Fausto Godoy
Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM
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A saga da Índia (VI) – O Hindutva e o nacionalismo hindu, por Fausto Godoy

Hindutva é a cultura da raça hindu, em que o hinduísmo é apenas um fator: o dharma hindu é a religião praticada por hindus, sikhs e budistas

A saga da Índia (VI) – O Hindutva e o nacionalismo hindu

por Fausto Godoy

Já escrevi vários textos sobre a radicalização hinduísta promovida pelo “Baratiya Janata Party/BJP”, o partido atualmente no poder na Índia, nesta série que venho publicando sobre a sua crescente importância no cenário internacional. Tendo em vista, porém, o acirramento do proselitismo do BJP na vida do país, e os dilemas, ameaças e consequências que este proselitismo tem provocado no convívio da população, resolvi ir mais a fundo na minha análise.

Para entendermos o que está acontecendo, vamos primeiramente definir o que seja HINDUTVA, a filosofia político-religiosa que dá suporte ao BJP. É fundamental analisar este conceito tal como foi desenvolvido pelo seu criador, Vinayak Damodar Savarkar, em 1922. Conforme a “Enciclopédia do Hinduísmo”, o Hindutva, na definição clássica, é a “cultura da raça hindu, em que o hinduísmo é apenas um elemento: o “dharma” hindu é uma religião praticada por hindus, bem como “sikhs” e budistas“.

O que isto significa?…

Vamos mergulhar um pouco mais no que seja o conceito de “dharma”, que é o grande elemento diferenciador entre os credos religiosos existentes na Índia. Para um ocidental, tratar deste tema pode parecer “bizantinice” intelectual, mas é o ponto de inflexão que diferencia as religiões que creem na metempsicose, ou seja na reencarnação – hindus, sikhs e budistas – das monoteístas – judaísmo, cristianismo (à exceção do kardecismo) e o islã, sobretudo…o que dá origem ao cisma alardeado pelo BJP.

Aspecto igualmente importante a ser analisado é o momento histórico em que surgiu o Hindutva: em 1929, concomitantemente com o fascismo, na Itália (Benito Mussolini fundava o “Grupo Italiano de Combatentes”, em 1919, berço do “Partido Nacional Fascista”), e o nazismo, na Alemanha (Adolf Hitler liderava o “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”, na década de 1920, berço do nazismo).

Porém, diferentemente destes dois, desde o início o Hindutva teve como matriz a dicotomia religião e política. O “Rashtriya Swayamsevak Sangh”/ R.S.S. é o seu braço paramilitar, gênese e liderança de um grande corpo de organizações hindus de extrema direita. Fundada em setembro de 1925 e inspirada nos movimentos e grupos fascistas europeus, o impulso inicial da organização era “fornecer treinamento de caráter e incutir disciplina para unir a comunidade e estabelecer a “Rashtra” – nação – hindu”. Desde então o seu propósito tem sido difundir a ideologia do Hindutva, fortalecer a comunidade e promover o ideal da defesa da cultura e dos valores civilizacionais do hinduísmo. Foi, a propósito, um ativista radical do RSS, Nathuram Godse, quem assassinou o Mahatma Gandhi , em 1948, que era contrário à partição do Raj Britânico, baseada em credos religiosos. Alicerçado na premissa da supremacia hindu, o R.S.S. tem manifestado crescente intolerância com relação às minorias, em particular a muçulmana e, em menor grau, a cristã.

Como sabemos, a grande maioria dos indianos é hindu (segundo o censo de 2017, 74,33% da população). O islã vem em seguida, com 14,20% – mas, ainda assim, constitui a terceira maior população muçulmana do planeta -, seguido pelo cristianismo (5,84%), o sikhismo (1,86%), o budismo (0,82%), o jainismo (0,41%) e por outras religiões de menor expressão numérica. Diante deste panteão complexo, a única maneira de conduzir os destinos do país, entenderam os seus próceres, foi torná-lo numa república secular e laica, tal como prescreve, aliás, o preâmbulo da sua Constituição: “…uma república democrática, socialista, secular, que sufraga as liberdades de pensamento, de expressão, de religião, de crença, de fé, e de culto…”.

Entretanto, desde que assumiu o poder, em 2014, após vencer o seu rival, o “Congresso Nacional Indiano”/”Indian Congress Party”, que havia dominado a vida politica da Índia desde sua fundação em 1885, liderado pelos líderes que fizeram não somente a independência senão também criaram os alicerces da Índia contemporânea, o “Baratiya Janata Party” trouxe o Hindutva como sua bandeira político-ideológica.

Quais seriam os motivos?

Mais que tudo, o antagonismo histórico entre o hinduísmo e o islã. E no que diz respeito às políticas interna e externa, o que os seus membros consideram a falência do “Congress Party”, que ao longo dos quase 130 anos em que esteve no poder não alcançou, na sua ótica, erradicar as que consideram as principais mazelas da Índia, sobretudo a não inserção no processo de globalização consoante com a sua dimensão. E o espelho é sempre a China, “aliada” no BRICS, mas antagonista na disputa pelo protagonismo na região, sobretudo no sudeste da Ásia.

É neste contexto que emerge a figura política de Narendra Damodardas Modi. E é aí que entra a questão do proselitismo hinduísta do “Bharatiya Janata Party” e do seu líder máximo. Modi foi eleito Primeiro-Ministro nas eleições gerais que levaram o BJP ao poder em 2014. Ele havia sido ministro-chefe (equivalente a governador) do estado de Gujarat, um dos mais progressistas da Índia, de 2001 a 2014, onde realizou uma gestão bem avaliada pela população. Mas já conflituosa no “front” religioso.

Moderado de início, ele foi radicalizando suas convicções, passando a adotar progressivamente medidas de apoio à maioria hindu em detrimento das minorias religiosas. Sinônimo de sucesso econômico e de antagonismo às minorias religiosas, Modi elegeu as comunidades cristã e, sobretudo, a muçulmana, como objeto de uma ação radical. Foi assim que em dezembro de 2019 seu governo aprovou a “Lei de Cidadania” (Amendment Act – CAA), pela qual, pela primeira vez na história da Índia independente o fator religioso tornou-se condição para a concessão de cidadania. Foi criado igualmente o “Registro Nacional de Cidadãos”, que identifica os “imigrantes ilegais”, despertando o temor de milhões de muçulmanos que residem no país há muitas gerações e afrontando a própria Constituição, que no seu preâmbulo define a Índia, como vimos, como uma “república secular”.

Mas Modi quer mais: modificou o traçado urbanístico e está fazendo uma verdadeira “razzia” na belíssima arquitetura histórica do centro administrativo de Nova Delhi: construiu uma nova sede para o Parlamento em substituição aos edifícios desenhados pelo arquiteto britânico Edwin Lutyens, herdados dos colonizadores. Foi mais além: empenhou-se para que se modificasse o próprio nome do país: de ora em diante, não mais será “Índia”, mas “Bharat”, que foi como se pôde ler nas plaquetas de identificação do país nas sessões da Reunião de Cúpula do G-20, que a Índia acaba de sediar.

Apaga-se o passado…e surge Bharat, a Índia multimilenar camuflada em sonho futurista…

Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. Doou sua coleção de arte e etnologia asiáticas (com cerca de 3.000 peças), ao Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Esta coleção constitui a primeira ala asiática em um museu brasileiro. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Fausto Godoy

Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM

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