Enquanto eu viver

Um continho inspirado em Edward Hooper e na canção abaixo:

As Long As I Live* (tradução livre ‘Enquanto eu viver’), de Harry Arlen & Ted Koehler 

https://www.youtube.com/watch?v=kfQGwol409E align:center

Enquanto eu viver

Não sabia ao certo que iria partir um dia. O corpo enfermo havia saído daquela casa algumas horas antes de receber a sua última visita. Encontrava-se já algum tempo na Santa Casa. Embora não soubesse quando nem como, mas numa situação tão repentina como essa, abalaram as recordações de todos aqueles que de fato o conhecera. Não achava meios de transcrever suas últimas palavras. Muitos boatos sempre ocorrem nessas ocasiões. Infelizmente não se lembrava mais qual deles era o mais simpático sobre sua pobre existência. Poucas pessoas avistava-o sequer no umbral da porta ou nos parapeitos das janelas nesses últimos anos. Trancafiara dentro de si mesmo e nunca mais saíra. Um belo dia, não sei ao certo qual, abriu todas as portas e janelas daquela casa construída há anos numa bela esquina e sumiu. Deixou para atrás um cadáver muito parecido consigo mesmo. Carregou esse tráfico fim pelo resto de sua vida. Abandonou de vez o seu passado de pertencimento num cômodo escuro que criara dentro de sua própria mente. Sua partida, na realidade, jamais foi sentida. Na verdade, nunca houve partida alguma, apenas pensamentos de uma casa velha situada numa esquina que jamais fora sua, exceto na sua imaginação, ou quando andava pelas ruas da cidade às escuras, completamente adormecida. Desde então apenas a sua sombra o perscrutaria enquanto ele vivesse.
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(*) Benny Goodman & Sexteto, com Count Basie: Benny Goodman (clarineta) / Cootie Williams (trumpete) / George Auld (sax tenor) / Charlie Christian (guitarra) / Artie Bernstein (baixo) / Harry Jaeger (bateria) & Count Basie (piano)

 

 

Jota Botelho

5 Comentários

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  1. Enquanto vivermos

    Gosto muito da pintura de Hooper. Ja vi algumas exposições com seus quadros. Recentemente soube dos diarios de sua mulher, que foram publicados. Como diz o bonito conto acima: Trancafiara dentro de si mesmo e nunca mais saira.

    Pintura de sua mulher, no apartamento de Nova Iorque. Contraste de Luz e sombras.

    1. Respondendo aos dois comentários

      Cara Maria Luisa,

      Na verdade, este continho foi escrito hoje de manhã antes de vir para o trabalho, numa sentada. A minha falta de tempo e com doença na família tem me impedido de publicar os meus posts como eu gostaria de fazê-los. Além da música, que é belíssima (eu tenho o hábito de escrever ouvindo músicas), e que já foi utilizada por mim em algum conto escrito no começo de minha juventude (quem sabe eu os publico aqui alguns deles), mas a inspiração de fato quem me deu foi Hooper. Eu também aprecio muito a sua pintura, e a poesia que ela contém na solidão e no vazio retratados em sua obra. Aliás, minha primeira paixão foi a poesia, que o cinema me roubou na infância com suas belas imagens. Os grandes poetas sempre foram muito imagéticos, mas o cinema daquela época era primoroso nesse campo. Nos seduzia, fascinava e encantava pela força de suas imagens. E Hooper também adorava o cinema. Tentei criar um post várias vezes a esse respeito, mas nunca me dei por satisfeito. Quanto a Fitzgerald, ele sofreu o diabo nas mãos de sua mulher Zelda. Penso que quase tudo foi retratado em Suave é a noite. Pode ser, mas não creio que ela tenha sido sua ghost writer. Mas sem dúvida, ao lado de Hemingway, ele foi um dos melhores escritores da chamada ‘geração perdida’ dos EUA.

      1. Melhoras

        Quem sofreu mais nas mãos de quem ? Não importa mais, mas importa sim seus posts poéticos, charmosos e de muito bom gosto, ainda que esses quesitos não sejam o principal, não é…

         

        1. É vero

          Ambos sofreram. Além dos agradecimentos, aproveito para fazer umas correçãozinhas da pressa da manhã de hoje: no lugar de para atrás, leia-se para trás; de tráfico, leia-se trágico; e no lugar de trumpete, leia-se trompete. Ainda voltaremos a Hooper. Até. Um fraternal abraço. E obrigado pelas melhoras, vamos precisar.

           

  2. Toda uma época

    Esse quadro lembra em mim o casal Zelda e Scott Fitzgerald, o qual, Gilles Leroy, pinta com tintas fortes em Alabama Song.

    Segundo Leroy, Zelda teria sido a gost whrite de Scott…

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