Ficção especulativa: 2013 anunciou nova era da fantasia; por Roberto Causo

Sugerido por Assis Ribeiro
 
Do blog Ficção Especulativa, de Roberto de Sousa Causo, no Terra Magazine
 
2013 anuncia nova era da fantasia no Brasil
 
Em 29/12/2013
 
No segundo semestre de 2013, fui por duas vezes convidado para falar sobre alta fantasia e fantasia medieval — primeiro na HobbitCon e depois em uma Fantástica Jornada Noite Adentro, ambas as vezes por intervenção de Silvio Alexandre. O texto abaixo parte das reflexões feitas em preparo para essas participações.
 
Uma das grandes novidades de 2013 no campo da ficção especulativa foi o fortalecimento da alta fantasia e da fantasia medieval, ambas há anos presentes nas livrarias brasileiras, mas que se revitalizam ainda enquanto falamos de fantasia urbana (histórias românticas sobre vampiros, lobisomens, zumbis e demais tribos urbanas), mash-ups, steampunks e outras formas de fantasia de tradição mais recente.

 
O inglês J. R. R. Tolkien foi o autor que deu forma à alta fantasia, quando, na segunda metade do século 20, a sua obra-prima O Senhor dos Anéis impressionou milhões de leitores — e um bom número de autores – no mundo de língua inglesa. Esse subgênero se caracteriza por ser ambientado naquilo que o próprio Tolkien chamou de “mundo secundário” — um outro mundo, substancialmente diferente mais também semelhante ao nosso, o “mundo primário”. No mundo secundário, o escritor é o criador secundário, e a ênfase — em oposição à fantasia heróica, por exemplo — está, em boa parte, numa construção de mundo que contempla língua, geografia, cultura e história, estendida não apenas aos seus habitantes humanos, mas a povos e criaturas mágicas como elfos, anões, duendes, goblins, trolls e o que mais povoar a imaginação dos autores.
 
A sombra de Tolkien se tornou com o tempo bênção e maldição a quem se aventurasse pelos mundos da alta fantasia. Imitadores próximos alcançaram grande sucesso de vendas, tornando esse ramo o mais bem-sucedido do gênero. Por outro lado,  passa-se logo a exigir que a fantasia escape dos aspectos repetitivos que essa imitação de Tolkien teria imposto. Seja imitando-o diretamente, seja tentando sair da sua sombra, a alta fantasia que vem depois dele revela a influência de Tolkien.
 
Nesse caso, um autor que possui uma trajetória exemplar é o canadense Guy Gavriel Kay — que primeiro trabalhou com Christopher, o filho de Tolkien, na preparação editorial de O Simarillion (1977), depois publicou sua trilogia The Fionavar Tapestry (1984 a 1986) sobre humanos normais transportados a um mundo de fantasia que se assemelha muito à Terra Média do autor inglês. Mas logo a seguir, em 1990, Kay muda de orientação com Tigana – o romance que a editora Saída de Emergência lança no início de 2014 — ambientado em um mundo secundário modelado a partir da Itália medieval. Com essa guinada, sua fantasia passa a se pautar por romances de fundo histórico, sem toda a babel de raças de seres mágicos que se vê em Tolkien.
 
Um dos autores que mais se beneficiou com a semelhança de sua série de fantasia com Tolkien foi o americano Robert Jordan (James Oliver Rigney, Jr.; 1948-2007). Publicado há poucos anos no Brasil, mas sem impacto, Jordan teve uma segunda chance em fins de 2013 com o relançamento de O Olho do Mundo, o primeiro volume da série A Roda do Tempo, pela Intrínseca.
 
Jordan escreveu onze livros da Roda do Tempo, que, depois de sua morte em 2007, passou a ser continuada pela pena de Brandon Sanderson. Curiosamente, o romance de estréia de Sanderson, a alta fantasia Elantris, apareceu nas livrarias brasileiras também em 2013, mas pela LeYa. Também em Elantris, porém, há o empenho em se afastar de Tolkien, com a ação ambientada na cidade-título, habitada por mortos-vivos, e com uma interessante intriga religiosa dominando o enredo. Enquanto em Tolkien os personagens peregrinam por uma paisagem selvagem ou rural, em Elantris a ambientação dominante é a cidade. Lamento apenas que o final do livro apele para exageros hollywoodianos que destoam do conjunto.
 
Tolkien também tem sua influência nos role playing games de fantasia — Dungeons & Dragons, Forgotten Realms e Dragonlance, por exemplo. Por sua vez, esses RPGs fizeram mais pela divulgação da alta fantasia no Brasil do que qualquer outra forma de manifestação artística. Isso aconteceu durante o boom do RPG, em meados da década de 1990.
 
Recentemente, a Devir retomou a publicação dos romances de Dragonlance com Lendas de Dragonlance Volume 1: Tempo dos Gêmeos, de Margaret Weis & Tracy Hickman, prometendo para o começo de 2014 o segundo da trilogia: Guerra dos Gêmeos. Ao mesmo tempo, a Devir publicará ao longo do ano a trilogia Portador da Lança, fantasia original de R. A. Salvatore, autor muito vinculado ao RPG Forgotten Realms.
 
Outra variação de alta fantasia nós temos na excepcionalmente bem-sucedida série Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin — conhecida na TV como Game of Thrones –, que se concentra na criação de mundo, em uma obra monumental de sete volumes previstos (ou até que Martin mude de idéia) e cinco já publicados, e que preserva um elenco mínimo de criaturas mágicas — como os dragões, por exemplo.
 
A alta fantasia de Martin se caracteriza pela renúncia ao apelo moralizante e à ordenação supranatural do mundo secundário, presentes na obra de Tolkien. Os elementos mais salientes (raças mágicas, feiticeiros poderosos e criaturas fabulosas) ou foram para o fundo ou estão ausentes. O foco está na busca do poder pelos diversos grupos e indivíduos, num cenário de instabilidade causada não pelas ações de um ser sobrenatural (Sauron, em Tolkien), mas por manobras apressadas visando o trono de Westeros. Às vezes chamada de “fantasia militar”, essa é uma literatura também de grandes movimentos armados e intrigas palacianas, descritas com crueza — como nos livros de Bernard Cornwell, autor de fantasia arturiana e/ou romance histórico medieval, que chegou ao Brasil primeiro com a trilogia Crônicas de Artur, pela Record.
Outro autor que se alinha com essa tendência é Glen Cook, cujo romance A Companhia Negra foi publicado aqui em 2012 — e o segundo da série, Sombras Eternas, em 2013. Os dois também pela Record.
 
Martin e Cornwell se encontram como influência na obra do brasileiro Leonel Caldela, que começou durante o boom do RPG escrevendo contos e romances relacionados ao RPG brasuca Tormenta. Em 2013, Caldela saiu da Jambô e foi para a Fantasy/Casa da Palavra, onde publicou o bojudo romance O Código Élfico, uma alta fantasia sobre… elfos! Com meia dúzia de livros publicados, Caldela é provavelmente o praticante número 1 da alta fantasia nesta latitude.
 
A vinda para o Brasil da editora Portuguesa Saída de Emergência — lançada junto à comunidade de fantasia e ficção científica durante o Fantasticon deste ano — promete reforçar a incidência de alta fantasia e fantasia medieval em nossas livrarias. O primeiro disparo da sua campanha foi Mago Livro Um: Aprendiz, de Raymond E. Feist, primeiro de uma longa série.
Por tudo isso, 2013 parece ter anunciado uma nova era da fantasia no Brasil, a se confirmar em 2014.
 
–Roberto de Sousa Causo
 
DESTAQUE
 
Meu favorito na alta fantasia lançada no Brasil em 2013 foi O Aprendiz de Assassino (Assassin’s Apprentice. São Paulo: LeYa, 414 páginas. Tradução de Orlando Moreira. Capa de Jackie Morris).
 
É o primeiro livro a “Saga do Assassino” — The Farseer Trilogy, em inglês. Sua autora, Robin Hobb, é pseudônimo da americana Megan Lindholm, antes vista no Brasil com um par de excelentes noveletas publicadas na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica. Como Robin Hobb, Lindholm se tornou um dos nomes dominantes da alta fantasia a partir de meados da década de 1990 (o romance é de 1995), juntamente com George R. R. Martin, David Farland (Dave Wolverton, também visto na IAM) e um par de outros.
 
Robb lida com um único mundo de fantasia desenvolvido em três trilogias e um quarteto — the Farseer Trilogy, The Liveship Trilogy, The Tawny Man Trilogy e o quarteto The Rain Wild Chronicles, sendo que a primeira trilogia se relaciona com a terceira, e o quarteto com a segunda trilogia… Entendeu?
 
FitzChivalry é o protagonista da trilogia Farseer. O romance abre com sua chegada a um fortim costeiro, ainda criança pequena, literamente deixado junto à porta da fortificação. Em seus primeiros anos ele é criado por um cavalariço, Burrich, mas logo descobre que, por ser o bastardo do herdeiro, deverá ser treinado para atuar como assassino secreto do rei — por um tio-avô também bastardo, o assassino da velha geração.
 
A tradução é do português Orlando Moreira, adaptada. A LeYa fez a desastrosa opção de manter o hábito impertinente dos portugueses de traduzir nomes próprios e toponímicos. Assim, o pai de Fitz, Chivalry Farseer, aparece nesta edição como “Cavalaria”. Nome completo: “Cavalaria Visionário.” Em inglês, e possivelmente no português europeu, nomes a partir de adjetivos são muito comuns e neutros, mas o espírito gozador do brasileiro torna esse tipo de recurso inviável aqui. Ainda mais considerando que chivalry seria melhor traduzido como “cavalheiresco” ou “cavalherismo”. E por aí vai.
 
Em Buckkeep (traduzido como “Cervo”), Fitz passa a ser treinado secretamente pelo tio-avô Chade, mas ao mesmo tempo precisa levar uma vida de aparência normal, de uma criança crescendo no castelo do rei, sendo aos poucos é admitido no círculo das damas da corte. Na vila portuária próxima, faz amizade com a menina Molly, o amor de sua vida. Desse modo ele vai construíndo uma outra medida ética, para além do serviço secreto prestado ao rei — e, preso entre as diversas forças envolvidas numa complexa intriga palaciana, passa a se aproximar da figura mais inquietante de toda a série: o misterioso Bobo da Corte.
 
Ao mesmo tempo, Fitz se vê dividido entre dois poderes mágicos ou paranormais: o poder de comunicação à distância que faz parte da linhagem dos Farseers; e a habilidade de se identificar com a consciência de animais. O priemeiro poder é considerado elevado; o segundo, baixo, indigno — mas é o que traz maior satisfação ao caráter sensível e moralmente isolado de Fitz.
 
No pano de fundo, uma invasão de saqueadores vindos de ilhas do norte, a maior ameaça à segurança dos habitantes dos Seis Ducados — perante a qual o poder telepático dos Farseers seria estrategicamente determinante. Mas os invasores trazem um grave dano colateral — uma magia capaz de transformar as pessoas locais em verdadeiros mortos-vivos, que se voltam contra os seus próprios entes queridos. Uma violenta agressão contra o próprio tecido da sociedade.
 
As intenções dos invasores e do seu processo de zumbificação — chamado de “forja” — são desconhecidas, assim como os motivos da perseguição contra Fitz por alguns de seus parentes na corte permanecem sem um aprofundamento maior. Isso pode soar como um defeito, mas é uma das maiores virtudes de Hobin Hobb como escritora: a maldade ou o cruel antagonismo ao herói não precisam de justificativa ou caracterização complexa. Basta a autora nos fazer sentir que essa maldade envolve e determina a vida do herói, mesmo que seja motivada apenas pela mais básica mesquinharia ou trivial capricho. Não é assim na vida? As decisões que mais nos afligem são impessoais — medidas burocráticas, pacotes econômicos, especulações financeiras e manobras políticas que em momento algum nos enxergam como pessoas.
 
Nisso Hobb também nos faz perceber que a exigiência de que a motivação dos vilões seja bem caracterizada não passa de uma convenção literária. Sua narrativa é tão ou mais efetiva pela subtração desse fator — e pelo investimento na motivação do herói em resistir e em permanecer fiel a si mesmo.
 
Zumbis, identificação com animais — e os dragões que estão no passado dos Seis Ducados e no seu futuro, conforme a trilogia se desenrola… Às vezes esse universo ficcional de Hobb soa como se alguns de seus aspectos centrais fossem partilhados pela série Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin. Difícil explicar a razão dessa coincidência, já que os primeiros livros das duas séries apareceram quase que ao mesmo tempo (A Guerra dos Tronos, de Martin, é de 1996).
 
As semelhanças param por aí, já que, enquanto o contínuo empenho de Martin em passar a perna no leitor quanto aos percalços do enredo e aos destinos de seus protagonistas mina as características dramáticas da sua obra, a atenção cuidadosa e o acompanhamento lento e aparentemente natural dos passos do seu herói geram envolvimento maior e ampliam a sua força trágica.
 
Se em Martin a ação é muitas vezes frenética e a violência inesperada, em Hobb o leitor tem tempo de compreender e se afeiçoar aos personagens, gerando outro tipo de relacionamento com o enredo: não são as torções e as surpresas que fazer o leitor virar ansiosamente a páginas, mas as reações dos personagens e os efeitos dos fatos sobre seu caráter.
 
Pardoxalmente, em Hobb o enredo — elemento da composição literária do qual o alto modernismo e o pós-modernismo fizeram questão de abandonar — alcança uma estatura própria: o leitor, sintonizado com os passos dos personagens, entra num jogo de antecipação dos cursos do enredo em que ele, leitor, torna-se co-criador dos sentidos do romance.
A grande popularidade de Robin Hobb no mundo de língua inglesa é prova de que existem leitores capazes de apreciar uma narrativa mais lenta — e no meu ver mais humana e mais feminina — e nem por isso menos engajante.
 
Eu li o livro em inglês, mas espero que você consiga superar a impertinência da tradução portuguesa e a infeliz escolha de capa, e mergulhar na alta fantasia de Robin Hobb, no meu entender, a melhor autora do gênero em atividade.
 
–Roberto de Sousa Causo
 
OBITUÁRIO
 
Autor de um livro de contos de ficção científica, poeta haikai, jornalista e anfitrião de um programa de rádio sobre jazz, Marien Calixte morreu aos 78 anos em 25 de dezembro de 2013, de complicações da doença de Parkinson. Nascido no Rio de Janeiro em 1935, Calixte se tornaria um dos jornalistas e intelectuais mais associados ao Estado do Espírito Santo.
 
Calixte contribuiu com seus contos para a vertente ufológica da nossa FC, com histórias ambientadas no seu estado de adoção, para se mudou aos 10 anos de idade. Em 1985, publicou o livro de contos de FC Alguma Coisa no Céu, com ilustrações de Wagner César Veiga. Seus temas eram contatos imediatos, a matemática como língua universal, e fenômenos do tipo “caidocéu”. Seu conto “O Visitante” (1977) venceu um concurso estadual no Espírito Santo e apareceu na importante revista Ficção, antes de ser incluído em Alguma Coisa no Céu – que teve uma segunda edição (com uma história a mais) em 1995 pelas Edições GRD, que na época tinha a única coleção de FC em atividade no Brasil. O livro também foi publicado na Itália como Sulla petra daí due Occhi. A segunda coletânea de Calixte, Contos Desiguais (2005), reuniu contos de fabulation e de absurdismo. “O Visitante” também foi publicado na Alemanha e incluído na minha antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (Devir; 2009). Um punhado de outras histórias permanece não reunidas.
 
Calixte é creditado como sendo o primeiro escritor a escrever ficção científica no Espírito Santo. Se a FC de Calixte era ingênua em termos de tema e ciência, ele apresentava um dos melhores estilos dentro do campo. Deixou a esposa Therezinha Calixte, a filha Daniele e o filho Luiz Henrique, além de netos.
 
–Roberto de Sousa Causo
Luis Nassif

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