Ataque a Gaza, legítima defesa? O que diz o direito internacional, por Eugênio Aragão

Correto dizer que ação de Israel em resposta ao terror do Hamas não atende pressupostos da legítima defesa e autodefesa ou aos da represália

Norte da Faixa de Gaza está sendo reduzida a escombros antes de possível entrada por terra das tropas israelenses. Foto: Flickr/ONU
Norte da Faixa de Gaza reduzida a escombros. Foto: Flickr/ONU

Ataque a Gaza, legítima defesa? O que diz o direito internacional

por Eugênio Aragão

Em 7 de outubro Israel amanheceu sob as bombas do Hamas. A rapidez do avanço de seus militantes no território adjacente à Faixa de Gaza, praticamente sem resistência das forças de segurança de Israel, surpreendeu o mundo todo. Causou comoção a crueldade do morticínio contra israelenses que se seguiu. As ações sanguinárias de militantes do Hamas contra inocentes civis foram tão repulsivas, que fez até defensores de uma Palestina livre titubearem em compreender a ação de terror. Poucos mundo afora lhes expressaram apoio. A maioria se juntou ao luto e ao pranto de Israel. 

Mas, também todos sabiam que a resposta não viria a tardar, longe de qualquer proporcionalidade. Não há como comparar os meios militares ofensivos israelenses com os dos palestinos. A retaliação fatalmente se dirigiria à população civil de Gaza. Era previsível. Numa faixa de 40 km de comprimento e, no máximo, 10 km de largura, ao longo da costa mediterrânea, se aglomeram 2,4 milhões de pessoas, num dos lugares mais densamente povoados do mundo, com carência de infraestrutura pública e relegados a uma existência reclusa em ghetto. Qualquer operação israelense num território desses só poderia levar a centenas, senão milhares de óbitos civis.

Israel iniciou o bombardeio de Gaza ainda no mesmo dia. Falou-se em direito de legítima defesa e em recurso à represália. São institutos de significado preciso no direito internacional dos conflitos armados, mas frequentemente distorcidos para ora justificar a ação em terreno duvidoso de um beligerante, ou até claramente ilícito de outro. Ações indiscriminadas contra a população civil, com certeza, não se abrigam em nenhum desses conceitos.

A Carta das Nações Unidas, sempre invocada para legitimar ou deslegitimar a ação militar por estados, diferentemente dos regimes bélicos anteriores, proíbe simplesmente o uso da força em seu artigo 2, parágrafo 4 (“4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas” – na péssima tradução oficial brasileira que acompanha o Decreto 19.841/45, pois, no original inglês, diz-se “todos os Membros deverão abster-se” – “refrain from” – o que é bem distinto de “evitar”). 

Há, porém algumas exceções. A mais relevante delas, aqui invocada por Israel, está no art. 51, que trata da chamada “legítima defesa”, tradução também imprópria que faz confundir o instituto com o de mesmo nome, no direito penal e que se distingue deste por seus pressupostos normativos. Em inglês, a nossa “legítima defesa” do art. 51 é chamada de “self-defense” (autodefesa) e a do direito penal está num conceito mais amplo de “duress”. Mas o tradutor contratado pelo Itamaraty no pós-guerra não se deu conta dessas filigranas jurídicas.

A redação do art. 51 da Carta das Nações Unidas (“Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais” – na tradução oficial do Decreto 19.841/45) tem apresentado alguns problemas de hermenêutica.

O primeiro deles está na expressão “direito inerente”, que faz supor existir um direito natural acima da própria Carta da ONU. E se existe um “direito inerente” (não precisa estar na Carta, porque existe por si) à autodefesa, podem existir outros “direitos inerentes” não expressos nesse documento. Após o 11 de setembro de 2001, com os ataques às torres gêmeas de Nova Iorque, parte da academia norte-americana passou a entender, por exemplo, que haveria uma inerente “autodefesa preventiva” (“preemptive self-defense”) na contramão do que estabelece o art. 51, que pressupõe a existência de um ataque armado, presente e não futuro ou iminente. Mas a tese colou e justificou as ações militares no Afeganistão, chanceladas, até, pelo Conselho de Segurança da ONU.

Outro aspecto fundamental na aplicação do art. 51 da Carta da ONU é a natureza transitória do uso do direito à autodefesa. É que, no sistema da ONU, a última palavra na legitimação do uso da força está sob o monopólio do Conselho de Segurança da organização. Estados só podem fazer uso da força sem prévia autorização do Conselho de Segurança enquanto este não se reunir para deliberar sobre o conflito. Mas, como é notório, esse Conselho dificilmente logra deliberar efetivamente sobre qualquer matéria sobre a qual divergem os membros com poder de veto. E, no que diz respeito a Israel, o veto norte-americano sempre abençoou qualquer ação militar desse estado, sem permitir atuação da organização no escopo de preservar a paz internacional.

Uma segunda exceção à proibição do uso da força é o chamado direito de represália. Como não há menção a este instituto na Carta da ONU, tendo sido fruto, muito mais, da construção teórica acadêmica, há majoritariamente interpretação de que a represália só seria legítima se se subsumisse à hipótese de legítima defesa ou autodefesa. Ou seja, para que não seja ilícita, a represália tem que se constituir em reação pronta a um ataque, cabível enquanto não houver deliberação do Conselho de Segurança da ONU e há de se submeter ao princípio de proporcionalidade. Esse é um princípio geral do direito internacional presente no conceito de reciprocidade e, em especial, na legitimação de operações militares, que sempre devem ser proporcionais aos riscos enfrentados e aos direitos de terceiros não diretamente participantes das ações bélicas. Não seria represália legítima o uso de meios de destruição em massa contra escaramuça de fronteira, por exemplo. Muito menos contra civis inocentes. E, para ser hígida, a represália deverá ter por escopo único fazer com que a parte beligerante inimiga volte à legalidade e assegure o status quo ante ao ataque. Fora desses limites, a ação em resposta à agressão se converte em mera retaliação não aceita pelo direito internacional em razão do risco de perpetuação do conflito armado.

À luz desses conceitos, é correto dizer que a ação de Israel em resposta ao terror do Hamas de 7 de outubro não atende nem aos pressupostos da legítima defesa ou autodefesa e nem aos da represália.

Israel foi, em primeiro lugar, alvo de ação não propriamente estatal, mas paraestatal, uma vez que o Hamas, mesmo em se constituindo no grupo governante da Faixa de Gaza e, portanto, de parte da Palestina, não tem reconhecido pela ONU o status de Estado e muito menos o de Membro. Isso, todavia, não o exime de agir de conformidade com os princípios da Carta da ONU, de acordo com seu Art. 2, parágrafo 6 (“A Organização fará com que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais”.). Estado o Hamas não é de direito, mas o é de fato. E isso basta para a aplicabilidade dos dispositivos aqui considerados.

Por isso, pretende o Estado de Israel que o Hamas não poderia usar da força contra sua integridade. E isso seria válido se a ocupação do território de Israel se tivesse dado de modo pacífico e acordo com o estabelecido em 1947 pelo Conselho de Segurança da ONU. Ocorre, porém, que Israel tomou militarmente em 1967 e passou a ocupar, com uso de meios violentos, mais da metade do território de Gaza e outro tanto da Cisjordânia. Os civis palestinos em Gaza têm sido sujeitados a todo tipo de restrição de suas atividades e de sua locomoção pelo poderoso vizinho, que pouco se importa com a aplicação da 4ª Convenção de Genebra de 1949 no estatuto da ocupação do território.

Fosse a ação do Hamas proporcional, direcionada a alvos militares legítimos e com vistas a forçar Israel a retornar às fronteiras de 1949, dir-se-ia, estaria, portanto, acobertado pelo direito internacional seu uso da força. Mas isso é uma hipótese contrafactual e, por conseguinte, não pode servir de critério normativo para sua atuação. Afinal, o direito não pode exigir o impossível. O Hamas simplesmente não tem chances contra Israel no campo militar regular. A supremacia israelense é tal que nada – nem a comunidade internacional – tem sido capaz de colocar freios em sua expansão territorial agressiva à custa dos palestinos. Exigir que estes se conduzam dentro dos limites do lícito da Carta da ONU seria, de fato, excluí-los por completo do seu direito de existência como um povo, com seu estado e em seu território. 

É aqui que se egressa do direito internacional do uso da força e se ingressa no direito político de resistência, direito, por sinal, implícito, até, na Declaração da ONU sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, aprovada pela Assembleia Geral em 1960. Diz- se ali que “a sujeição de povos à subjugação, exploração e domínio estrangeiros constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a causa da promoção da paz e cooperação mundiais”. Legítima, portanto, é a luta dos povos sob esse regime para obterem sua independência plena. 

O direito político de resistência é um direito inerente, sem o qual nenhum povo poderia garantir sua autodeterminação. O estatuto de ocupação dos territórios palestinos por Israel é ilícito por se estender muito além dos limites fixados pela ONU e remonta ao indisfarçado colonialismo britânico posterior à Primeira Guerra Mundial, estabelecido pela autoridade da Liga das Nações. A Declaração da ONU de 1960, verdadeiro jus cogens da ordem pós-colonial, se aplica, pois, plenamente à questão Palestina.

Não pode Israel se valer do direito de autodefesa ou legítima defesa para assegurar seu regime colonial. Enquanto Estado agressor, Israel deve, isto sim, tratar de retornar ao status quo territorial de 1947, único reconhecido pela comunidade internacional. Há, enquanto isso não ocorrer, clara violação do Art. 2, parágrafo 4, da Carta da ONU por Israel. 

Por outro lado, sendo a Palestina alvo da agressão, tem direito, sim, à represália. Só não se pode exigir que essa se constitua dentro dos parâmetros de um exército regular, que os palestinos não detêm. Usam dos meios disponíveis para se defenderem – foguetes sem telemetria, que caem a esmo em território ocupado pelo inimigo, produzindo danos colaterais legitimados pelo interesse militar.

Diferente, no entanto, devem ser tratados os ataques extensos ou sistemáticos conscientemente direcionados a populações civis inocentes. Nesses ataques, soldados e militantes de ambos os lados se envolveram. Enquanto israelenses incorreram e continuam a incorrer nos ataques com a agravante de perpetuar um estado de coisas ilícito no direito internacional, os palestinos o fizeram em excesso de seu direito de resistência. Execuções sumárias, torturas, tomada de reféns, extermínio de população civil, quando parte de uma política de Estado ou organizacional, constituem, porém, crimes contra a humanidade (art. 7° do Estatuto de Roma) e se sujeitam à jurisdição internacional. Aqueles que praticaram de forma direta ou indireta esses crimes devem ser responsabilizados, independentemente de que lado estejam.

O Tribunal Penal Internacional, que teve imediato posicionamento sobre o conflito da Ucrânia ao decretar às pressas a prisão de Vladimir Putin, faria bem se começasse a investigar com a mesma rapidez os fatos ocorridos em Israel e na Palestina desde 7 de outubro para não fazer valer a Carta da ONU apenas para alguns.

Eugênio Aragão – Ex-ministro da Justiça, jurista e professor da UnB

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