A inimputabilidade da direita no Brasil
por Luis Felipe Miguel
A Folha de S. Paulo tem feito uma série de reportagens para comemorar os 30 anos do Plano Real.
São páginas e páginas, todos os dias. Reforçaram velhas lendas, como a do “papelzinho azul” de Edmar Bacha, reiteram a narrativa apologética dos protagonistas da história.
(Sobre Bacha, ver o relato demolidor de Luis Nassif: aqui.)
É algo completamente desproporcional à importância da efeméride. Meu palpite? Uma tentativa desesperada de recuperar a importância do PSDB no cenário da política brasileira.
Afinal, o enquadramento não é só que o Plano Real salvou o país, derrotando a inflação. A motivação eleitoral, os erros de condução, o desastre depois levado a cabo para garantir a reeleição inconstitucional de Fernando Henrique, tudo isso desaparece.
(Houve outra tentativa de metamorfosear FHC, de presidente desastroso em sábio macróbio e defensor da nossa democracia, mas a debacle do governo Temer a desmoralizou.)
Mais ainda: um subtexto importante, enunciado com clareza na entrevista de Pérsio Arida, é que o Real estabeleceu a rota para a “modernização” do país, infelizmente interrompida com a vitória de Lula em 2002.
É tocante ver como, nessa altura do campeonato, a Folha ainda sonha com um retorno do tucanato, para implementar um projeto neoliberal limpinho. Sem a incompetência, o histrionismo e os maus modos de Guedes e Bolsonaro. Sem um chefe e um partido produzindo ruídos, como no caso de Haddad.
Um neoliberalismo “progressista”, é claro. Defensor da igualdade racial e dos direitos de pessoas trans, desde que em chave individualista e meritocrática. Às vezes penso que os editores da Folha leram a crítica da Nancy Fraser e a adotaram como programa.
(No jornal de ontem, uma entrevista de Ice Blue, do Racionais MC’s, foi exemplar: “Funk deu liberdade e pessoas periféricas ficaram milionárias”. Puro suco de individualismo e naturalização da desigualdade, com uma demão de antirracismo pra ficar bem na foto.)
Na sexta, a entrevista foi com Rubens Ricupero. Os mais jovens e os desmemoriados talvez não lembrem de seu papel no Plano Real.
Quando FHC deixou o Ministério da Fazenda para concorrer à presidência, Ricupero sucedeu-o e tornou-se o maior garoto-propaganda do plano econômico. Sua superexposição na mídia favorecia a candidatura tucana.
Mas, ao fazer descontraídas revelações ao repórter Carlos Monforte, da Rede Globo, antes de uma entrevista, sem saber que a conversa era captada por antenas parabólicas, causou o maior sobressalto à campanha. O ministro expôs a tática governamental de fazer propaganda de Fernando Henrique por meio do Plano Real, confessou a cumplicidade dos meios de comunicação, nomeadamente da TV Globo, com essa campanha, exaltou seu próprio papel na boa performance do candidato oficial, gabou-se de que era “indemissível” e continuaria no cargo no governo seguinte. Na frase mais contundente, vangloriou-se de “não ter escrúpulos” de mentir ao povo e pautar sua atuação ministerial pelas conveniências eleitorais.
O escândalo custou a Ricupero a cadeira “indemissível” de ministro (foi substituído por Ciro Gomes). No Fantástico, ele fez um emocionado mea culpa, em que lamentou não as ações antiéticas, mas ter cometido a indiscrição que o vitimou: errara ao ser pego, não ao delinquir.
Ricupero reduziu o escândalo a um problema de postura pessoal. Lamentou ter deixado “transparecer uma opinião vaidosa e arrogante sobre mim” e atribuiu o “momento de fraqueza” à sua condição de um “ser humano como qualquer outro, com as mesmas limitações e defeitos”.
Mesmo assim, ou talvez por causa disso, a entrevista de Ricupero após a saída do ministério foi apresentada como uma magnífica demonstração de honradez.
Trinta anos depois, na entrevista à Folha, diante de uma jornalista complacente, repete a mesma toada. Assume tranquilamente que eleger Fernando Henrique era o objetivo do plano. Reduz suas inconfidências a “tolices de vaidade” e manifesta mágoa por terem acreditado em sua própria confissão. “Eu tinha escrúpulos”, reclama Ricupero.
Lendo a entrevista, lembrei de certo juiz de primeira instância pedindo “escusas” por ter participado de um golpe contra a democracia brasileira.
Parece que é sempre assim. A direita pinta e borda, se é flagrada murmura uma desculpa qualquer e está tudo bem, não precisa nem ir para o cantinho da reflexão.
Por isso é tão importante punir os golpistas de 2022 e 2023 – os cabeças, os mandantes, não só os bagrinhos teleguiados. Para começar a traçar uma linha para a truculência e a desonestidade da direita.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Cara, só você se lembra da palhaçada do Ricupero, (e alguns de nós também), mas a maioria da população “produtiva” nasceu sob o plano real e os remanescentes se converteram ao bolsonarismo por medo do sempre ameaçador Plano Collor. A mente do brasileiro médio não acumula os acontecimentos políticos em ordem cronológica e sim de acordo com as consequências para a sua bolha (ou camada social). Quanto a esses jornalões, quem lê?