A ecologia em Marx: por uma inadiável (re)visão antropocênica
por Antonio Hélio Junqueira[1]
“Nada vem do nada e nada ao ser destruído pode ser reduzido a nada” (Epicuro).
Historicamente, importantes lacunas e carências na contextualização dos escritos de Marx (1818 – 1883) – em conjunto com Friedrich Engels (1820-1895) –, e equivocadas interpretações por parte de muitos de seus críticos e discípulos, fizeram com que a visão ecológica no pensamento marxiano tenha se tornado enviesada, rasa, minimizada e, até mesmo, negada.
Contudo, afortunadamente, novas e sucessivas (re)orientações e perspectivas de leitura desses pensadores têm resgatado suas importantes contribuições para a correta compreensão crítica e insights sobre a intrínseca conexão entre humanidade, cultura, sociedade e natureza.
Certo é que temáticas como sustentabilidade, aquecimento global e os dilemas do Antropoceno – que emergiram socialmente na ambiência dos anos 1970 – ganham a cada dia proporções mais sombrias e assustadoras e passam a demandar todo tipo de urgências em providências de cura ou remediação. Certo é, também, que as análises das implicações dos modos de produção capitalista sobre a exaustão ambiental e comprometimento da vida não são essencialmente novidade. De fato, já no século 19, Marx em suas reflexões apontava para as mazelas, riscos e consequências do consumo desenfreado, da “poluição universal” e da falta de cuidados com o ambiente natural. O filósofo e economista alemão tinha clareza de que o capitalismo esgotava a Terra e o Homem, lançando, desde então, as bases do que veio posteriormente a ser categorizado como ecossocialismo.
Ao contrário do que muitos preservacionistas propagam e em que outros tantos tendem a acreditar, Marx nunca considerou a natureza como um ente intocado, separado das vicissitudes, interferências e consequências da existência do ser humano. Pelo contrário, sua leitura do mundo sempre colocou a humanidade como parte integrante, intrínseca e inextricável do próprio meio ambiente. Em seus “Manuscritos econômico-filosóficos” (série de notas escritas entre abril e agosto de 1844 e não publicadas em vida) Marx diz textualmente que “o homem vive da natureza, isto é, a natureza é seu corpo, e tem que manter com ela um diálogo ininterrupto se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, porque o homem é parte dela”. Mais claro, impossível!
À visão então dominante de um materialismo naturalista e de um humanismo contemplativo, conforme proposto e difundido pelo também filósofo alemão Ludwig Feurbach (1804-1872), Marx contrapôs os caminhos da construção do materialismo dialético, decisivamente afeito às reais necessidades da interpretação e da compreensão dos fenômenos ecoambientais.
Na linguagem marxiana, todas as imbricadas conexões entre humanidade e natureza adquirem a configuração do que ele chama de metabolismo (stoffwechsel). Trata-se de uma vinculação estabelecida e regulada pela via da produção do trabalho.
Visando sanar vieses e cobrir lacunas na interpretação do pensamento ecológico marxiano, o cientista político norte-americano John Bellamy Foster (Washington, EUA; 1953) – uma das maiores autoridades no tema e professor de Sociologia da Universidade de Oregon – escreveu o livro “A ecologia de Marx – materialismo e natureza”, publicado originalmente no ano 2000 (com uma única edição em português, em 2005, que se esgotou rapidamente), que é agora brilhante e oportunamente relançado no Brasil, em uma nova tradução, pela Editora Expressão Popular[2], no âmbito da sua série Ecologia Marxista.
Entre os múltiplos méritos da reedição da obra, certamente está o de sanar as mazelas herdadas de leituras rasas e reducionistas do passado, contextualizando rigorosamente o pensamento marxiano, em direção a reflexões críticas mais do que nunca necessárias e inadiáveis.
No livro, Foster refaz o caminho percorrido por Marx na construção do seu pensamento materialista, ao remontar suas buscas no filósofo ateniense Epicuro (341 a.C – 270 a.C.), cuja obra foi objeto de sua tese doutoral (1841), e do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Tratava-se de encontrar e produzir a superação das concepções teleológicas expressas na teologia cristã e pautadas pela alienação dos seres humanos em relação à natureza no interior da produção.
Ao longo da obra, Foster detalha a luta abraçada por Marx na desconstrução do pensamento malthusiano (Tomas Malthus, 1766- 1834), que sabe-se lá de onde tirou a ideia de que as limitações à vida estavam irremediavelmente dadas pela equação de crescimento desigual da população humana (a taxas geométricas) versus a produção de alimentos (que evoluía em progressão aritmética). Na verdade, ele não tinha provas, nem tampouco evidências, mas tinha convicção, prática essa que sabemos bem no que costuma resultar.
O autor esclarece, também, a solidez das preocupações marxianas tanto com o esgotamento da fertilidade natural dos solos pela agricultura capitalista praticada na Europa e nos EUA – então espoliada e privada dos mecanismos de restituição dos seus nutrientes –, quanto pela poluição urbana, que desumanizava e adoecia os trabalhadores.
Segundo diferentes possibilidades de leitura, a relativização da importância ecológica da obra de Marx calca-se tanto em certa acomodação própria dos seus discípulos – haja vista que tal visão não se sustenta e não resiste a uma crítica minimamente acurada –, quanto em alguns equívocos surgidos na redação de certos trechos de textos do autor. Entre essas, Foster destaca a expressão “idiotia da vida rural”, presente no “Manifesto do Partido Comunista” (Marx e Engels, 1848), no seguinte excerto: “O capitalismo sujeitou o país ao governo das cidades. Ele criou cidades enormes, aumentou muito a população urbana em comparação com a rural e, assim, resgatou uma parte considerável da população da idiotia da vida rural” (Foster, 2023, p. 201).
Na verdade, como explica Foster, a palavra idiota aí empregada teria uma outra conotação para Marx, dado que na antiga Atenas o idiota (Idiotes) era alguém excluído da vida pública e que, diferentemente daqueles que participavam das assembleias públicas, “viam a vida pública (a vida da pólis) desde um ponto de vista estreito, paroquial e, portanto, ‘idiótico’” (Foster, 2023, p. 201).
Porém, apenas o uso da expressão foi suficiente para caracterizar o pensamento marxiano como manifestação expressa de uma posição antiecológica.
Ao longo do seu livro, Foster se propõem e enfrenta, ainda, outro desafio de imensa envergadura: desconstruir a reação de intelectuais de grande calibre (Anthony Giddens, John Clark e Michael Löwy, entre outros) que negam ou minimizam o pensamento ecológico em Marx, frente à uma (pré)suposta visão prometeica da capacidade produtiva inesgotável do capitalismo, que ignora os limites impostos pela natureza e hipostasia a força do trabalho humano como fonte privilegiada e determinante do valor econômico (Leff, 2021)[3].
Frente a isso, Foster argumenta que a acusação de prometeísmo em Marx parece implicar certa rejeição do pensamento “verde” ou da “Teoria Verde” à própria modernidade e ao capitalismo como relação social dominante dessa mesma modernidade. Seria, em certo sentido, um tiro pela culatra (improcedente, diga-se) da própria crítica marxiana às bases mítico-religiosas de Proudhon, que ele tanto fez por transcender. O próprio Foster, além do filósofo existencialista francês Sartre (1905-1980), buscou desfazer esse monumental equívoco que criticava Marx por visões que ele, em realidade, vigorosamente atacava. Mas, como perguntava Sartre: o que fazer quando a crítica vem daqueles que sequer leram o próprio Proudhon e que, portanto, não têm a compreensão verdadeira da crítica de Marx?
No atual contexto, repensar os dilemas sociais e ecoambientais contemporâneos à luz do metabolismo marxiano (ou das consequências de sua ruptura) significa superar o esvaziamento ideológico das lutas emancipatórias, tendentes a sucumbir sob o greenwashing empresarial e corporativo e à glamorização inconsequente das palavras de ordem sequestradas da verdadeira corrida contra a catástrofe ambiental.
Por isso, o livro de Foster, presente e tão oportunamente reeditado, constitui-se em texto fundamental para o avanço do pensamento ecológico na Economia Política marxiana, no interior da qual se (r)estabelece a conexão entre as concepções materialistas da história e da natureza, ou seja, “da alienação do trabalho com a alimentação da natureza” (Foster, 2023, p. 355).
Uma (re)leitura altamente recomendada.
[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Pós-doutorando em Gestão da Informação (UFPR). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP).
[2] FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza, tradução de João Pompeu. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2023. 384 p.
[3] LEFF, Enrique. Ecologia política: da desconstrução do capital à territorialização da vida; tradução Jorge Calvimontes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2021.
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“The development of civilization and industry in general has always shown itself so active in the destruction of forests that everything that has been done for their conservation and production is completely insignificant in comparison,” Karl Marx.
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