo, a parada dos atletas e o protocolo das autoridades foram, claro, respeitados. Mas só. Todo o resto foi em tudo muito diverso e diferente. Ambientado em gestos políticos ostensivamente meditados. Não simplesmente por Thomas Jolly, responsável artístico do cerimonial. Mas por todos os envolvidos. Do presidente da República aos mais modestos divergentes setoriais. Adeus, romance nacional. Adeus, Ocidente. Deu-se voz a pluralidades. O desconforto foi geral. O identitarismo dominou a cena. O imperativo woke passou a imperar. Não sobrou nada de harmonioso do récit francês. E ainda não se sabe se isso foi bom ou ruim.

Jacques Attali, organizador do cerimonial do Bicentenário da Revolução Francesa em 1989, considerou o festejo olímpico de agora, em 2024, como um marcador de temperamentos. Em seu entender, ousou-se muito e, assim, abriu-se o cenário para duas situações: ou bem a variedade francesa estampada no evento veio para ficar e se impor ou, em contrário, a nostalgia do status quo ante voltará, com força, à tona.

Mas, para se notar se esse dilema realmente merece ser cogitado, cumpre inserir os Jogos de Paris em perspectiva. Só assim vai ser possível mensurar o seu nível de inovação ou não.

Dessa maneira, de volta ao início, ao mundo antigo, aos tempos gregos, clássicos e romanos, vale notar que o esporte sempre figurou no coração da cité, como protagonista da polis e indissociável da política. Consequentemente, os Jogos Olímpicos nasceram como expressão de uma manifestação, franca e genuinamente política. Tanto que, quando o imperador Teodósio decidiu suprimir as competições no ano 393, ele também o fez ancorado em cálculo político. Ele era católico e considerava que os Jogos promoviam eventos pagãos, o que representava um perigo à fé e ao império cristão.

Por claro que a supressão dos Jogos não inibiu as práticas esportivas nem as competições. De modo que foram numerosas as interações esportivas em todas as partes do medievo à era moderna. Mas foi apenas no século XIX que o espírito olímpico originário voltou a flamejar. E voltou renovado e com pretensões universais. Muito disso vai devido aos britânicos, que, por seu turno, inovaram o sentido das competições, dando a elas significação comercial, econômica e capitalista. Muito além, portanto, do espetáculo, das performances e do fair play.

Feito assim, durante a segunda metade do século XIX, esse novo modelo de competição foi inoculado em todos os domínios do British Empire e em todo o espaço anglo-saxônico, envolvendo, também, os Estados Unidos da América. Os europeus continentais – com destaque para os franceses – ingressariam nessa onda no último quartel daquele século e teriam um papel decisivo. Tanto que, não vai demais lembrar, deveu-se a um francês, o barão Pierre de Coubertin, a renovação dos Jogos.

Tudo se deu naquele famoso Congresso da Sorbonne de junho de 1894. Foi nele que Coubertin apresentou à plêiade de sábios franceses – e recebeu o seu aval – a proposta de reavivamento dos Jogos. E, desde então, os novos Jogos viraram uma obsessão. Tanto que, no plano burocrático, foi imediatamente criado o Comitê Olímpico Internacional (COI) e, no plano prático, foi urgentemente organizada a reinauguração dos Jogos na simbólica cidade de Atenas, dos dias 6 a 15 de abril de 1896.

E, assim, pouco a pouco, a integralidade das competições esportivas passou a portar dimensões internacionais e multilaterais. Ainda em 1896, por intermédio do Racing Club de France e do Stade de France, seria criada a União de Sociedades Francesas de Esportes de Atletismo, que serviria de base para a criação, em 1904, da Federação Internacional de Football Association, FIFA, e de tantas outas instituições.

Vivia-se a Belle Époque. Tudo parecia seguir bem. Coubertin acentuou o caráter pacifista das competições e dos Jogos. O fair play parecia funcionar como atalho para a paz. Mas, não. A explosão da Primeira Grande Guerra demonstrou que era tudo ilusão.

Nessa primeira fase dos novos Jogos, antes de 1914-1918 e depois até 1948, os europeus dominaram a cena. Dos doze eventos concebidos, dez tiveram lugar na Europa. 1896 na Grécia (Atenas), 1900 na França (Paris), 1908 na Inglaterra (Londres), 1912 na Suécia (Estocolmo), 1920 na Bélgica (Antuérpia), 1924 na França (Paris), 1928 na Holanda (Amsterdã), 1936 na Alemanha (Berlim).

As edições de 1904 e 1932 ocorreram nos Estados Unidos (Saint Louis e Los Angeles) e a edição de 1916, que deveria ocorrer na Alemanha, não ocorreu em função da guerra. E os russos – depois soviéticos – começariam a participar apenas em 1952.

Tudo isso foi marcante e permitiu a consolidação dos novos Jogos. Mas o grande turning point seria, indiscutivelmente, promovido pelos Jogos de Berlim, em 1936.

A humilhação em Versalhes, o mal-estar de Weimar, a hiperinflação dos anos de 1920 e a crise de 1929 tornaram a situação alemã e berlinense, no mínimo, desafiadora. A imagem externa do país era vexatória e a brutalização das relações internas, gérmen dos extremismos ulteriores.

No âmbito do desporto, a delegação alemã – como a de todos os países vencidos na Grande Guerra de 1914-1918 – tinha sido proscrita dos Jogos da Bélgica em 1920 e tinha participado marginalmente nos Jogos de 1924 na França e de 1928 na Holanda. Os contratempos econômicos e políticos tinham, claramente, influído negativamente em todas essas suas atuações. Mesmo assim, os esportistas alemães seguiam atentos aos movimentos do COI, pois tinham esperança de sediar os Jogos. E, especialmente após os Jogos de Amsterdã, em 1928, começaram a reivindicá-los abertamente. Para 1932, estava certo que seria em Los Angeles, nos Estados Unidos. Faltava decidir sobre 1936. E foi nisso que o dignitário alemão, Karl Dean, apresentou a candidatura da Alemanha.

Foi uma operação de sedução. O presidente do COI era o conde belga, Henri de Baillet Latour, cuja mulher era uma alemã traumatizada com a situação da Alemanha após 1918. Karl Dean, sabendo disso, sensibilizou o conde Latour sugerindo que Berlim merecia ser a sede – em lugar de Barcelona – como uma forma de reparação às injustiças da Paz de Versalhes. Argumentou que os Jogos seriam uma vitrine externa para a reabilitação do país e um combustível interno para levantar o moral dos alemães.

Postos assim, os supostos de Karl Dean eram fortes demais. De maneira que sensibilizou o conde Latour a convenceu o COI a escolher a Alemanha para sediar os Jogos de 1936.

O ano era 1931.

Dois anos depois, em 1933, Hitler chegou ao poder e era contra os Jogos. Considerava-os decadentes e degenerados; e, assim, impróprios aos alemães, arianos e “superiores”. De modo que, desde os primeiros dias, a preparação dos Jogos foi interditada.

Mas Karl Dean não se deu por vencido. E, tão logo pôde, iniciou expedientes no entourage do Führer. E não tardou a convencer Goebbels. Que, por sua vez, convenceu o Hitler. Com o argumento de que os Jogos seriam, sim, uma vitrine mundial para a Alemanha, mas, também e sobretudo, para o Reich. O Führer gostou e encarregou Goebbels de pôr em marcha um plano de ação.

Como suíte, perto de 100 mil pessoas foram, imediatamente, mobilizadas para construir um estágio e uma vila olímpica “dos sonhos”. Hitler queria demonstrar a superioridade alemã, sobretudo nisso. Para tanto, no dia 10 de abril de 1933 autorizou, em pessoa, a liberação de 6 milhões de reichsmarks para as obras, que ele queria faraônicas. Com conforto e convivialidade, claro. Mas, também, com imperiosidade, suntuosidade e perfeição, as quais, ao longo de 1934, como uma mostra do Reich, encantou o COI e as delegações dos países industrializados, que passaram a louvar o savoir faire da gente de Berlim.
Mas o encanto durou pouco. A publicação da insuspeita lei racista de Nuremberg, em 1935, causou choque e rejeição mundiais. Muitos atletas ficaram, moralmente, impossibilitados de seguir treinando. Muitas delegações opuseram-se, politicamente, ao regime de Berlim. Tantas outras passaram a advogar, abertamente, pelo boicote geral dos Jogos.

Ernest Lee Jancke, presidente do Comitê Olímpico norte-americano, chegou a enviar, no dia 20 de outubro de 1935, uma dura carta ao conde Latour denunciando a deriva alemã com a lembrança de que a “igualdade de raças e crenças no esporte” era uma “antítese da ideologia nazista”. Outras manifestações similares vieram de mandatários do mundo inteiro.

O conde belga, por sua vez, deu de ombros. Ignorou tudo, acentuando o caráter apolítico da competição e sustentando, moralmente, a lisura da gente de Berlim. E, se isso não bastasse, solicitou ao presidente Roosevelt que destituísse o “impertinente” Ernest Lee Jancke – o que, sem surpresas, ocorreu.

Outra pressão consistente veio dos comunistas espalhados pela Europa e pelas Américas. O camarada Stálin determinou que seus partidários convencessem a opinião pública mundial a resignar os Jogos de Berlim. A chegada do Front Populaire e de Léon Blum à Presidência do Conselho de Ministros na França também pesou a favor desse boicote geral.

Mas Hitler – assessorado por Goebbels e Karl Dean – nada medrou, nem se intimidou. Do contrário, dissuadiu a todos, no mundo inteiro, do fair play do Reich. E, para confirmar sua trama, lançou mão de uma estratégia, relativamente simples e pouco custosa: reabilitar a personagem icônica de Pierre de Coubertin.

Pierre de Coubertin – aquele mesmo do Congresso da Sorbonne de junho de 1894 –, nascido em 1863, estava vivo em 1936. Vivia, discreta e modestamente, em Lausanne, onde, entre outras coisas, amargava um verdadeiro ostracismo. Karl Dean, sob a orientação de Goebbels, localizou-o e iniciou uma operação de sedução para levá-lo a cooperar com o Reich. Houve, de início, certa resistência de Coubertin. Mas durou pouco. Foi tão somente até Hitler, em pessoa – participado das dificuldades financeiras do francês –, autorizar um expressivo pro labore e uma ostensiva campanha de reabilitação da sua imagem, do aguerrido e esquecido barão francês.

Persuadido, então, a colaborar, Coubertin, na qualidade moral de patrono dos Jogos modernos, gravou uma mensagem – milimetricamente confeccionada por Goebbels e Karl Dean – uma mensagem, difundida nas rádios do mundo inteiro, favorável aos Jogos de Berlim, favorável aos esforços de organização do Reich e favorável à participação de todas as delegações. Ele serviu, assim, de fiador moral do evento. E deu certo. As resistências foram dissipadas. Então, em inícios de julho de 1936, a capital alemã começou a receber atletas, turistas e profissionais do mundo inteiro. E do dia 20 de julho a 16 de agosto – respectivamente quando a chama olímpica foi acesa e quando os Jogos foram encerrados – a Alemanha contou com o incremento de mais de 100 mil espectadores vindos de todas as partes.

Hitler e Goebbels tinham pensado em tudo. O propósito geral era o coroamento planetário do Reich. A recolta de medalhas, claro, daria demonstração da superioridade ariana. Mas, o mais relevante, no plano político, era a exposição em imagens de um regime legítimo, frequentável e poderoso. E, nisso, o sucesso da operação – que começou na cerimônia de abertura dos Jogos – foi total.

Fazia tempo bom em Berlim na inauguração dos Jogos. Era verão. Verão boreal. Fim de tarde, mês de julho, fim de mês. O estádio – construído majestosamente sob medida para o evento – estava abarrotado de gente. Quarenta e nove delegações marcavam presença. O decoro da cerimônia parecia impecável. O conde de Latour, presidente do COI, acompanhava e coordenava tudo em pessoa. Outras dignidades do esporte mundial também ocupavam a tribuna. Até que Hitler e o seu alto comando começaram a transgredir. Em lugar de apresentar-se ao público em trajes civis – como tinham feito na divulgação dos Jogos –, adentraram o estádio em vestimentas militares, com tons marciais e marcha triunfal.

Todos os presentes estranharam. Mas não a ponto de considerar estranho demais. Mas a trama maior viria em seguida. Hitler tomou assento na tribuna e deu-se o start para as delegações começaram a desfilar. Tudo havia sido friamente maquinado. Os atletas tinham sido orientados a acenar para a tribuna com a saudação olímpica. Entretanto, essa saudação – que ninguém notou ou quis notar – simulava a saudação nazista. O culto ao guia. O Heil Hitler.

Persuadidos, de última hora, da armadilha, os diplomatas norte-americanos orientaram os seus atletas a abraçar um chapéu branco ao peito, tão logo desfilassem diante da tribuna, em lugar de simular aquela nefanda saudação.

De toda sorte, televisores e jornais do mundo inteiro registraram e reproduziram a cena do Führer sendo “oficialmente ovacionado” pelos demais. Goebbels, nessa tarefa, mais que ninguém, foi impecável.

Dotado de profissionalismo sem par, desde bem antes, ele investigou os melhores e mais influentes jornalistas e radialistas dos principais países do mundo e os convidou, pessoalmente, para participar da cobertura dos Jogos. O seu convite foi tão convincente que, no dia da abertura, havia perto de 1.200 jornalistas internacionais em Berlim e mais de 2.500 estações de rádio sintonizadas no mundo inteiro. Se isso não bastasse, o ministro do Führer ainda contratou equipes inteiras de fotógrafos e film makers para registrar o momento.

Evidentemente que nenhum nazista – Hitler à dianteira – apreciou o registro das performances simplesmente extraordinárias do atleta negro e norte-americano Jesse Owens, que levou quadro medalhas de ouro – nos 100 e nos 200 metros, no salto à distância e no revezamento 4 x 100 metros. Mas esse foi um singelo detalhe daqueles Jogos que entraram para a História como os Jogos da vergonha.

Findados os Jogos, veio a guerra.

Em verdade, em 1936, a Itália já havia avançado sobre a Etiópia, os espanhóis já viviam a sua penosa guerra civil e o Japão já se preparava para invadir a China. Em seguida, a blitzkrieg nazista infestou a Europa.

Veio a Grande Guerra e, em seguida, certa paz.

A partir dos anos de 1950, os Jogos foram reabilitados.

E reabilitados sob novas marcas. Por um lado, a diversidade; por outro, a conflitualidade.

De Malbourne em 1956 a Paris em 2024, das dezessete edições, dez ocorreram fora da Europa. A simples multiplicação de países no mundo após 1945 – efeito decisivo das descolonizações – justificou essa descentralização do evento. Mas a contenção da Guerra Fria também. Sob a Guerra Fria, a Europa deixava de ser um lugar consequente para os Jogos. Os ibéricos viviam ditaduras. Os mediterrâneos, a entropia sem fim. A Alemanha, a divisão. Os países do Leste, o julgo comunista. Sobravam, assim, poucos países frequentáveis no espaço europeu. Tanto que a marca do que se vivenciou olimpicamente nesse período foi o boicote. Um boicote que imperou até 1988, nos Jogos de Seul.

Doravante, a partir de 1992, em Barcelona, enfim, os Jogos voltaram a ser um espetáculo mundial sem par. Até se chegar, assim, aos Jogos de 2024, em Paris.

A indicação de Paris precisou de três candidaturas para vingar. Somente em 2015 conseguiu-se fazê-la emplacar.

2015, um ano, em si, curioso.

Nesse ano, Paris sediou a COP do clima e teve sucesso na conclusão do Acordo de Paris. Mas, também, nesse ano, a cidade luz amargou os cruentos atentados terroristas no Charlie Hebdo e no Bataclan.

Se isso não bastasse, em 2015 vivia-se amplamente os contrastes da crise financeira de 2008. A crise do euro ainda era visível e palpável. Não se falava mais em PIGS – Portugal, Inglaterra, Grécia e Espanha – como países a serem expulsos da união econômica. Mas a presidência de François Hollande era frágil e insignificante. O “Regime Change” na Líbia acentuava a imigração massiva de africanos para a Europa. Os beligerantes do Magrev ameaçaram tomar o Mali. Os franceses foram obrigados a iniciar uma nova operação militar na África, a operação Serval. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, já havia anunciado e autorizado o referendum sobre a situação do Reino Unido na União Europeia. O Brexit, assim, já estava encomendado. As contradições da Primavera Árabe já causavam estupor em todas as capitais relevantes do mundo. A situação na Síria constrangia todas as ações de Paris, Londres e Washington. O martírio de Palmira era crônico. Desde o Leste europeu, a tensão russo-ucraniana só aumentava, e o Euromaidan tinha sido apenas mais um episódio do imenso mal-estar. Do outro lado do Atlântico, a presidência de Barack Obama vivia um descrédito impressionante. O choque da crise financeira de 2008 ainda era devastador entre os norte-americanos. E a incapacidade de superá-lo conduzia o país inteiro ao desconhecido. Não representando, assim, surpresa alguma a eleição de um tipo feito Donald J. Trump nas presidenciais seguintes. De volta ao Velho Mundo e à França, essa conjuntura de fragilidades também aturdia os franceses. Que produziram, por um lado, o sucesso eleitoral de Emmanuel Macron e, por outro, a insurgência dos Coletes Amarelos.

Só o esgarçamento total do tecido social francês permitiria a emergência de um outsider feito Macron à presidência da República francesa. As contradições políticas, aceleradas pela crise financeira de 2008, cooperaram para a destruição do sistema partidário do país. Os partidos tradicionais, nesse processo, foram praticamente esterilizados. De modo que, com algum tônus ideológico, goste-se ou não, restaram apenas o movimento de Marine Le Pen e o confuso En Marche de Emmanuel Macron. Movimentos e personalidades que, não ao acaso, foram levados ao segundo turno das eleições presidenciais francesas de 2017. Macabro cenário. Le Pen versus Macron. Que conduziu os franceses a votar no desconhecido Macron como meio de bloquear a ascensão dos conhecidos herdeiros do protonazista de Jean-Marie Le Pen.

Acharam, de início, bom. Mas não foi suficiente.

Findas as eleições, vieram os tormentos.

As fraturas sociais francesas – tangidas pela mescla de desemprego estrutural, rebaixamentos sociais, afluência imigratória e impotência decisória –, de tão expostas, acabaram por fabricar a contundência dos protestos populares, nominados de “Gilets Jaunes” (Coletes Amarelos), a partir de 2017-2018. Não adiantou fugir, a instabilidade tomou conta. E, observando tudo com sinceridade, o governo Macron só não foi a pique por milagre. A pressão popular foi imensa. E só serenou com a crise sanitária de 2020-2021. Mas, nesse entremeio, os partidários de Marine Le Pen só fizeram crescer. Tanto que o segundo turno das presidenciais de 2022 repetiu a fotografia do segundo turno de 2017: deu, novamente, Le Pen versus Macron. Quanto desespero! Quanta desolação!

Macron foi reeleito. Mas não com margens.

A capilaridade dos eleitores de Marine Le Pen avançou muito. E, após 2022, seguiu crescendo. E cresceu a ponto de cravar 32% da preferência geral dos franceses nas eleições europeias do 7 de junho de 2024.

Diante disso, o pânico tomou conta.

Os jornais matinais e vespertinos antecipavam o fim do mundo: 2027, Marine Le Pen no Élysée. E políticos de todas as colorações percebiam o mesmo. O que acuou Macron, que, perplexo, decidiu pela dissolução do Legislativo francês e pela convocação de eleições internas.

Como resultado, no dia 9 de julho, o preenchimento das 577 cadeiras disponíveis no Parlamento francês tornou a realidade política francesa ainda mais perigosa e confusa.

A Nova Frente Popular (NFP), liderada por Jean-Luc Mélenchon e pelo seu partido, A França Insubmissa (LFI), aquinhoou 182 cadeiras. A Maioria Presidencial (MP), aglutinada no grupo Juntos (Ensemble, que substituiu En Marche), liderado por Emmanuel Macron e pelo seu partido Renascimento, conseguiu 168. O Reagrupamento Nacional (RN), de Marine Le Pen, de braço com parcelas de Os Republicados (LR) de Éric Ciotti, conseguiu 143. O grupo dos LR que permaneceu gaullista – sem, portanto, se aliar a Marine Le Pen – levou 46. Ao passo que a variedade independente à direita conseguiu 14; a à esquerda, 13; e a ao centro, 6. Enquanto o partido dos regionalistas levou 4 cadeiras e outras agremiações nanicas unidas, 1.

Ou seja, ninguém ganhou. Nenhum agrupamento político conseguiu maioria absoluta nem relativa. A presidência de Macron saiu ainda mais fragilizada, pois, sem maioria parlamentar, obrigou-se a tornar demissionário o primeiro-ministro Gabriel Attal e o seu conjunto de ministros. Isso no 9 de julho. Duas semanas antes da inauguração dos Jogos. Quanta angústia!

O presidente Macron dissolveu o Legislativo francês seguro de que teria o hiato olímpico para descansar e meditar. Mas não deu. A evolução do RN de Marine Le Pen não sai de sua imaginação. Muito mais “fantástico”, “chocante” e “histórico” que a abertura dos Jogos tem sido, portanto, o momentum político, econômico e social francês. Um momentum, sinceramente, desafiador. Quem sabe, missão impossível. Mas aí, mais para Tom Cruise do que para Macron.

Daniel Afonso da Silva é pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados [email protected]

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador