Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Escola Especial não é inclusiva, por Ana Laura Prates

Se o MEC tem encontrado problemas para efetivamente sustentar uma educação inclusiva e não capacitista, conforme prevê nossa Constituição, esses problemas precisam ser enfrentados e resolvidos e para isso é necessário vontade política

Escola Especial não é inclusiva

por Ana Laura Prates

Sou mãe de um jovem adulto com Síndrome de Down, o Gabriel. Quando ele nasceu eu morava em um pequeno prédio de dois andares no bairro do Paraíso, em São Paulo. Lembro-me que da minha varanda eu via passar diariamente uma senhora com seu filho adulto, também com Síndrome de Down. Caminhavam de mãos dadas, e ele ia de cabeça baixa e puxando um carrinho de brinquedo por um cordão. Aquela cena me entristecia muito, não por eventuais limitações daquele homem: cognitivas, motoras ou quaisquer que fossem, mas sim pela posição infantil na qual ele se encontrava, testemunhando as consequências terríveis da segregação de pessoas com deficiência, inclusive no âmbito das relações familiares.

Quando o Gabriel nasceu eu dava aulas em uma Universidade, e uma das disciplinas se chamava “Psicologia do Excepcional”, termo que já me incomodava profundamente. Eu passava o curso lendo com as alunas e alunos autores como Goffman e Canguilhem para descontruir a ideia de que a deficiência é uma patologia.  Algum tempo depois, veio o supostamente benevolente deslocamento de “excepcional” para “especial”. Antes ainda, eu havia dado aulas de “educação especial” no curso de Pedagogia. Ali pude acompanhar a extensa produção de artigos, até os anos 70, sustentando ideias atualmente consideradas absurdas como, por exemplo, que os surdos não desenvolvem raciocínio abstrato.  Felizmente muito se avançou em relação a este ponto graças, sobretudo, à militância dos surdos e suas famílias. O mesmo movimento de reação ao preconceito encontramos entre os cegos, pessoas com deficiência física e intelectual.

Especificamente em relação à educação, sabemos que no Brasil é proibido negar o acesso escolar a crianças com deficiência desde 1989. O artigo 8º da Lei nº 7.853, diz que “constitui crime punível com reclusão de um a quatro anos e multa (…) recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado por motivos derivados de deficiência”. A Constituição de 1988, por sua vez, reafirma o direito universal à educação. Na prática, entretanto, a aplicação efetiva desta lei exigiu um esforço enorme por parte das famílias para garantir seus direitos, muitas vezes precisando apelar para a Justiça, impetrando mandados de segurança para que as escolas “aceitassem” as matrículas de seus filhos.

Nos últimos 30 anos o Brasil avançou de modo decisivo no que diz respeito à garantia do direito à educação das pessoas com deficiência em escolas comuns, como o atestam: o artigo 24 da Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência do qual o Brasil é signatário, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 e a Lei Brasileira de Inclusão que afirma o direito à educação em um sistema educacional inclusivo.

Meu filho Gabriel entrou na escola Espaço Viva Vida com dois para três anos, onde ficou até o final da educação infantil, pois à época naquela escola não havia ainda o ensino fundamental. 2006 foi um ano de muita apreensão em nossa família, pois a matrícula de uma criança com deficiência no ensino fundamental ainda era uma luta. Era uma época, aliás, em que crianças com deficiências eram chamadas de “especiais”. Mas nós havíamos conseguido a matrícula em uma escola que tinha fama de inclusiva. Finalmente eu estava segura, com a matrícula paga e conversas feitas com a coordenação. Eis que recebo um telefonema da dita escola inclusiva, comunicando que a matrícula do Gabriel estava mantida, mas em outro período, pois de manhã já havia uma criança com Síndrome de Down matriculada no primeiro ano. O mundo desabou. Na época era simplesmente impossível administrar uma mudança de período com os horários de trabalho e os horários de minha filha Luiza, apenas um ano mais nova, além de todas as atividades necessárias: fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, etc. Simplesmente impossível. Além disso, como ficava a relação de confiança com a escola, que havia se comprometido e depois recuava daquela forma, em pleno mês de novembro?

Repito, o mundo desabou. Era uma sexta-feira no final da tarde e a angústia atingiu níveis quase insuportáveis. Todo mundo sabe que em novembro todas as crianças já estão matriculadas. Como conseguir uma escola que abrisse as portas para uma criança com Síndrome de Down, fora do período oficial de matrícula? Foi graças à abertura da educadora Paula Cury – que atualmente participa da Casa Pitanga em Lisboa – que conseguimos resolver o problema. Na segunda-feira estávamos a postos para uma reunião com a Paula, e no mesmo dia o Gabriel estava matriculado na Escola Santi. Ele foi o primeiro aluno com Síndrome de Down daquela Escola.  Esse é um caso muito interessante, pois a própria Santi havia se recusado a receber o Gabriel na Educação Infantil, alegando não estar preparada. Mas como se preparar a não ser a partir da própria experiência?

Essa geração abriu muitas portas. Era a transição da era da segregação das escolas especiais para a era da inclusão. Sempre digo que, se falamos em inclusão, é porque a possibilidade da exclusão está nos rondando onde menos esperamos. Hoje, por exemplo, não teríamos separado o Gabriel de seus queridos amigos porque ele “precisava” repetir o primeiro ano, por não estar alfabetizado. Atualmente já sabemos que uma criança com deficiência pode aprender através de outros recursos, se tiver acesso a materiais adaptados, que inclusive estimulam o próprio processo do letramento, que especificamente para o Gabriel foi bastante lento. Na época não sabíamos disso.

Disseram que ele não aprenderia matemática. Mas ele aprendeu. Disseram “pra que línguas?” e hoje ele tem aulas regulares de inglês, porque gosta. O Gabriel se formou no Ensino Fundamental II da Escola Santi, dez anos depois daquela matrícula dramática e hoje ela recebe vários alunos com Síndrome de Down e com outras deficiências. Estou certa de que os professores e colegas poderão testemunhar o quanto aprenderam com a presença do Gabriel na Escola.

Em 2017, começamos um novo desafio no Ensino Médio. Apostilas e mais apostilas, muitas matérias e professores diferentes. Desde o Fundamental II o Gabriel sempre contou com a presença de um mediador, e assim seguimos no Anglo da Vila Clementino, pequena escola de bairro que infelizmente fechou, logo após a formatura da turma do Gabriel. Disseram: “pra que física?”, “pra que química?”. Respondemos: “Porque não?” Nessa Escola, Gabriel pôde viver sua adolescência convivendo com a diversidade, fazendo amigos que testemunharam profundas transformações a partir da convivência com ele. Tivemos sorte, mas também muito apoio, especialmente dos profissionais do Espaço Mosaico que, entretanto, enquanto “instituição especializada” não pode nem deve substituir a Escola. No nosso caso, tanto os mediadores quanto a adaptação de material sempre foi pago à parte da mensalidade escolar, por nossa família. Esse “detalhe” revela que a educação inclusiva ainda precisa avançar muito para ser uma realidade estabelecida em nosso país, em nível das escolas privadas que, lembremos, são concessões públicas.

Hoje o Gabriel toca bateria, namora, sai e viaja com os amigos, malha, anda sozinho de metrô. Mas, principalmente, é um cara boa praça, e um homem de seu tempo, lidando com suas limitações e talentos. Está se preparando para possivelmente ingressar na Universidade, onde nova luta certamente terá início, e para o tão almejado curso de DJ, assim que pudermos sair da quarentena que estamos cumprindo devido à Pandemia. Todo esse testemunho retrata a realidade de uma família de classe média, branca, privilegiada, na cidade de São Paulo. Precisamos lembrar que, no Brasil, mais de 70% das crianças estudam em escolas públicas, tornando ainda mais importante a luta pela efetiva inclusão de crianças com deficiência, sobretudo daquelas que já sofrem a segregação econômica, dentre outras. Isso implica em formação de corpo técnico especializado, além de várias adaptações de acessibilidade, como material pedagógico, arquitetura, linguagem, etc.

Nesse contexto, o Decreto 10.502 publicado em 01/10/2020 pelo Governo Federal é um retrocesso absurdo e injustificável. Se o MEC tem encontrado problemas para efetivamente sustentar uma educação inclusiva e não capacitista, conforme prevê nossa Constituição, esses problemas precisam ser enfrentados e resolvidos e para isso é necessário vontade política, trabalho qualificado e investimento em equipamento e formação. Mas sabemos muito bem que esse Decreto na verdade é uma manobra para desviar recursos do MEC para “instituições especializadas”, portanto, mais uma vez o que está em jogo são interesses dos grupos econômicos que sustentam o atual governo. Daí a razão pela qual ele não ter sido debatido com entidades representativas das pessoas com deficiência e suas famílias, tampouco com a sociedade, especialistas e educadores. Trata-se, portanto, fundamentalmente, de mais um ataque à educação pública em nosso país.  A ideia cínica contida no Decreto de que a escola inclusiva ou especial é uma escolha das famílias esconde na verdade mais uma medida claramente fascista deste governo, desta vez em relação às pessoas com deficiência.

O que nós precisamos, ao contrário, é ampliar a acessibilidade de modo a garantir os direitos das pessoas com deficiência no sistema educacional e uma escola pública de qualidade para todos, em todos nos níveis. O direito à segregação é uma falácia! É preciso que toda a sociedade se mobilize com urgência contra o imenso e perverso retrocesso que o Decreto 10.502 pretende nos impor.

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

4 Comentários

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  1. Bom dizer da necessidade das instituições (públicas em especial) de se prepararem em todos os níveis para que possam promover a educação inclusiva.
    Mas no texto há algo esclarecedor: “além de todas as atividades necessárias: fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, etc.”. Pelo visto, há muito além da escola. Há também que se cobrar. Será que quem tem filhos em escolas publicas teriam como providenciar tudo isso? Sem contar a infra toda de se dedicar, transportar, etc.

    1. Bem posto Evandro…Em geral, no sistema público de saúde essas terapias são quase inacessíveis e quem tem plano de saúde precisa entrar na justiça para garantir o direito ao acesso.
      O incentivo a criação de centros de referências públicos que atendam a necessidades desse público é essencial. É triste que a maioria não tem acesso e há raríssimas e honrosas exceções de políticas públicas e ações de organizações da sociedade civil que garantem acesso a terapias.

    2. Sim Evandro! Precisamos lutar por uma escola pública de qualidade para todas as crianças, com desenvolvimento típico ou não e sem capacitismo. E também por instituições especializadas (que não são escola) e que possam realizar atendimentos de qualidade no contra turno. Essa luta é histórica! Mas segregar, nunca é a solução!

  2. Excepcional o seu relato. Tenho uma filha com TEA e percebo nessa medida do governo um retrocesso, como outros em diversos campos de relações sociais, econômico e político-institucional.
    É uma forma de segregar ao invés de incluir, sendo a escola um espaço de construção de conhecimentos e trocas de vivências de crianças. Se for em frente, o país não avança e começaremos a ter espaços segregados e a potencializar ainda mais o preconceito e a ignorância ( simplesmente por não oportunizar as convivências dos.diferentes)

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