Sobre o livro ‘Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa’, por Fabio de Oliveira Ribeiro

Num momento em que o governo esforça-se para destruir legado de Freire, escritor usa a pedagogia do oprimido para mostrar como aprender economia com sem-terras

O economista Eduardo Moreira dispensa apresentações. Ele tem sido um grande defensor da seguridade social (Clique aqui para assistir uma palestra dele no Senado). Falarei aqui um pouco sobre o livro que ele lançou recentemente.

“Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa” (editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2019) é um livro de economia escrito para as pessoas que não estão familiarizadas com o assunto. Quem são essas pessoas?

Em razão de sua experiência no mercado financeiro, Eduardo Moreira descobriu que “…a falta de conhecimento dos clientes tinha um valor enorme para os negócios” (p. 17). No período em que viveu num acampamento do MST ele aprendeu que os sem-terra “…têm naturalmente tão claros conceitos como investimento, custo de oportunidade, risco e retorno. Talvez não com os nomes que aprendemos na academia, mas exatamente os mesmos conceitos, compreendidos de uma forma muito mais profunda e real.” (p. 125/126).

Num momento em que o governo Bolsonaro se esforça para destruir o legado de Paulo Freire, o economista carioca fez o impensável. Ele usou a pedagogia do oprimido para mostrar como o opressor (o investidor rico que perde dinheiro porque ignora economia) pode e deve se despojar da arrogância para aprender economia com o sem-terra pobre que luta para sobreviver e multiplicar recursos escassos trabalhando a terra.

Os mitos construídos em torno do MST são demolidos um a um. Os sem-terra não são terroristas, nem comunistas. Entre eles há os que prosperam mais e os que prosperam menos. O que confere força ao grupo é a solidariedade e não é a violência ou a hierarquia. As crianças não ficam sem escolas, os velhos não ficam desamparados. Os camponeses que, por qualquer motivo, tiveram prejuízo não estão condenados a passar fome, pois eles também trabalham para a comunidade e ela cuida deles.

A competição é uma característica do capitalismo. Mas ela só realmente funciona em benefício de uma minoria, pois:

“Transformar dinheiro em sinônimo de riqueza, a ponto de não se falar mais em riqueza, somente em dinheiro, causou nas sociedades um fenômeno curioso e até certo ponto irônico. Em vez de desejarem trocar dinheiro por riquezas, que lhe seriam úteis, as pessoas passaram a trocar desesperadamente riquezas, coisas que lhes eram úteis, por dinheiro. O objetivo passou a ser acumular dinheiro.

As coisas se inverteram sem que ninguém percebesse. E como o dinheiro é fluxo de riqueza, os maiores beneficiários dessa mudança de comportamento foram os donos dos caminhos por onde esse fluxo transita: os bancos, que funcionam como estradas que cobram pedágios cada vez que um pacote de notas ou moedas as atravessa.” (p. 102)

Moreira é capaz de explicar conceitos sofisticados de economia utilizando uma linguagem simples. Algumas vezes, entretanto, ele prefere ser direto. As palavras dele são capazes de desmascarar a farsa do jornalismo econômico que identifica o sucesso ou o fracasso econômico do país com as altas nas bolsas de valores:

“… um país não se torna rico ou mais pobre com a queda ou alta da Bolsa de Valores. Esses são movimentos absolutamente especulativos, que estão tentando adivinhar qual será a quantidade de riqueza gerada no futuro pela sociedade. Aliás, a invenção do dinheiro fez com que passássemos a considerar possibilidade de riqueza futura como se fosse riqueza presente – um erro de concepção proveniente da confusão que fazemos entre riqueza e dinheiro.” (p. 108)

Nesse ponto, nunca é demais lembrar as palavras de Yanis Varoufakis sobre a mágica do sistema bancário,

“A explicação que ele dá para a atividade bancária é ao mesmo tempo elegante e profunda. Segundo o economista grego, a maioria das pessoas acredita que os Bancos emprestam o dinheiro dos clientes que já está em seu poder para obter lucro com os juros. Não é isso o que acontece.

Quando alguém vai ao Banco pegar dinheiro para, por exemplo, abrir um restaurante, o banqueiro apenas digita a quantia do empréstimo na conta do interessado. Esse dinheiro que não veio de lugar algum circulará da conta-corrente do tomador do empréstimo para as contas-correntes de outras pessoas: o dono do imóvel alugado, os fornecedores de equipamentos, produtos e serviços, empregados, etc…. Em algum momento futuro, se o negócio do restaurante der certo, o novo empresário poderá pagar o que deve ao Banco acrescido de juros.

Varoufakis descreve isso como sendo uma espécie de mágica. O dinheiro é criado no momento do empréstimo, pois o banqueiro tem o poder de estender sua mão através da linha do tempo para trazer ao presente um valor que ainda não foi criado. É esse valor futuro que pagará o dinheiro criado/emprestado pelo banqueiro no presente. A crise financeira ocorre quando mais e mais valor é criado dessa maneira e o que é produzido no presente não consegue mais pagar o que foi trazido do futuro.”
https://jornalggn.com.br/historia/como-explicar-o-fenomeno-bolsonaro-para-yanis-varoufakis/

A mágica descrita por Varoufakis só é possível por causa do erro de concepção apontada por Eduardo Moreira. Riqueza e dinheiro são coisas distintas. Tão distintas que a magia financeira do capitalismo acima descrita tem o poder de interferir de maneira negativa na produção de riqueza. Isso ocorre quando o sistema entra em colapso.

Eduardo Moreira não explica esse fenômeno, portanto, recorremos novamente a Vaoufakis:

“…no ventre dessa economia em desenvolvimento esconde-se a semente do mal, o embrião do monstro e a desculpa de que a magia negra (quer dizer, o sistema bancário) precisa para produzir caos, terror e infelicidade: o equilíbrio gera o desequilíbrio, a estabilidade gera a instabilidade e o desenvolvimento gera o colapso financeiro, a falência e a bancarrota. Ora, por trás dessa geração contraditória do mal, esconde-se a mão do banqueiro.

Você se lembra de quando eu disse que a dívida é necessária para as sociedades de mercado? Que sem dívida não há lucro? E que sem lucro não existe superávit? Agora acrescento o seguinte: o mesmo processo que gera o lucro e a riqueza também gera o colapso financeiro, a falência e as crises. Quanto mais estável for o processo de desenvolvimento, mais motivos os banqueiros terão para utilizar os seus poderes mágicos. No entanto, sem que percebam, a sua magia ultrapassa os limites, transforma-se em magia negra e imediatamente vem a crise, a quebra, o colapso. Ora, o colapso nada mais é do que a desestabilização repentina do equilíbrio diacrônico (o equilíbrio dos fatos em sua evolução no tempo), uma vez que o presente tem que confessar ao futuro que não pode devolver o que lhe deve.” (Conversando sobre economia com a minha filha, Yanis Varoufakis, editora Planeta São Paulo 2015, p. 79/80)
https://jornalggn.com.br/debate/conversando-sobre-economia-com-a-minha-filha/

Apesar das aparências, não existem diferenças profundas entre Varoufakis e Eduardo Moreira. Na verdade os dois livros são complementares. Tanto que Moreira também enfatiza que “… a vida e as estruturas de poder funcionam de forma muito parecida às de um show de mágica. Enquanto ficamos distraídos olhando para o que não tem importância, não percebemos os truques sendo feitos.” (p. 20).

Quando as ilusões são desfeitas o sistema entra em colapso justamente por causa da magia utilizada pelos Bancos (Varoufakis). O ex-banqueiro brasileiro percebeu que tudo passa a fazer sentido no momento em que passamos a prestar atenção nos truques. Ambos ensinam as mesmas coisas, mas Eduardo Moreira fala para o público brasileiro levando em conta a realidade do Brasil e Varoufakis fala para o público mundial levando em conta a experiência grega.

Por que os banqueiros consideram o MST um problema? A resposta a essa pergunta pode ser obtida a partir da leitura de “Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa”. Os bancos lucram com a competição. A solidariedade dos sem terras garante a prosperidade dos negócios do MST sem que as agroindústrias que eles criaram se endividem ou causem o endividamento dos assentados. Como eles produzem e acumulam riquezas sem recorrer aos pedágios bancários, os banqueiros não podem ficar com “a piece of action”. Na Grécia eles ficaram com o país inteiro. O que sobrou para a população grega? Quase nada, ou seja, exatamente o que os banqueiros gostariam de deixar nas mãos dos membros dos assentamentos do MST.

Em seu livro, Eduardo Moreira apresenta um interessante estudo de caso do aumento da desigualdade social: o que ocorreu nos EUA nas últimas décadas. Vale a pena conferir.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador