O sujeito escreve que é aquilo e vira verdade, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O sujeito escreve que é aquilo e vira verdade

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Três coisas me chamaram muito a atenção a entrevista do Almirante Othon Pinheiro.

A primeira foi o trabalho jornalístico impecável de Wadih Damous. Ao invés de ficar dando opiniões, interromper o entrevistado e ficar falando o tempo, ele fez o que os jornalistas devem fazer e que os telejornalistas globais nunca fazem: ele deixou o Almirante a vontade para falar de si mesmo e do que ocorreu com ele.

A segunda foi a tentativa do Almirante de se suicidar por causa da indignidade da situação a que ele, um herói nacional, foi submetido pela justiça brasileira. Felizmente ele foi impedido de consumar o ato e sobreviveu para dar seu depoimento em vídeo.  

A terceira foi a frase lapidar que resume bem a tragédia nacional:

“o sujeito escreve que é aquilo e vira verdade…é muito difícil viver num sistema em que o camarada diz uma coisa e vira verdade”

No sistema penal moderno, “verdade” é aquilo que foi devidamente comprovado nos autos por provas colhidas sob o crivo do contraditório. As provas que podem ser feitas no processo são aquelas prescritas na legislação. Entre as provas dos fatos juridicamente relevantes (verdade) não se encontra a convicção de quem acusa o réu.

A razão para esta exclusão é singela. Durante a Idade Média, toda acusação acabava resultando em condenação por causa da distinção evidente entre os pólos do processo. O acusador desfrutava do prestígio de ser o defensor da fé e a acusação rebaixava o acusado à condição de alguém que havia cometido heresia ou desafiado a autoridade da igreja. Como os julgadores eram todos religiosos, obviamente eles naturalmente pendiam para o lado da acusação.

Casos de objeção de consciência (como o que ocorreu durante o julgamento de Joana D’Arc, em que um clérigo se recusou a participar da farsa ao notar que Pierre Cauchon havia condenado a acusada antes de colher as provas) eram raros. De fato, ao absolver um réu que havia sido condenado pelos outros julgadores o próprio julgador poderia atrair para si a acusação de estar favorecendo a heresia ou protegendo hereges (este tema foi explorado com maestria por Umberto Eco no romance O Nome da Rosa).

O moderno Processo Penal rejeita a convicção do acusador como prova do crime atribuído ao réu. Esta é uma afirmação irrefutável e corroborada pela constitucionalização dos princípios que garantem o devido processo legal, a ampla defesa, a inexistência de juízo de exceção, a tipificação prévia dos crimes, a invalidade de provas ilícitas, a presunção de inocência do réu, etc… Estes princípios obrigam o órgão de acusação a produzir provas lícitas (testemunhais, documentais e periciais) de que o acusado cometeu o crime que lhe foi imputado.

Compete ao juiz da causa avaliar de maneira independente e isenta a prova que foi produzida nos autos. Ao julgar o processo ele deve cumprir e fazer cumprir a Lei e os princípios constitucionais de Direito Penal. O julgador não deve atribuir valor probatório à convicção do acusador de que o réu é culpado, pois se fizer isto ele inevitavelmente irá introduzir características do Direito Medieval que são expressamente rejeitadas pelo moderno Direito Penal. Quando o juiz transforma a crença do acusador em prova da culpa (como ocorreu nos casos do Almirante Othon e de Lula), o réu é rebaixado à condição de herege e aquele que o acusou passa a desfrutar dos mesmos poderes e privilégios que eram outorgados aos encarregados da ortodoxia religiosa.

O Almirante Othon está absolutamente correto…é muito difícil viver num sistema em que o camarada diz uma coisa e vira verdade”. Mas ele poderia ter dito apenas “é muito difícil viver num país que regrediu aos padrões judiciários da Idade Média”.

Fiquei realmente emocionado com o depoimento do militar aposentado. Eu cresci odiando militares brasileiros por causa do que ocorreu na minha infância (eu nasci em 1964 e minha casa foi invadida a chutes várias vezes em 1967 porque meu pai era defensor de João Goulart), mas sou advogado e aprendi a respeitar profundamente a humanidade das pessoas perseguidas pela justiça.

A entrevista do Almirante Othon me ensinou duas coisas importantes: nem todos os militares são bichos-papões; os bichos-papões que assombram o Brasil neste momento (os promotores e juízes medievais) devem ser combatidos com redobrado esforço. A única coisa escrita que deveria ser considerada verdade inquestionável pelos promotores e juízes é a Constituição Federal. As convicções que acarretam condenações criminais apenas comprovam a tese daqueles que dizem que já estamos vivendo sob uma odiosa ditadura judiciária.

 
Fábio de Oliveira Ribeiro

6 Comentários

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  1. Faz tempo que se diz por aí

    Faz tempo que se diz por aí que o Brasil ainda não teve a sua Revolução Francesa. Que ainda vivemos sob as regras de uma aristocracia protegida nos seus palácios. Pois a turma que assumiu de vez o poder em Brasília e nos tribunais (e na mídia que serve a eles) mostra agora que a coisa é um pouco diferente. Na verdade, ainda falta ao Brasil chegar à Renascença. Ou será que o tempo por aqui corre na direção contrária ao resto do mundo? Se for assim, quem sabe um dia a gente ainda alcance a democracia grega…

  2. Inacreditável o fato: uma

    Inacreditável o fato: uma ditadura do judiciário, sob o comando de uma potência estrangeira,  condenou um militar brasileiro por ser nacionalista e por investir em nossa soberania. 

  3. Sim voltamos à idade média.

    Sim voltamos à idade média. Qual é a dúvida, caro Fabio? Consta que o juiz Brêtas, o que condenou o almirante a sei lá quantos anos de prisão, ao assumir o cargo que ocupa, bradou um livro e proclamou que sua vara iria se reger por ele. Era a constituição federal? Não, a bíblia.

    Precisa mais alguma coisa?

  4. Com quem o Brasil pode contar ?

    Existem militares nacionalistas e militares entreguistas. Enquanto o Almirante Othon dedica sua vida ao Brasil (do qual ele afirma ter orgulho), o General Mourão despreza a formação do povo brasileiro (português, indígena e preto) e admira os EUA.

  5. Caro Paulo Cezar,
    Embora eu
    Caro Paulo Cezar,
    Embora eu tenha entendido o que vc quis dizer, penso que não devemos nos basear nos fatos históricos europeus e na mesma cronologia sociohistórica para atingirmos o nosso desenvolvimento, uma vez que já estivemos mais avançados
    com a relação à superação do pensamento aristocrático, como por exemplo nas décadas de 1920 e 30.
    Naquela época, conforme Antônio Candido, houve grande penetração dos pensamentos socialistas na cultura brasileira, que foram combatidos pelo golpe de 1937.
    Novo avanço dos pensamentos socialistas na década de 1950 foi combatido pelo golpe de 1964, e com o desaparecimento das principais lideranças políticas da esquerda brasileira, talvez até hoje não nos tenhamos recuperado desse segundo golpe.
    Resumindo, o que defendo, conforme já escrevei aqui no GGN, é que devemos nos basear na história cultural brasileira e nas características específicas do processo civilizatório que envolveu a expansão ibérica pelo mundo muito antes da Revolução Francesa, processo que, segundo Darcy Ribeiro, marca de forma decisiva a gênese do povo brasileiro.
    Nesse sentido, acredito que por esses caminhos poderemos chegar na necessária Revolução Brasileira, sem necessariamente passar pela Renascença ou pela Revolução Francesa.
    Esta, aliás, junto com a invasão inglesa decorrente dos acordos com a corte portuguesa, foi responsável pela introdução, no Brasil, da complicada, excludente e preconceituosa ideia de “civilização” atrás da qual entraram as ideias neoclássicas, e depois as positivistas, racistas e evolucionistas que marcaram a sociologia brasileira por longo tempo.
    Quem explica isso muito bem é a historiadora Lilia Moritz Schwarcz:
    “É assim que se explica a aceitação, num primeiro momento, dos artistas franceses que chegavam ao Brasil, acostumados com o estilo neoclássico, essa arte de combate, que se põe a serviço da revolução e trabalha em nome da criação de sua memória. E a “colônia francesa” faria barulho e geraria ruptura, trazendo uma arte estatal: patriótica e preocupada em vincular os feitos dos monarcas aos ganhos do passado clássico idealizado”.

    CANDIDO, Antônio. A revolução de 1930 e a cultura. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, 4, p. 27-36, abr. 84.
    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil – Nicolas-Antoine-Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 14
    RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: Livro I – Teoria do Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1978.

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