Princípio da insignificância no Brasil é analisado pela USP

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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FD analisa aplicação do princípio da insignificância no Brasil
 
Bruna Alencar, do USP Online

Nas páginas do clássico francês Os Miseráveis, de Victor Hugo, o protagonista Jean Valjean é preso após roubar um pedaço de pão para alimentar os sobrinhos. Séculos depois, no mundo real, a Justiça brasileira ainda envia às nossas lotadas prisões quem rouba alimentos para consumo ou itens de valor irrisório. Casos como o de Sueli da Silva, condenada em 2004 pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja, têm, inclusive, aumentado. Frente a esse cenário, pesquisa coordenada pelo professor da Faculdade de Direito (FD) da USP Pierpaolo Cruz Bottini busca analisar as sentenças dos tribunais superiores aplicadas ao chamado “princípio da insignificância” nos crimes contra o patrimônio e contra a ordem econômica.

Crimes dos mais pobres x crimes dos mais abastados: corte social na jurisprudência

Segundo o docente, o estudo teve como base as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e surgiu da constatação de que a pesquisa científica em direito ainda cuida muito pouco de análise estatística. “Buscamos avaliar quando, em que hipóteses ou situações, os tribunais reconhecem este princípio”, explica.

 

Para compor a pesquisa foram analisadas todas as decisões do STF e do STJ relacionadas ao termo “insignificância” dentro de um período temporal, que estivessem ligadas a alguns critérios como objeto do crime e instituição que representa o réu. A partir daí, foram tiradas as conclusões empíricas.

É crime?
Com origem no direito romano, o princípio da insignificância é aplicado quando alguém comete um ato descrito na lei como crime, mas o resultado é tão ínfimo que o juiz entende injustificável o uso do direito penal, ou seja, não é apto de punição. “O exemplo clássico é o sujeito que furta uma maçã na feira. O ato é descrito pela lei como furto, mas sua irrelevância patrimonial afasta a incidência do direito penal pela falta de proporcionalidade”, conta Bottini. O uso do princípio, segundo ele, não afasta a possibilidade da vítima usar o direito civil para reparar o dano. “Significa apenas que a sanção criminal – sempre relacionada à hipótese, ainda que indireta, de prisão – não é adequada a estes casos”, conclui.

Foi identificado, após a pesquisa, que há uma diferença de critérios para avaliar crimes comuns e crimes econômicos. Por exemplo, para crimes comuns, como furto e estelionato, os tribunais consideram insignificante os bens de valor baixo, algo próximo dos cem reais. Já nos crimes econômicos, como a sonegação fiscal, os mesmos tribunais entendem insignificantes valores até 10 mil reais.

Para o pesquisador, essa diferença entre crimes cometidos por agentes em geral de classes mais baixas e crimes cometidos por agentes pertencentes a classes mais abastadas revelam um corte social na jurisprudência.

Prisão para problemas sociais
Um dos principais motivos que leva as pessoas a cometerem pequenos delitos, segundo o professor, é a ausência de políticas públicas inclusivas eficazes. O país consta no ranking dos países mais desiguais do mundo ocupando a 4ª posição. Disso derivam resultados como os obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no censo de 2010, em que 2,7% da população brasileira vivia com R$ 510,00 mensais, salário mínimo vigente na ocasião, e que 6,6% da população vivia sem rendimento médio mensal ou com rendimento inferior a 25% do salário mínimo. “A ausência de uma política de emprego, renda e assistência faz com que o cidadão miserável busque alternativas para sua sobrevivência”, afirma.

Contudo, vale ressaltar que não são somente os que não possuem condições financeiras favoráveis que são beneficiados por esse princípio. De acordo com ele, aquele que furta um chocolate do supermercado, não por fome, mas por vontade de consumo daquele bem específico, não pode ser punido com a prisão (ou ameaça dela). “É uma questão que deve ser resolvida pelo direito civil, nunca pelo penal”, diz. Segundo ele, esse é um problema pequeno demais para tentar ser solucionado com uma ferramenta tão agressiva, violenta e estigmatizada como o direito penal.

“O Estado dispõe de inúmeros outros mecanismos para ajustar esta situação”, argumenta Bottini. Para o pesquisador, alternativas como o uso do direito civil, assistência social, e inclusão social são práticas eficazes no manuseio desses casos que, não raro, são reflexos da desigualdade social. “Evidentemente a prisão – ou a ameaça dela – não resolve um grave problema social, apenas o empurra para baixo do tapete, com custos sociais enormes.”

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

11 Comentários

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  1. O Brasil segue nos dias de

    O Brasil segue nos dias de hoje como nos tempos de

    “Os Miseráveis, de Victor Hugo, o protagonista Jean Valjean é preso após roubar um pedaço de pão “

    A abordagem deve ser ampliada do jurídico “princípio da insignificância” para algo bem mais grave e profundo.

    A falta de cidadania do brasileiro

    Se a população ficasse minimamente indignada com a prisão seletiva de pobres que roubam para comer e com a impunidade de grandes crimes financeiros ou outros praticados pelos “grandes”….

    Mas, quando não nos preocupamos além do nosso umbigo (falta de cidadania) a arbitrariedade, a seletividade e a injustiça ocorrerão facilmente na sociedade.

  2. Assistindo a TV Justiça um

    Assistindo a TV Justiça um novo princípio começou a ser usado. O princípio da colegialidade. Por esse princípio, parece que a vontade da maioria, indepéndentemente de justo ou ilegal é que deve prevalecer. Me parece um aperfeiçoamento do “efeito manada” ao qual fui também acometido na época em que acreditava no PIG e assinava a revista de esgoto semanal. E a recomendava. Fazer o quê a não ser lamentar? Se até a corte assim se comporta e contribui decisivamente para perpetuar desigualdades de tratamentos, injustas, a criação de princípios, muitas vezes, busca justificar e legitimar arbitrariedades. 

  3. Prezados e prezadas,
    O texto

    Prezados e prezadas,

    O texto tem a virtude de trazer uma questão importante ao debate: O corte social (de classe) a aplicação da Lei pelo estamento jurídico-policial brasileiro.

    As considerações estão no caminho correto. O poder Judiciário brasileiro usa pesos e medidas diferentes para encarar as condutas antissociais, mas este fato não pode ser isolado de seu contexto, ou seja, o Judiciário utiliza as margens de interpretação que o estamento normativo (legislativo) lhe outorga.

    E a saída não é responder a esta subjetividade de classe do Judiciário (pune pobre e solta rico) com mais subjetividade jurídica, como o uso do princípio da insiginificância, mas sim adotando leis que determinem de forma mais objetiva possível o que a sociedade considera merecedor de punição penal, e o que ela não considera.

    Ao invés de sublimar o conflito, aliás, como sempre, devemos encarar o dilema de dizer quais são as condutas que merecem ou não a prisão!

    Por outro lado, o texto envereda pelo mesmo chavão sociologista de sempre:

    “Um dos principais motivos que leva as pessoas a cometerem pequenos delitos, segundo o professor, é a ausência de políticas públicas inclusivas eficazes.(…)”

    Esta construção teórica está ultrapassada há anos, e talvez nem a sua precursora, Alba Zalhuar, fosse capaz de defendê-la com seriedade.

    Um grave erro conceitual e científico. 

    Primeiro: Não há bases de dados confiáveis e perenes que determinem quais são os pequenos delitos que poderiam ser cometidos na presença de desigualdade ou que diminuam com o arrefecimento da desigualdade e em que ritmo este movimento hipotético se daria.

    Segundo: Considera a desigualdade social como fenômeno uniforme, e que se manifestará de maneiras esquemáticas uniformes. Despreza que há “desigualdades” subterrâneas às desigualdades de classe (interclasse).

    Terceiro: É preciso definir o que se chama de política pública inclusiva eficaz frente a pressão permanente do sistema capitalista sobre o indivíduo, no tocante as buscas por soluções privadas e individuais em detrimento das saídas coletivas dos problemas que afligem a todas as classes.

    Senão, se continuarmos com este paternalismo da insignificância, acabamos por consagrar o corte de classe denunciado, pelo critério “justo” da isonomia, ou seja: uma maçã para um pobre, em relação a sua demanda (necessidade) e o patrimônio ofendido do feirante é proporcionalmente igual ou maior que 20 ou 30 mil de impostos de um trabalhador médio frente a massa tributária nacional, ainda mais se considerarmos que o governo arrecada trilhões frente ao que ele surrupiou do fisco, e o significado para sua vida (patrimônio pessoal) e a diluição deste prejuízo na massa dos impostos(quase nada).

    Mas não podemos incentivar que pequenos sonegadores tornem esta prática usual, porque aí teremos um grande rombo. Da mesmo forma que um furtador de maçã não importa do ponto de vista penal, mas se 100 pessoas passarem a resolver seu problema furtando uma maçã, não haverá as que chegue na feira.

    É esta a pretensão da pena quando se determina uma sanção a um crime. O que não quer dizer que toda pena é justa, longe de mim afirmar isto.

    No entanto, a sociedade não pode se furtar a este debate, e o texto propõe isto pela metade, ou de forma equivocada, em minha leiga opinião.

    Crime é uma decisão privatista de um conflito coletivo que pode ser social e econômico, estruturado na demanda/necessidade, vantagem a ser percebida, facilidades e meios para execução e cálculo da impunidade potencial.

    É só isto. Seja no esfaimado, seja no médico que vende recibos para desconto no IRPF, ou no dono de uma pirâmide tipo o TELEFOGOFREE.

    Concordo que uma rede de proteção social pode interferir nesta decisão (cometer ou não crimes), mas ela nunca será suficiente para dar conta da demanda permanente que o homem apresenta pelo consumo, porque esta é a natureza do sistema (capitalista) que é mais criminoso quando gera o objeto de desejo e a impossibilidade de alcançá-lo.

    O crime, seja “grave” ou não, é resultado de variáveis muito mais complexas que a conta da desigualdade social.

    Cordiais saudações a todos.

     

    1. Obelix

      Políticas públicas sociais e educação são as únicas coisas capazes de trazer o sentido de cidadania para a população.

      Sem cidadania a democracia não avança em lugar nenhum do mundo.

      Cidadania é princípio base (sine qua non)  para o equilíbrio, e a equidade.

       

      1. Crime e castigo.

        Prezado Assis,

        Eu sou capaz de concordar contigo, e no meu comentário não há (muito pelo contrário) nada que informe serem a cidadania, políticas públicas, e enfim, a Democracia valores dispensáveis.

        O que eu chamo atenção é para a necessidade imperiosa de não misturarmos as estações com conceitos vagos para buscar soluções sobre fenômenos ainda mal explicados.

        Veja que o próprio conceito de cidadania pode comportar muita coisa, e até com sentido contraditório, dependendo da lógica do interlocutor, ou as referências e clivagens de classe.

        Veja por exemplo que a China (pelo pouco que sabemos) é uma sociedade violenta (do ponto de vista do Estado para com o cidadão), desigual, anti-democrática, ou seja, longe de nossa idealização de “cidadania”, e nem por isto ostenta índices de criminalidade parecidos com os nossos.

        Eu não digo que é um tema de fácil descrição e solução, só não aceito que me empurrem “receitas fáceis” como a do texto.

        Parece claro que desigualdade é fonte de conflitos sociais de várias naturezas.

        Mas o crime, isto é, a decisão de cometer um crime não resulta desta noção strictu sensu de desigualdade (econômica).

        E ainda que seja, o que eu defendi é que tanto é errado e cruel punir com prisão quem rouba para comer, quanto muito mais perigoso para a coesão do tecido social (ainda que desigual) é dizer que não significa nada (penalmente) tomar dou outro para comer, levando-se em conta o estímulo que isto sinaliza para os outros tantos que também não comem, mas não cometerem crimes.

        É um dilema dramático, eu sei, mas a nossa sociedade tem que parar de se inclinar a pegar atalhos e improvisos toda vez que enfrenta problemas estruturais:

        Foi assim, por exemplo, com a questão da polícia e o MP, e o poder de investigar, quando em lugar de termos uma polícia decente, decidimos dar poder a quem não deveríamos, e agora temos dois monstros institucionais em conflito entre si e com a sociedade.

        O princípio da insignificância tem a virtude da intenção, e só: ele busca reconhecer um Estado de Direito aleijado, que pune pobres e favorece ricos.

        Mas ao reconhecer este fato, e o fato de que pessoas roubam para comer, buscando dar pouco ou nenhum significado penal a conduta antissocial, estamos dizendo ao cidadão:

        A solução é privada. Se você não tem o que comer, e o sistema de exclui, vai lá e toma para si, desde que seja um tanto que consideremos pouco. 

        Ora, com este sinal, cada um vai sempre dizer que é motivado por um estado de necessidade tal que legitime a sua conduta.

        E quem vai medir ou mediar esta justificativa: os mesmos mecanismos de classe de sempre, ainda que se sinal invertido, com aparência de sursis humanitário.

        O estamento, o progresso de uma sociedade se mede pela sua capacidade de distribuir direitos (justiça social) e os deveres para com a coletividade.

         Não existe direito social sem dever social.

        Cordial saudações.

         

        1. Aí está o problema

          “É um dilema dramático, eu sei, mas a nossa sociedade tem que parar de se inclinar a pegar atalhos e improvisos toda vez que enfrenta problemas estruturais:”

          Não se pode resolver problema estruturais com lei mais rígidas e repressão cada vez mais violenta.

          E com esse pensamento a sociedade cobra é de vocês policiais.

          Disse apenas que o problema é complexo e que o início de uma solução passa, como condição sine qua non, por uma sociedade mais justa, que saiba exercer a cidadania.

          Sobre  se jogar a culpa na “incompetência” das polícias e na eficiência das leis, como quase toda a sociedade faz, escrevi uma matéria no meu blog:

          http://assisprocura.blogspot.com.br/2013/05/a-guerra-contra-o-crime-falhas-nas.html

           

          1. Mal entendido.

            Prezado,

            Eu acho que não estamos conseguindo nos fazer entender.

            Eu não defendi leis mais severas ou rigorosas, eu defendo que a lei tenha sua exata função: Punir quem comete o crime, e dissuadir outros que o façam.

            Disse ainda que o texto é fraco, e apresentei minhas argumentações, ainda que, aparentemente, insuficientes para seu entendimento do tema. Ok, respeito.

            E sobre isto falei com relação ao fato isolado (um punguista faminto/uma maçã e centenas de famintos/centenas de maçãs), e como esta gradação (valoração) individualista para solucionar um conflito leva a privatização e não a publicização das soluções.

            É claro que sou contrário a prender um faminto que leva uma maçã, mas não sou favorável que escape impune, e muito menos que seus atos fiquem só na esfera civil.

            Não podemos construir sociedades injustas, concordo, mas a justiça social não se dá apenas no campo dos confortos econômicos e na diminuição de distinção entre as classes, mas também na certeza de que todos deverão responder universalmente pelos seus atos e condutas antissociais.

            Assim como sou fanaticamente contra o prende pobre e solta rico, sou contra que se soltem os dois porque não consigo diminuir a distância entre ambos.

            Não acredito em ineficiência das leis ou da polícia: elas são apenas eficientemente seletivas.

            E o princípio da insignificância é a inversão do sinal desta seletividade.

            Creio que fins não justificam qualquer meio.

            Um cordial abraço.

          2. Obelix

            Reli meu comentário e não encontrei nenhuma passagem em que lhe atribuo a defesa de leis mais duras.

            quando disse;

            “Não se pode resolver problema estruturais com lei mais rígidas e repressão cada vez mais violenta.

            E com esse pensamento a sociedade cobra é de vocês policiais.”;

            Estou tentando dizer exatamente que a sociedade joga o pepino em cima de vocês policiais;

            é a sociedade que pensa que o recrudescimento das leis e da repressão resolverá por si só os problemas, e você sabe, talvez melhor do que eu, que não é por aí. Em outras palavras, a sociedade esta atribuindo o aumento da criminalidade ao despreparo das polícias e à leis “brandas”.

          3. Prezado,
            Está esclarecido

            Prezado,

            Está esclarecido então, mas isto não resolve o dilema proposto no texto:

            Se de um lado devemos refutar uma agenda simplista e generalizante proposta pela paranoia da sociedade e mídia, que recrudesce o estamento penal, de outro não podemos incorrer no erro de tratar um problema polimórfico e de repercussão multifacetada pelo filtro de viés único: a tese sociologista da desigualdade.

            É isto que tentei dizer, e talvez não tenha conseguido me expressar.

            Cordial saudação.

             

  4. Princípio supremo da legislação brasileira

    Princípio supremo da legislação brasileira, tradição perpetuada pelo legislativo e aplicada rigorosamente pelos poderes executivo e judiciário:

    Impunidade aos ricos e injustiça aos pobres.

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