Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

O filho da negra, por Urariano Mota

O filho da negra, por Urariano Mota

Para ser mais preciso, se Filadelfo viesse como fruto de um bem disposto teorema, seria dito que ele era, em toda aquela brutalidade, filho de uma negra desprezada. Esse o seu postulado. Ele era um filho sem pai, amigo ou companheiro mais velho com quem tivesse laços de sangue. Mais um filho da puta no beco, poderia ser dito.  (As palavras não se desenham, elas caem aqui organizadas para o seu perfil.) Diferente do proprietário da vila, o pomposo Artur, que valorizava o nome e características herdadas do gringo ao passar por suas crias nas casinhas, pois que era inegável o orgulho de ser um Fisher pela estatura, ginga de gringo, ou de como ele imaginava ser o porte e andar de um gringo, um filho de bom sangue, dono daquela senzala, diferente do mulato Senhor Artur, Filadelfo não detinha boa relação nem lembrança do pai, que amainasse a lembrança de ser um filho da puta. Muito pelo contrário.

Se pudesse, expurgaria de si o passado, que para ele havia sido pior e mais vexatório que o da ex-puta Lúcia, tão bela e graciosa, a quem nenhum homem podia associar os dias em que ela não tivera sequer o direito à folga da menstruação. Por Deus, os substantivos, os nomes referentes a Fildelfo têm que ser claros e brutais. Para ele, cu era cu, sem mais rodeios. Cu era uma palavra que com frequência usava, mesmo diante do falso recato das vizinhas, aqui e ali pudorosas: “não tem no cu o que periquito roa”, dizia. Diferente dos modos que se queriam finos do proprietário Artur, conhecedor de um inglês de escola, de se portar e se comportar educado em uma boa mesa, Filadelfo conhecia bem, muito bem, o rude inglês do cais. Nessa condição, se contasse a sua vida com sinceridade, nele não acreditariam.  Nos últimos anos, ele estava no seu ponto mais alto. Do passado, que ele não podia na totalidade eliminar, falava raros e raríssimos quadros:

– Uma vez, eu estava com muita sede, era meio-dia. Então eu pedi numa casa, em vez de comida, um copo d’água. Responderam que eu bebesse na torneira do jardim. Pois a água bateu dentro de mim feito um murro no estômago. Aí eu soube que beber água com fome doía.

Ora, ainda aqui, nesse quadro rápido, a sua memória mostrava o mais aceitável. Filadelfo contava o cruel que ele pudesse falar. Na verdade, o discurso da sua vida não era uma peça de autoacusação, como o queria Jimeralto, ao lembrar o papel que fora imposto à mãe. O discurso da vida de Filadelfo era uma peça de infâmia. Mais sofrida que feita. Chegava a ser uma prova de educação para os bárbaros, despercebida por vizinhos e conhecidos, que ele nada falasse da sua história funda, a geradora de um caráter. Então ele se apresentava como um homem sem família – o que em parte era verdade, porque jamais tivera algo parecido com uma família, até mesmo se dela tirarmos qualquer sinal de fraternidade. Família nuclear, mero ajuntamento físico de pai, mãe e filho, até onde ele sabia, não a tivera. Mas Filadelfo, por se apresentar montado, na montagem de um homem sem família, queria ressaltar, e ressaltava numa forma em que deixava entrever rápidos lampejos, a pretexto de se insinuar como um homem só, a falta de um passado. Um desmemoriado da sua história, uma desmemória do rancor. Se ele fosse um homem de outra natureza, vale dizer, sem ironia, se ele não fosse Filadelfo, recordaria as feridas, o mal que sofrera, com um olhar que alcançasse a compreensão. Em lugar do ódio, do sentimento que eclipsava o objeto infame, em vez de apontar o dedo médio para a lembrança e dizer a ela “aqui, foda-se”, ele alcançaria uma palhoça no mangue, onde viveu com a sua mãe. Mas o rancor era uma lava que descia morros e planícies. Era impossível falar da mãe sem falar de si e da ausência paterna mais que física, porque ele era o rebento indesejado de uma negra de útero por desgraça fértil. Então ele terminava por culpar a própria mãe, mulher rejeitada. Era uma lógica prisioneira em um corpo de escravo. A machucada negra Sebastiana era a causa de não haver segurado o macho branco, o pastor evangélico chegado de Portugal. Ela era a culpa do pecado, pois não podia ser virtuoso um homem procriar fora do casamento, que dirá de uma negra, filha de escravo. Se foder por luxúria era um pecado, foder com gente inferior só possuía uma saída: foder a “fudida”. Foder fazendo-a de idiota.

E assim Filadelfo a via, como uma idiota, porque ele, indignado, continuava a linhagem máscula, uma ascendência paterna de foder coisas sagradas, térreas e subterrâneas, como a negra Sebastiana. É claro que ao vê-la como idiota ele repetia o comportamento geral dos filhos, para quem os pais sempre estão abaixo em conhecimento do mundo. E se em lugar de pais, desse plural varonil, o indivíduo não tivesse pai, tivesse apenas a mãe sentada no chão, de cabeça baixa, junto a um fogão de barro apagado? Então eram as trevas. Um profundo no espaço, o abismo da noite sem referências, sem raiz, sem força física ou de gravidade. O desconhecido, a condenação ao desconhecimento. O escuro que vem além da Terra, antes da Terra, fora da sua terra. Pensar na mãe, mesmo que não lhe dissesse o nome, como agora, quando está em pé na salinha, vestido em calças jeans dos gringos, de camisa folgada dos gringos, de seda, que recebera de presente dos gringos da Moore-McCormack Lines, pensar na mãe e em seu passado vergonhoso, enquanto calça os sapatos usados dos gringos, sapatos novos para ele, mas velhos para os da terra da riqueza, da civilização material, pensar na mãe e não falar nela, mesmo agora em que se prepara para sair na noite de sábado de carnaval, com aquela maravilhosa camisa de seda, estampada com palmeiras e bonequinhos negros em um fundo vermelho, pensar na mãe agora mesmo, enquanto está no centro da sala e no rádio se ouve Nat King Cole, “cachito, cachito, cachito mio, pedazo de cielo que Dios me dio”, Nat cantando em seu espanhol de gringo, que gringo, porque não é louro nem tem olhos azuis, pensar na mãe, aquele objeto cabisbaixo, sentada no chão em resignada fome, pensar na mãe e não dizê-la, mesmo agora lhe dá um gosto de sangue na boca.

Pensar nela é um mergulho no negro sem referência do espaço. Ele se perfuma, vai para conversas com um doutor nesta noite, como fala mentindo. Havia, e lá no escuro com que ele não fala vem, com este maldito gostinho de sangue:

– Fiinho, me dá meu cachimbo.

E vem um gosto de sangue tão irreprimível, tão inesquecível na boca, que ele tem vontade de falar a esse escuro de antes a além da Terra:

– Mãe, por que não bota um lenço na cabeça?

Estúpido, nem lenço eles possuíam naquele mocambo no mangue. Então botasse uma touca de papel. Estúpido! Por que um chapéu de papel na cabeça de Sebastiana? Será porque ela estava com o cabelo mais pixaim que o dele, o mulato de camisa de seda refletido agora no espelho? Idiota, Sebastiana tinha piolhos, e tão idiota era que não se cuidava. Ponha um chapéu na cabeça, mãe. Mas ele, não, tem chapéu de gringo, agora mesmo põe um todo graça e feltro, ele fala inglês com fluência, então por que esse fundo escuro lhe vem? Por que esse gosto de sangue colado na língua, no céu da boca, nos dentes? É qualquer coisa dentro, anterior à boca, anterior a ele, este elegante no espelho, Filadelfo de camisa de seda e chapéu made in USA.

Sebastiana, que estava sentada, vai para uma mistura de panos, trapos, em um canto da parede. E lá deitada, puxa um resto de sarro do cachimbo de madeira crua, sem verniz. Ela não é velha, mas por ela os anos correram muito depressa. A negra boa, chupona, quente como forno em brasa, de pele visguenta, essa negra foi rápida, sumiu, definhou na tuberculose.

– Fiinho, me dá um caneco d’água.

Filadelfo era um menino, de olhos arregalados como agora, enquanto sem querer se aprofunda bipartido no escuro. Está no espelho e está sentado no chão, chegou da rua com dois tostões, que furtou como um mágico, sob as barbas do cego de quem ele é guia. Comprou três pães. Um, comeu sozinho na rua, porque a fome era tanta que comeu escondido antes de chegar em casa, senão ia virar fraco igualzinho à mãe. Agora traz dois pães, um dele, outro de Sebastiana. Mas ela, como uma idiota, como lhe parece, apenas arranca um pedaço, abocanha um taco com os dentes frouxos no rosto de cadáver, e deixa o resto para o filho, porque ele precisa, porque é bom, porque ele trabalha, porque ele tem mais fome que ela. E se põe a fungar um resto de sarro, para completar a dieta. Esse escuro, essa história da infância, ele não quer ver. Era um jogo da velha em que o jogador sabe o fim da última jogada, sabe se perdeu vários lances antes, mesmo ali o menino vê que não pode terminar bem aquela idiota. Ela se deita e fica puxando, a intervalos irregulares cessa. Ela se põe a cantarolar uma canção, um canto que ele nunca mais ouviu em canto nenhum, umas palavras entoadas com pulsos de outra língua. São uns lamentos longos e pungentes. Ele no espelho não pode ver, mas como o jogador ao fim do jogo sabe, a mãe deitada no chão fala com Deus, dialoga com Deus, enquanto ele come a fome, o pão e os pedaços da mãe.

*Do romance “O filho renegado de Deus”

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador