A poesia em movimento como reordenamento do caos, por Jorge Sanglard.

Jorge Sanglard fala sobre o fazer poético de escritores comprometidos com a renovação da criação literária às margens do Paraibuna

Ilustração de Jorge Arbach

A poesia em movimento como reordenamento do caos

por Jorge Sanglard

O desafio de resgatar a essência poética de movimentos como a Poesia, Bar Brazil, Abre Alas e D’Lira, que sacudiram o panorama das artes em Juiz de Fora e em Minas Gerais, no Brasil, a partir de meados dos anos 1970, só não é maior que o prazer de mergulhar fundo na multiplicidade do fazer poético de escritores comprometidos com a renovação da criação literária às margens do Paraibuna.

Se Murilo Mendes, Pedro Nava e Affonso Romano de Sant’Anna encarnam o melhor da poesia de Juiz de Fora, elaborada no período anterior à onda renovadora dos anos 1970, o fruto desta onda, encabeçada por um grupo de novos poetas, nunca deixou de ter como referência a obra destes três mestres da literatura brasileira, cuja produção estimulou e abriu alas para a nova poesia mineira. Assim, Minas Gerais viu florescer, a partir de 1975, uma geração de novos poetas e escritores que, hoje, se destacam no cenário contemporâneo da literatura brasileira: Luiz Ruffato, Iacyr Anderson Freitas, Edimilson de Almeida Pereira, Fernando Fábio Fiorese Furtado, José Santos, Sérgio Klein, Fabrício Marques, Eustáquio Gorgone, Júlio Polidoro, Knorr, Walter Sebastião, entre outros.

O ritmo vigoroso e arrebatador com que os novos poetas, nascidos, radicados ou de passagem por Juiz de Fora, se lançaram na aventura de escrever, editar e distribuir coletivamente folhetos impregnados de uma poética visceral — fruto da paixão pela liberdade em tempos de escuridão e tormenta política e social — atesta o poder aglutinador da arte. Em meio ao medo e à insegurança, que marcaram a década de 1970 no Brasil, alguns jovens universitários agrupados em torno do folheto Poesia, tendo como referência o poeta e professor de literatura brasileira, Gilvan P. Ribeiro, lançaram um feixe de luz, capaz de extrair da criação poética a paixão e a emoção, numa autêntica celebração da vida; embora, neste percurso, o embate tenha sido, muitas vezes, doloroso. Mas o caminho da luta é um ato de fé envolto em mistérios sedutores.

A sensibilidade poética foi o fio condutor que reuniu, inicialmente, Gilvan P. Ribeiro e o saudoso José Henrique da Cruz (1957 – 2003) na articulação do folheto Poesia, em 1976, já na Universidade Federal de Juiz de Fora, após os sete primeiros exemplares terem sido editados com o apoio do Colégio Magister, em 1975. A partir daí, cada vez mais, foi sendo forjado o coletivo que deu sustentação ao folheto Poesia, ao jornal Bar Brazil, ao folheto Abre Alas e à revista D’Lira. O envolvimento intenso, profundo, com o novo fazer poético de Juiz de Fora descortinou um período de efervescência criativa, que a antologia “Poesia em Movimento”, publicada em 2002 pela Editora UFJF, procurou evidenciar e desvendar.

A permanência dessa poesia reflete o vigor de sua elaboração e o compromisso com a inventividade e a qualidade. O eixo do movimento poético D’Lira foi, é e será a sensibilidade. Esta tem sido, ao longo dessas três décadas, a fonte, a inspiração, o alicerce. Mesmo tendo cada poeta ou escritor buscado seu caminho próprio ao longo do tempo e construído, cada um a seu modo, uma trajetória de inserção no disputado mercado editorial brasileiro e no sempre restrito mercado internacional, a base da formação do grupo D’Lira é uma referência essencial para se entender a força da poesia contemporânea juizforana e mineira no cenário brasileiro.

Os poetas reunidos ora na Poesia, ora no Bar Brazil, passando pelo Abre Alas, ou ainda em torno da D’Lira, deflagraram uma pulsação irresistível nas manhãs de sábado, seja no Som Aberto, na Universidade Federal de Juiz de Fora, seja nas ruas centrais de Juiz de Fora. A interação entre poetas e leitores impregnou o sentimento coletivo de cumplicidade, que permeou essa poesia em movimento constante. Exemplo vivo de cultura como via de duas mãos, como troca de influências e de reciprocidades.

A oportunidade de retomar antigas vivências, pesquisar poemas de intensa vitalidade e oferecer, na medida do possível, uma visão abrangente dessa poética e de sua vertente evolutiva, em meio ao caos que marcou a vida brasileira, a partir de meados dos anos 1970, serviram e servem como estímulo a quem tem sido, apenas, uma das personagens desse movimento poético surgido em Juiz de Fora. Afinal, a articulação da antologia poética “Poesia em Movimento” representou um pequeno, mas seguro, passo rumo ao reordenamento do caos, que simbolizou essa produção contemporânea, forjada, primeiramente, em folhetos mimeografados e, posteriormente, em jornais, revistas e folhetos em off-set. Tudo embalado pelo sonho de poder transformar em realidade o desejo de deixar fluir todo o sentimento. Sem limites, sem barreiras.

A poesia em movimento

Segundo Gilvan P. Ribeiro, os processos permanentes de renovação e de consolidação no campo específico da produção artística estão impregnados do significado histórico de um dado momento. Mesmo que, com certeza, a historicidade não se dê conta do artístico, como um todo, ela é um dado de significação fundamental para a sua compreensão.

Juiz de Fora, nas últimas quatro décadas, pôde acompanhar vários desses processos, em variados campos: artes plásticas, música, literatura, principalmente. Mas o professor e poeta ressalta que é importante fazer uma retrospectiva, mesmo que sucinta, dos anos anteriores, correndo o risco de não estabelecer vínculos muito nítidos entre antes de 1975 e depois.

Pode-se dizer que o movimento de renovação da poesia — e da literatura em geral — começa a ser esboçado em Juiz de Fora por volta de 1967. Para Gilvan P. Ribeiro é evidente, quando se coloca as coisas nestes termos, de que não se está pretendendo esquecer a produção anterior. Murilo Mendes, ao publicar seu primeiro livro em 1930, é certamente um marco significativo. A diferença entre esta produção anterior e a que se inicia na década de 1960 está no sentido mais tribal, clânico, coletivo, desta última. As vozes anteriores, com maior ou menor ressonância, não se agregam a outras, com um efeito multiplicador extensivo. Permanecem mais ou menos isoladas, vozes que clamam no deserto.

Na década de 1960, a politização geral nos meios intelectualizados brasileiros — das escolas de 2º grau aos diversos fóruns de repercussão nacional — levaria a juntar indivíduos com preocupações semelhantes, revela Gilvan P. Ribeiro. “Somando-se a isso a intensa partidarização observável, tem-se um elemento gregário ainda maior. Juiz de Fora dispunha de um espaço para divulgação de textos literários — ficção, poesia, crítica — que vinha sendo dirigido, no Suplemento Dominical do Diário Mercantil, pelo saudoso João Guimarães Vieira, o Guima (1920 – 1996), artista plástico, crítico, professor e jornalista. No ano de 1967, Guima abriu o Suplemento ao assanhamento de alguns jovens, convictos de sua capacidade de subverter e revolucionar o panorama geral de mesmice que parecia rondar as letras locais. Começa assim uma intensa produção, muito politizada, e que acaba resultando na organização de um movimento marginal em Juiz de Fora e a publicação de um Manifesto Marginal. No Diário Mercantil!”.

Em seguida, destaca o poeta e professor da UFJF, passa a ser publicado o folhetim político “Palimpsestos Marginais”, cada seqüência escrita por um autor diferente e demolindo — ou julgando demolir — as estruturas, do Município à União. Este trabalho, que se estendeu até 1969, quando foi inviabilizado pela censura prévia e outras coisas, repercutiu de várias formas. De um lado, ele se projetou, ainda no Diário Mercantil, no suplemento Júnior, dirigido pelo saudoso jornalista José Carlos de Lery Guimarães (1933 – 1999), embora restrito a textos críticos (no início da década de 1970). Por outro lado, acabou por atrair, para os diversos colaboradores do Suplemento Dominical, olhares, tanto de execração quanto de admiração. Foi um momento de muitas discussões e projetos, adverte Gilvan.

Este espaço de fermentação deu frutos e, em 1975, trabalhando como professor de Português no Colégio Magister, Gilvan P. Ribeiro conseguiu articular o apoio da direção para fomentar um movimento de poesia, possível graças ao entusiasmo dos alunos. Em parceria com o Diretório Central dos Estudantes da UFJF, a partir de 1976, começaram a sair os folhetos com o título Poesia. Mimeografado no Colégio com papel cedido pelo DCE, o folheto funcionou como um ímã, ampliando-se bastante a partir da idéia inicial, dado o número de interessados que se manifesta na época. Distribuídos na rua, passaram a atrair mais gente.

O grupo original, logo na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde Gilvan P. Ribeiro já estava como professor, se reorganizaria, adquirindo uma nova feição e ampliando o número de poetas. O folheto passaria a ser distribuído — sempre gratuitamente — nos espetáculos político-musicais chamados Som Aberto, organizados pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) e realizados na Universidade e sua distribuição ganhava também as ruas centrais de Juiz de Fora, sendo levado à população todas as semanas, despertando cada vez mais curiosidade, atenção e…desconfiança (das autoridades).

As dimensões do folheto pareciam não conter mais a produção e, num processo de articulação significativo, o DCE criaria um Centro de Cultura que deveria ser coordenado por um professor da Universidade e Gilvan P. Ribeiro assumiria a coordenação do projeto. A idéia preliminar era fazer uma publicação que mantivesse o vigor do folheto Poesia e que pudesse voar mais alto. Nascia assim, o Bar Brazil (com Z de Zorro), revista-jornal que estabeleceria, durante sua duração (três números) um diálogo intenso com publicações semelhantes no resto do Brasil, entre 1976 e 1977. Entrevistas, ensaios, análises, contos, poemas, ilustrações, a revista repercutiu.

Mudanças na direção do DCE impediram a continuidade da revista. Neste momento, uma outra geração, com novas preocupações, começava a surgir. As “novas preocupações” referem-se ao fato de que eram jovens nascidos durante — ou pouco antes — a ditadura militar, diferentemente dos anteriores, educados no processo de luta e resistência. Se havia ainda, nos novos, a chama do combate, ela se revestia de um certo “profissionalismo” que se opunha ao “romantismo voluntarista” predominante até então, destaca Gilvan P. Ribeiro.

Surgiria nesta época, em 1981, a Sociedade de Articultura e o folheto Abre Alas, desdobramento do trabalho que fora realizado. A Sociedade Articultura publicaria livros de autores isolados e o folheto Abre Alas daria seqüência ao trabalho de rua, com distribuição de poemas e realização de “varais de poesia”, poemas pendurados em barbantes estendidos em praça pública. Ao mesmo tempo, começavam a surgir “performances”, teatralização de textos, ou simples leitura dos mesmos, envolvendo, de modo diferente, as pessoas.

Do grupo que atuava neste trabalho originou o núcleo que organizou a revista D’Lira, já nos anos 1980. Esta revista apresentou um nível qualitativamente superior, tanto em termos do primoroso trabalho gráfico, quanto em termos de nomes significativos nacionalmente que se arrolaram entre seus colaboradores, em 1983 e 1984. A revista se sustentaria, também, por três números. A partir daí, embora mantendo um espírito de grupo — criou-se, por exemplo, o selo “Edições D’Lira”— onde cada autor se dedicaria ao desenvolvimento de sua obra individual, com publicação de diversos títulos.

O que se observa, no conjunto, assegura Gilvan P. Ribeiro, é uma preocupação de realizar um trabalho que, se num dado momento é muito marcado pelo tom político, nunca se afastou de uma preocupação com a qualidade dos textos. Não era a política que determinava a escolha, mesmo nos momentos mais tensos. A estruturação dos textos e sua qualidade estética eram sempre os objetivos buscados.

Reencontrando a poesia

O poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna confessa que, nos anos 1950 peripatético, ou peripoético, perambulava pelas margens do Paraibuna, em Juiz de Fora. E indaga: “Que mistério é esse que faz com que uma pessoa, de repente, afaste-se imaginariamente de tudo e escreva meia dúzia de palavras enigmáticas condensando uma emoção ou uma estranha percepção? Tais versos não terão qualquer utilidade no mundo prosaico e imediatista, mas o poeta os escreve. São uma conversa consigo mesmo. Anotações sobre um enigma pessoal. E, de repente, essas palavras caem na mão de alguém, e o que parecia ser estritamente individual estabelece um diálogo com o outro e, de mão em mão, se sociabiliza”.

Capa do livro Poesia em Movimento coordenado por Jorge Sanglard

Estranho mistério é esse que, vindo de tempos imemoriais quando o canto do poeta se mesclava ao canto do xamã na tribo, continua existindo e proliferando numa sociedade que se chama de pós-industrial e pós-moderna, mas que, por mais que a tecnologia avance, não será nunca pós-poética, ironiza Sant’Anna.

Affonso Romano destaca os nomes de vários agrupamentos de poetas que sacudiram a cena literária em Juiz de Fora e em Minas: Poesia, Bar Brazil, Abre Alas, D’Lira, etc.. De algum modo acompanhou esses movimentos, a partir do final dos anos 1960, lendo suas publicações ou até estando presente num encontro nacional de novos poetas que ocorreu na cidade. Na Juiz de Fora de seu tempo, não havia tantos poetas: “Conseguimos reunir cinco: Adolfo Mariano da Costa, Marcel Brasil Capeberibe, J. Santos, Hélio Fernandes e eu, e fundamos adolescentemente o Pentágono 56”, esclarece Sant’Anna.

E é lendo poesia, muito mais que lendo jornais, que Affonso Romano constata que “todas as coisas parecem estar / em seus lugares, mas efetivamente não estão”, como explicita o poeta e jornalista Geraldo Muanis. Seria a poesia, aparentemente uma linguagem desconexa, introdução de uma desordem no mundo? Só aparentemente. Na verdade, ela é um reordenamento do caos, adverte Sant’Anna. Para arrematar: “A poesia é, sobretudo, um diálogo secreto entre o leitor e o texto”. Passadas três décadas, a força poética forjada em torno da Poesia, Bar Brazil. Abre Alas e D’Lira permanece viva e como forte referência para o fazer poético deste início do século XXI.

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