Dulce Maia: Não somos vítimas nem heróis de uma época. De nada me arrependo!

Enviado por Nilva de Souza

por Paula Souza Lopez

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Da pagina do querido Aimar Labaki que tive a sorte de encontrar por acaso hoje no cafe vizinho de casa com Pedro Pires

Aimar fez ha pouco esta linda homenagem a Dulce Maia de Souza, mestra de todos nos (digo isso mesmo sem te-la conhecido de perto) E adotei ha pouco sua linda cidade: Cunha, que me acolhe mais a cada ida, a cada visita, a cada aproximacao!

Dulce, siga nos iluminando e nos fortalecendo!

“Dois obituários num mesmo dia. Seria demasiado, não fosse condizente com os dias que correm. Por outro lado, os protagonistas por certo ficariam felizes com a companhia um do outro. Horas depois de Antonio Cândido, se vai Dulce Maia de Souza. Exemplo para quantos atravessaram o inferno dos porões da ditadura, Dulce manteve até o fim a postura de quem não desiste de lutar pela Justiça, mesmo contra todas as evidências que a vida nos joga na cara de que essa luta está longe de terminar. Obrigado, muito obrigado, Dulce. Desculpe se não fazemos o mesmo tanto. R.I.P.

PS. Tirei do Blague do blog, o perfil abaixo, que vale a pena ser lido.

http://blaguedoblog.blogspot.com.br/…/o-ano-que-nao-termino…

Primeiro chegam os cães, depois os gatos, todos dando as boas-vindas no “Lar Dulce Lar”, como ela mesma gosta de chamar a sua casa em Cunha, na Serra do Mar, entre a praia e o campo, entre São Paulo e Rio de Janeiro, entre Ubatuba e Parati. Com cheiro de madeira, livros, revistas, discos, cerâmicas e muita vida espalhada por todos os cantos. A espaçosa e aconchegante casa foi construída por Dulce Maia de Souza há três anos, depois que ela se mudou de um sítio na mesma região. Basta um passeio no jardim e já se pode notar que a senhora de olhar profundo e cabeleira toda branca tem um vício: as árvores, plantas e flores.

Desde que se mudou para essa casa em Cunha, já plantou mais de 6 mil pés de árvore dentro e fora de seu terreno. “Quando voltei ao Brasil, depois dos anos de exílio, me mudei para Floripa, porque queria viver perto da praia.” Lá conseguiu refazer sua vida pós-exílio, ganhou algum dinheiro vendendo por 300 mil dólares os terrenos que comprara por apenas poucos mil. “Alguma coisa está muito errada neste país, não?”, indaga Dulce, que procurou outro rumo depois que a especulação imobiliária se instalou na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, capital de Santa Catarina.

Ela chegou a Cunha há exatos 15 anos, e nunca mais saiu. Conhecida por todos na cidade, hoje a ex-guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) é diretora de uma ONG para projetos de proteção da flora e da fauna brasileira na Serra da Bocaina, a Econsenso, e fundadora de outra na cidadezinha onde vive.

Atéia por convicção, ela diz que sua religião é a solidariedade

Aos 70 anos, ela não pára, sobe e desce escadas, vai e volta da cidade com o seu conservado jipe preto, está sempre viajando a trabalho, recebe amigos e cuida da casa em que vive com um de seus dois filhos adotivos, o mais novo, Isaías, de 20 anos. Dulce diz que a tortura a deixou com a cabeça meio ruim e, por isso, prefere se cercar de gente, de vida, “para não pensar muito nas suas cicatrizes”. A política está presente até em suas veias, raízes e fios brancos de cabelo.

Atéia por convicção, Dulce Maia diz que sua religião é a solidariedade. Seus santos são Che Guevara, Ho Chi Minh (líder e herói da luta antiamericana no ex-Vietnã do Norte) e Amílcar Cabral (líder do movimento que derrubou o colonialismo português na Guiné-Bissau e em Cabo Verde). Em 1966, Judith – codinome pelo qual ela se identificava entre os companheiros de luta clandestina – entrou para o grupo de guerrilha urbana VPR, uma organização da ultra-esquerda brasileira que, como muitas outras na época da ditadura, acreditava na mudança com base na luta armada. Formada por estudantes, operários e ex-militares que compunham o recém-deposto governo João Goulart, a organização tinha em sua liderança Carlos Lamarca, o ex-capitão do Exército morto anos depois pela repressão.

Nessa mesma época, ainda como Dulce, ela perambulava entre São Paulo e Rio de Janeiro enquanto produzia shows e encontros culturais, principalmente no Teatro Maria Della Costa. “Trabalhávamos em forma de cooperativa, cada um ajudava com o que sabia e podia, o Ricardo Ohtake (hoje diretor do Instituto Tomie Ohtake) fazia os cartazes, Gil, Vandré e Chico Buarque tocavam e cantavam para fazer com que a venda de ingressos dos shows fosse revertida para mantermos muitos companheiros na clandestinidade.”

Muito amiga do artista plástico Zé Roberto Aguilar e do cantor e compositor Jorge Mautner, era chamada pelos amigos de “sacerdotisa do kaos”, uma espécie de brincadeira com o livro e pseudomovimento que Mautner inaugurara na época. “Éramos de uma confraria, digamos assim.” A guerrilha foi um caminho natural para ela, talvez por conta de sua formação, vinda de uma família politizada, humanista e libertária, pais socialistas – sua mãe havia sido presa durante a ditadura de Vargas -, ou pela situação em si, pelo meio em que vivia, como ela mesma aponta. “Eu nunca tive medo de pegar em armas, porque havia muita confiança, amor e crença na autenticidade dessa luta. Acho que se não tivéssemos feito isso haveria um vazio na história de nosso país em relação ao resto do mundo.”

Fez ponta em O Bandido da Luz Vermelha como uma marchadeira

No ano de 1968 ela se dividia entre Rio e São Paulo. Sempre atuante, envolvida com o trabalho do dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa e toda a turma do Teatro Oficina, Dulce ainda era guerrilheira da VPR, mas esse fato não era uma informação pública, pois seguia as estritas normas de segurança das organizações militantes.

Nem todos conheciam Judith. Para a maioria, ela era apenas Dulce. Uma mulher de 30 anos, bonita e elegante. Ninguém suspeitaria que andava com uma arma na bolsa. “Esse foi um ano cheio de ações de luta armada. Mas foi também o ano de Roda Viva (peça escrita por Chico Buarque e produzida por ela, com direção de Zé Celso e cenário e figurino realizados pelo artista plástico e cenógrafo Flávio Império). Foi o ano da inauguração da sede do Masp na Avenida Paulista, das reuniões com os companheiros de luta na Casa de Vidro da Lina ( a arquiteta que projetou o Masp, Lina Bo Bardi), no Morumbi. Foi a estréia do filme inaugural do cinema marginal, O Bandido da Luz Vermelha, do cineasta Rogério Sganzerla, em que fiz até uma ponta como uma marchadeira (como ficaram conhecidas as mulheres que participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade). Teve o Caetano com o show Opinião, as montagens teatrais como Arena Conta Zumbi e Liberdade, Liberdade, e finalmente o cinema revolucionário de Glauber Rocha, com Terra em Transe, que foi um marco revolucionário para a época.”

Foi o ano em que a peça O Rei da Vela, também montada pelo Oficina, foi apresentada em Florença, na Itália, e convidada para o Festival de Nancy, na França: era a exportação do movimento tropicalista para terras estrangeiras. Exatamente no mês de maio de 1968, Dulce estava no Rio de Janeiro e recebeu um telefonema de Zé Celso, seu grande amigo, pedindo para que ela fosse buscá-lo no Aeroporto de Viracopos. “Eu havia ficado no Brasil porque tinha de cuidar do Teatro Oficina.”

Zé Celso estava em Paris e assistiu da sacada do prédio à cena de o cineasta Jean-Luc Godard, com quem estava filmando, ser espancado pela polícia. Sua solidariedade espontânea fez com que, do primeiro andar, arremessasse objetos na polícia, que respondeu com uma bomba de gás lacrimogêneo. Zé Celso voltou para o Brasil com um tampão nos olhos, assustado e ao mesmo tempo maravilhado com o movimento francês.

Logo após sua chegada, militantes brasileiros que estavam em Paris, organizados pelos movimentos daqui, vinham desembarcando e importando os sopros de liberdade e de contestação que envolviam a França de então. As ações de rua no Brasil tomaram forma semelhante à das parisienses, mas com a enorme diferença de que aqui havia uma ditadura militar.

Dulce foi presa em janeiro de 1969, época em que guardava (escondia) muita gente em aparelhos (esconderijos, na linguagem das organizações clandestinas) espalhados pela cidade, transportava pessoas com cortina nos carros e vendas nos olhos. Conta que no dia de sua prisão havia desmontado alguns desses aparelhos e voltava para a casa dos pais, no Brooklin, bairro da capital paulista. Já era meia-noite quando invadiram a casa. “Minha mãe ficou em pânico, contou-me que foi como ver o meu caixão saindo, avançou e agrediu um policial para tentar impedir que me levassem.”

Foi durante o tempo em que ficou presa, de janeiro de 1969 a junho de 1970, que Dulce Maia perdeu a mãe. Madre Assunção, diretora da prisão, telefonou ao juiz auditor pedindo autorização para que ela fosse ao enterro. Mas o pedido foi negado. “Não fugiria em uma situação dessas, pois esses gestos humanos devem ser reconhecidos.” Dulce tinha certeza de que não morreria na Penitenciária Feminina, no Carandiru. “Eu não vou morrer aqui, vocês são todos parte de uma engrenagem podre, eu, ao menos, tenho uma causa”, dizia aos seus torturadores. Resistiu como ela mesma nunca imaginara ser capaz. Foi torturada constantemente por cinco meses. “Os militares já não me agüentavam mais, tinham raiva de mim pela minha situação ali, por resistir, por ser mulher”, revela Dulce. Acabou sendo libertada em troca do embaixador alemão seqüestrado no Rio de Janeiro.

As seqüelas dificultaram seu retorno à vida normal

Em junho de 1970, junto com outras presas, saiu da cela diretamente para um avião militar, ainda algemada, e voou para a Argélia, país recém-libertado do colonialismo francês. Seus cabelos ficaram brancos repentinamente, após algumas sessões de tortura. Passou por coisas horríveis, desaprendeu a falar e a escrever, teve de recomeçar sua vida em lugares distantes e muito debilitada.

Depois da Argélia seguiu para Cuba, em busca de tratamento médico. Em 1973, estava no Chile, quando Pinochet derrubou Allende. Foi, então, para o México e depois para a Bélgica. Lá ficou até abril de 1975, quando aterrissou em Lisboa, onde a ditadura cinqüentenária de Salazar havia caído. O último destino de Dulce antes da volta ao Brasil foi a Guiné-Bissau, país que conseguiu a independência do colonialismo português após a queda de Salazar. Em 1979, com a Lei da Anistia, foi a primeira exilada a retornar ao País.

Após nove anos de exílio, Dulce chegou ainda trêmula e frágil. As seqüelas da tortura dificultaram seu retorno à vida cotidiana. Apesar de no exílio ter criado vínculos fortíssimos com pessoas que conheceu, amigos queridos com os quais mantém relações até hoje, também passou por maus bocados. Ainda tem seqüelas, mas assume se cuidar muito. “Sou uma articuladora, mas não sou uma pessoa articulada.”

Dulce se vê como uma humanista que lutou contra um regime de exceção, e diz: “Contribuímos muito para a volta da democracia, mas hoje um movimento assim não teria sentido. A luta deve continuar, mas talvez a fórmula atual seja cada um no seu setor, podendo contribuir para que haja mudança, em seu exercício cotidiano.”

Hoje, além de cuidar das duas ONGs de preservação e educação socioambiental, ainda colhe frutos do difícil mas precioso período que viveu intensamente. A boa relação que mantém com algumas entidades internacionais e amigos que fez durante o exílio, por exemplo, abriram as portas para que conseguisse enviar mais de dez jovens de Cunha para estudar medicina em Cuba, reconhecida pela excelência de seus cursos. Em alguns momentos, como qualquer pessoa, questiona a vida que viveu. E lembra da conversa que teve com um amigo e companheiro de luta, em Paris, quando desejou ter sido uma dona Maria lá da Mooca, que passa a manhã lavando a calçada e depois prepara a macarronada para sua enorme família. O amigo pensou em como teria sido a vida se fosse um bancário. Mas, ao final, ela admite: “Nossas vidas são emocionantes até hoje”.

Aos 70 anos, se orgulha de seu passado. Não é, e nunca seria, uma matrona acomodada. Irmã de Carlito e Hugo Maia, dois importantes nomes do jornalismo e da publicidade brasileiros, Dulce sempre teve a comunicação no sangue e, apesar de não ser uma comunicóloga por profissão, vive de se comunicar. Dona de uma memória impecável, ela carrega na cabeça um emaranhado de fios capaz de ligar todos a qualquer um. E qualquer um a todos.

Ao relembrar aqueles tempos de tortura, mas também de muitas realizações, criações e laços fortes, ela, que se encaixaria nos grandes perfis de heroínas do século XX, que como mulher independente e lutadora sofria preconceitos e repressões, diz não sentir um peso na memória, pois esse é um passado ainda presente em suas lembranças, relações e conversas diárias. Dulce se diz excessivamente otimista em relação ao mundo e ao ser humano. Ainda sonha com a transformação social. Sobre a atual conjuntura política não se sente comprometida com nenhuma bandeira, movimento ou partido. “Não é só porque sou de esquerda que irei apoiar cegamente qualquer um.”

Para ela, a esquerda ainda resiste maniqueísta, sectária e moralista, e o povo brasileiro ainda se mostra covarde, acomodado e estranho. “A política hoje é promíscua”, afirma, ao mesmo tempo em que não avança em seu radicalismo, sempre ponderando que houve evoluções em termos da democracia tanto no governo FHC quanto está havendo no de Lula. “Não somos vítimas nem heróis de uma época. De nada me arrependo.” A luta de Dulce e de muitos outros pode ter sido feita com exageros e com excessos, muitas vezes inevitáveis frente às circunstâncias, mas foi uma luta carregada de paixão e de compromisso.”

 
Redação

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