Memórias: o caso Escola Base, Cláudia Liz e outros crimes de imprensa

É questão de tempo para que esse primarismo seja varrido do mapa, institua-se o verdadeiro pluralismo que caracteriza as sociedades democráticas e a mídia avance degraus no sentido da qualidade e da defesa dos direitos individuais. Mas quantos mortos a mais serão deixados pelo caminho?

Na Economia, tive poucas oportunidades de acompanhar reportagens policiais. Uma delas foi no Jornal da Tarde, quando houve o estouro da corretora Tieppo, a primeira a ousar os grandes mercados especulativos globais. Houve uma investigação policial para identificar os donos dos recursos aplicados no exterior, atividade proibida.

Nesse episódio me impressionaram várias coisas. Primeiro, a corte dos repórteres aos delegados que conduziam o inquérito. Era indecente! Eram tratados como grandes investigadores, em troca de migalhas de informações. Decidimos investigar fora dos canais oficiais e desvendamos uma trama de Romeu Tuma visando esconder o caixa 2 da corretora, onde estavam relacionados os grandes investidores. E toda a cobertura embarcando na versão oficial, em um trailler do que ocorreria com todos as coberturas de manada, até desembocar na Lava Jato.

O caso da Escola Base surgiu depois da campanha do impeachment de Fernando Collor, um dos momentos mais baixos do jornalismo pátrio, ensaio das grandes coberturas catárticas dos anos seguintes.

Dia após dia, o público foi sendo viciado em escatologia, em notícias fantasiosas, em histórias escabrosas. Encerrada a campanha, criou-se um vazio para um público viciado no jornalismo de esgoto praticado. O caso da Escola Base surgiu nesse vácuo. Depois de presidente que cheirava cocaína por supositório, de dar ares de notícia a qualquer conversa de boteco de Brasília, a mídia estava atrás de novas histórias inverossímeis capazes de manter a atenção do leitor. E nada melhor do que a história de crianças de 4 anos participando de bacanais na própria escola.

Li as primeiras reportagens, impressionado com a história. Após o segundo ou terceiro dia, passei a ficar com pé atrás. A única fonte era um delegado, de repente transformado em estrela. As poucas manifestações dos donos e funcionários da escola eram relegadas ao pé de página interna.

Por aqueles tempos, eu tinha a coluna no caderno de Economia da Folha, participava do Jornal Gente, da rádio Bandeirantes, às 8 da manhã e comentava no Jornal da Noite, na TV Bandeirante, depois das 22.

No segundo ou terceiro dia sugeri ao chefe de reportagem da Band que passasse a apostar na possibilidade do japonês ser inocente. Dei um toque também no âncora do jornal, Chico Pinheiro. Acharam melhor não meter a mão naquela cumbuca.

No dia seguinte cheguei para o comentário no Jornal da Noite. Os donos da escola tinham sido presos naquele dia. Comentei meu incômodo com Cléo, um experiente editor do jornal. As manifestações indignadas do japonês me pareciam sinceras e não tinha visto nenhuma evidência maior do que as declarações do delegado.

Cléo me disse, então, algo surpreendente. O advogado dos donos da Escola tinha encaminhado para uma repórter da Bandeirantes um laudo do Instituto Médico Legal atestando que o vermelhão no ânus da criança supostamente seviciada fora causada ou por um lápis ou por assadura. Procurara a repórter por julgarem que a cobertura da Bandeirantes era a menos sensacionalista.

Naquela noite, na hora do meu comentário, fugi da Economia. Tinha por hábito comentar de improviso, sem me apegar a scripts. Falei da indignação do japonês e para que se pensasse na seguinte possibilidade: e se ele for inocente? O comentário foi reconstituído,, depois, pelo Alex Ribeiro, no livro que escreveu sobre o caso.

No dia seguinte, preparei uma coluna para a Folha mostrando a hipocrisia da sociedade paulistana. De um lado, a lisonja permanente a um suposto Mecenas, o Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, golpista notório, mas cujos convites para vernissages eram disputados a tapa pela sociedade e pelos colunistas paulistanos. De outro, o japonês da Aclimação.

Japonês da Aclimação e o mecenas

LUÍS NASSIF

O japonês da Aclimação vai ajudar a brava sociedade brasileira a purgar seus erros e permissividades. Desconfiou-se em sua escolinha, donos professores e pais de alunos praticavam abusos sexuais contra pequenos alunos de quatro anos de idade. Um roteiro para Marquês de Sade nenhum botar defeito.

Não há nenhuma prova conclusiva para as acusações. Não há sequer laudos que comprovem definitivamente a prática de abusos sexuais. Um exame comprovou dilatamento de um por um ânus de uma das crianças. Pode ser vestígio de penetração, seguramente não por parte de um adulto. Pode ser fruto de uma assadura. Depois disso, há apenas informações arrancadas de crianças de quatro anos por pais desesperados.

Há o quadro já conhecido de policiais que se deslumbram com episódios que podem lhe render popularidade e de cobertura jornalística burocrática que vale exclusivamente da versão oficial.

Mas pode haver algo de maior impacto, para policiais e jornalistas, do que a suposição de crianças de quatro anos – que poderiam ser filhos dos próprios leitores – sendo utilizadas em sessões de filmes pornográficos?

Não há nenhuma foto, nenhum filme que comprove a versão, mas o que importa? Como tem-se 50% de possibilidade de o japonês da Aclimação ser culpado, está-se cometendo apenas 50% de injustiça.

E toca-se a linchar o japonês e os pais de outros alunos de quatro anos, valendo-se desta grande prerrogativa, que é sentir-se fortalecido na companhia da unanimidade, para melhor poder exercitar o supremo gozo de participar de um linchamento, sem riscos e sem remorsos – uma espécie de realidade virtual da Disneyworld com vidas alheias, em que se vive a sensaçào de perigo, sem correr riscos.

Pouco importa se o resultado final desta investigação vier eventualmente a comprovar a inocência dos acusados. Se errar, terá o álibi de estar errando em ampla companhia.

Lei e ética

O combate à corrupção não se faz em cima de leis, mas de princípios éticos desenvolvidos pela sociedade como um todo. O primeiro círculo a coibir práticas erradas é a família. O segundo círculo social. Se houver convivência com desvios, não há aparato legal que resolva.

Em São Paulo, um banqueiro foi acusado de integrar o esquema PC Farias junto a Fundos de pensão e ao sistema Telebras. Um grande empresário carioca, homem de vida pública conhecida e de boa reputação acusou-o frontalmente de ter exigido propinas para liberar uma licitação. Outro empresário, do setor de telecomunicações, acusou-o de tê-lo procurado em nome do próprio PC-Farias.

Nenhuma medida foi tomada pelo Ministério Público Federal para apurar os fatos. Fosse apenas um empresário paulista, o banqueiro provavelmente teria sua vida, investigada. Mas é também genro de um senador da República.

A brava elite paulista transformou-o em seu mecenas particular, sem se preocupar sequer em cobrar-lhe explicações cabais para as acusações. Ele é personagem ativo das colunas sociais, sua casa é frequentada por personalidades conhecidas da vida intelectual e empresarial, suas festas elogiadíssimas, assim como suas virtudes de enólogo. Tem dinheiro e é grande amante das artes. Um grande praça, sem dúvida.

Não se assuma a presunção da culpa. Pode ser que seja inocente. Pode ser que seja culpado. O fato é que em nenhum momento as suspeitas provocaram sequer o constrangimento, que é o sinal mais tênue de existência de princípios éticos regendo relações sociais.

Mas pouco importa. O poderoso japonês da Aclimação está aí mesmo, para mostrar que com a sociedade brasileira não se brinca.

De manhã, fui mais enfático no programa de rádio.

Os donos da Escola foram soltos naquele dia. Depois, pelo livro de Ribeiro soube que o desembargador que concedeu a liminar se sentiu mais à vontade quando percebeu que havia se rompido a unanimidade na mídia.

O episódio acabou com a escola e a vida do japonês. Os veículos foram condenados a indenizações vultosas, mas apelaram para adiar o máximo possível o pagamento.

O episódio entrou para a história do jornalismo brasileiro, mas nem assim a mídia aprendeu.

Tempos depois, ocorreu outro episódio, a morte de um casal de namorados no Bar Bodega. Houve pressão desmedida da mídia. A Bandeirantes chegou a promover uma campanha, tipo coloque branco na janela exigindo a punição.

A pressão recaiu sobre um delegado que, em poucos dias, prendeu cinco meninos negros, de uma favela próxima ao bar. Durante um mês foram mantidos presos. Na hora da denúncia, um bravo promotor estadual, Eduardo Araujo da Silva, opinou pela libertação imediata dos meninos, pois nada havia de concreto nas investigações que apontassem a sua culpa.

Foi submetido a um massacre pela mídia. Sai em sua defesa, em um artigo indignado com a informação de que os meninos foram submetidos a um mês de torturas na delegacia, sob as vistas dos repórteres que, a exemplo da cobertura indecente da Lava Jato, tinham se transformado em polícias.

Naquela noite, o Jornal Nacional deu uma grande reportagem sobre os abusos da mídia, de autoria do repórter que mais se distinguira na alimentação dos linchamentos. Belo repórter policial, até hoje em atividade, mas condicionado por um modelo torto de jornalismo, que nunca mais se consertou.

Tempos depois encontrei-me com o promotor Eduardo em um shopping. Veio me agradecer o apoio dizendo ter sido fundamental para que a decisão fosse mantida. Perguntei se devido às pressões da mídia. Ele disse que não, pressão da própria corporação acusando-o de piorar a imagem do Ministério Público com sua atitude. Já naqueles tempos, o MP agia sob escrutínio da mídia.

Hoje em dia, sua coragem virou conteúdo obrigatório nos cursos de preparação de promotores da Escola Paulista do Ministério Público.

O jogo do sensacionalismo e do desrespeito a direitos se manifestava em todas as frentes. Na época, me meti também no caso Cláudia Liz, a modelo que foi submetida a uma lipoaspiração, teve um choque anafilático que foi bem conduzido pela clínica e, depois, foi internada no Albert Einstein. Lá, um neurologista armado de assessoria de imprensa, José Pagura, dramatizou sua condição, alegou que ela morreria ou ficaria cega para semanas depois, apresentá-la curada como em um passe de mágica.

Era o mesmo neurologista que prometia mundos e fundos no tratamento do radialista Osmar Santos. Tornou-se capa da Veja, médico das estrelas, enquanto a Clínica Santé – que havia cuidado de Cláudia Liz – era crucificada.

Um dia, no bar da minha irmã, sou abordado por um colega jornalista que me pergunta se eu não gostaria de encarar uma nova guerra midiática, o caso Cláudia Liz. Disse-lhe que tema médico era muito complexo para mim. Ele me deu apenas duas informações:

– Ninguém sai do coma profundo em menos de um mês agindo normalmente, como Cláudia Liz. E, em caso de choque anafilático, os primeiros 6 minutos de atendimentos são essenciais para a recuperação. Se ela saiu sem sequelas, foi bem atendida. Se quiser mais dados, procure o melhor neurologista do Sirio.

No dia seguinte liguei para o médico, que confirmou o diagnóstico.

São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997

Cláudia Liz e a ética médica

LUÍS NASSIF

DO CONSELHO EDITORIAL

Quando a modelo Cláudia Liz acordou intacta, depois de alguns dias de coma, a mídia tinha presenteado o show bizz com mais um conto de fadas completo com final feliz.

No elenco, como vilão, o anestesista Francisco Minan Neto, humilde, formado na distante Universidade da Paraíba; como castelo da bruxa, a Clínica Santé; e, como príncipe encantando, o neurocirurgião José Roberto Pagura, falante, formação internacional.

Foram dias de um show inesquecível. A bela chega quase morta ao hospital. Lá, o neurocirurgião Pagura diagnostica coma profundo e despeja prognósticos assustadores: não poderia assegurar sequer que saísse com vida.

Se sobrevivesse, haveria sequelas, de cegueira até uma vida vegetativa. Alguns dias depois, dá-se o milagre.

Contrariando todos os prognósticos (do dr. Pagura), a bela acorda provisoriamente um pouco menos bela, posto que levemente inchada por medicamentos, mas feliz e de volta ao convívio da família, do marido apaixonado e de sua legião de fãs.

Tema médico

Baixada a espuma, a maior parte dos especialistas concorda:

1) O comportamento do anestesista foi irrepreensível. Acudiu a paciente em tempo, tomou todas as providências necessárias. Depois, saiu de cena, tão discretamente quanto permaneceu, apesar de ter sido massacrado impiedosamente pela mídia.

2) A clínica é bem equipada, forneceu toda a infra-estrutura que permitiu a recuperação da modelo e comportou-se de maneira ética -não dando curso a suposições sobre as causas do choque, que, para livrar sua imagem, pudessem de alguma maneira comprometer os princípios de sigilo médico.

3) Pagura não resistiu aos holofotes e permitiu que se passasse à opinião pública um quadro falsamente dramático sobre a situação da modelo, criando clima propício ao linchamento de seus colegas da Santé.

4) O comportamento da maior parte da mídia foi superficial e sensacionalista, aceitando acriticamente as avaliações de Pagura.

Opinião de especialistas

Se, na ocasião, tivessem sido consultados outros especialistas do setor, saber-se-ia que na isquemia cerebral o que define o prognóstico é o que é feito nos primeiros minutos. Passado esse período inicial, não há nada mais a fazer.

Se não houve sequelas, é porque o atendimento inicial foi perfeito.

Além disso -dizem eles-, não havia nenhuma evidência de que Liz estava em coma profundo ao chegar ao Einstein. Tanto que reagiu ao beliscão que lhe foi aplicado no braço por Pagura.

Os exames de tomografia e ressonância magnética realizados não apontaram nenhuma lesão no cérebro. O único exame que apresentou dúvidas foi um eletroencefalograma. Mas seu valor era questionável devido ao fato da moça estar pesadamente sedada.

Um especialista consultado pela coluna foi taxativo: “Nunca vi na vida alguém estar num coma preocupante e levantar três dias depois. Na saída do coma, há uma sequência de etapas que a pessoa atravessa. Se estivesse entrado em coma profundo, não podia ter despertado de uma hora para outra. A notícia foi motivo de riso em todos os meios neurológicos”.

Ética médica

O episódio certamente se constituirá em divisor de águas na definição da ética médica. E seria profundamente saudável se permitisse à imprensa reavaliar suas relações com as fontes e a maneira de abordar temas técnicos.

Nos últimos anos, está acontecendo com a medicina -e com a odontologia- processo semelhante ao que ocorreu com advogados e economistas: por meio de esquemas de assessoria de imprensa, médicos valem-se do pouco conhecimento técnico da mídia para se “venderem” ao público leigo.

Cria-se mistura explosiva de interesses da mídia por sensacionalismo, e desses profissionais por notoriedade.

“Tenho 54 médicos”, diz um diretor de hospital conceituado de São Paulo.

“Tive residentes que, antes de ter consultório, tinham assessoria de imprensa.”

Desvirtua-se o conceito de reputação médica, e ludibria-se a boa fé dos consumidores. Antes as reputações médicas eram forjadas junto aos demais médicos.

Para angariar respeito da comunidade médica, médico não deveria se expor à mídia, em shows inconsequentes.

Assim, as reputações eram construídas lentamente, porém com segurança.

Poucos conhecem o professor Sérgio Oliveira. Há mais de 15 anos é o mais renomado especialista em operações de ponte de safena.

O renome foi testado junto aos próprios colegas, porque provavelmente jamais deu uma entrevista na vida.

Hoje um repórter, sem conhecimento técnico, que avalia informações médicas apenas dentro do conceito jornalístico -o que é ou não é notícia- pode ser manipulado, e se transformar em instrumento de consagração ou de liquidação de reputações.

Corporativismo médico

Segundo notícias da Folha, responsável pela investigação do caso pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), o neurologista Célio Levyman, considerou normal o comportamento de Pagura.

“O melhor é ser uma espécie de ‘pessimista dialético’: se o paciente piora, você já tem uma estrutura clínica e o espírito preparado. Se melhora, o estado do paciente, você fica duas vezes mais feliz.”

Sugere-se que o CRM submeta seu analista de ética a um conselho de ética, para ver se salva sua própria reputação das acusações de corporativismo inconsequente.

Um dos casos mais complexos foi a dos rapazes em Brasília que incendiaram e mataram o índio Galdino. Crime, sem dúvida, e que merecia punição severa.

O alarido, no entanto, impedia qualquer análise racional. Informações capturadas aqui e ali, perdidas no meio da cobertura sanguinolenta, mostravam rapazes com bons antecedentes, bons colegas, sem histórico de violência. Um deles era filho de um juiz de direito que fora pioneiro nas sentenças em favor das causas indígenas.

Essas informações eram sonegadas da cobertura maior. Assumi a defesa da juíza que evitou que o caso fosse a júri popular.

São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 1997

O editor que virou juiz

LUÍS NASSIF

Tem-se o episódio da morte de Galdino, incendiado pelos rapazes de Brasília.

Independentemente de todas as circunstâncias que cercaram o episódio, das agravantes e das atenuantes, suponha-se que o editor do “Jornal Nacional” (citado apenas por ser o veículo de maior abrangência e o que mais têm recorrido a esse tipo de expediente) decidisse reduzir o número de cenas que mostravam o corpo de Galdino e ampliar a cobertura sobre os matadores e suas famílias.

Mostraria jovens com vida pacata e normal até a loucura daquela noite. Mostraria pais de família normais, indefesos, arrebentados. Divulgaria que o pai de um dos rapazes é juiz com atuação importante pró-causa indígena.

Sem alterar uma vírgula dos fatos, sem nenhum elemento novo de prova, mesmo que os rapazes fossem eventualmente assassinos frios e cruéis, a mera mudança de enfoque na cobertura do “Jornal Nacional” seria suficiente para dirigir a opinião pública para o lado oposto.

Quando se pretende que a Justiça se curve ao “clamor das ruas”, no fundo se está transferindo o papel de julgar do juiz para o editor do “Jornal Nacional”. E o que pretende o editor? Fazer justiça? Analisar tecnicamente os fatos? Nada disso. A pauta -não apenas do “Jornal Nacional”, mas da mídia em geral- tem o objetivo expresso de buscar o enfoque de maior repercussão. É seu trabalho.

Mesmo princípio

O que importa nesse episódio é que o jogo perverso que leva a buscar o linchamento dos matadores de Galdino é o mesmo princípio que está por detrás dos grandes erros recentes da imprensa, da Escola Base ao bar Bodega.

A propósito do bar Bodega, recebo carta de Fernando Moreira Gonçalves, promotor de Justiça de Jundiaí, narrando o que ocorreu no âmbito interno do próprio Ministério Público em função desse tal “clamor das ruas”.

Diz ele: “Lendo sua coluna deste domingo, não pude deixar de me lembrar do caso Bodega, no qual sua manifestação de apoio ao promotor de Justiça Eduardo Araújo da Silva, num momento em que ele era questionado dentro do próprio Ministério Público, foi fundamental para a preservação da atuação independente daquele promotor”. E, se alguém não tivesse remado contra a maré, o que seria dos rapazes que haviam virado alvo preferencial da turba?

O mesmo ocorreu no caso Escola Base. Segundo livro publicado sobre o assunto, o desembargador Bruno de Andrés só ganhou coragem para investir contra o malfadado “clamor das ruas” e libertar inocentes após minha manifestação, pela TV Bandeirantes e pela Folha. E se não tivesse sido rompido o pacto de unanimidade?

Continua o promotor:

“Em fatos de grande repercussão social, como os acima citados, existe uma grande tensão entre a segurança pública, que todos desejamos, e os direitos e garantias individuais das pessoas investigadas. Tenha a certeza de que sua atuação tem sido importantíssima para a construção de um Estado democrático de Direito em nosso país”.

O que está em jogo não são os rapazes de Brasília ou o proprietário da Escola Base, mas princípios de direitos individuais que têm de ser seguidos, seja qual for o episódio, seja qual for o criminoso, se aspiramos, de fato, a nos tornar uma nação civilizada.

Qualidade e escândalo

Outro engano é supor que a busca do sensacionalismo barato é inerente ao exercício do moderno jornalismo.

Recentemente, Boni -o homem da TV Globo- proibiu cenas escabrosas nos seus programas populares.

Moralismo? Nada disso. Confiança no próprio taco, crença de que é possível manter a atenção do espectador sem baixar a qualidade.

O jornalista que decide pelo enfoque sensacionalista da matéria o faz pela incapacidade de buscar um enfoque original e de qualidade. É o casamento da intolerância com a incapacidade.

Ao sonegar dados que possam “humanizar” os acusados, sabe ele aquilatar as consequências de seus atos? Dá-se conta de que está revolvendo os sentimentos mais baixos da opinião pública, o lado mais tétrico dos leitores, esse impulso animalesco rumo ao linchamento que em nada diferencia linchadores de assassinos, leitores sôfregos por vingança (não por justiça) de integrantes de torcidas organizadas de clubes de futebol?

Pergunto: é essa a sociedade que buscamos? Decididamente, não é.

Tempos depois, ao ser homenageado com a medalha Nelson Hungria, do Tribunal Regional Federal da 1a Região, pelos artigos em defesa dos direitos individuais, lembrei os grandes juízes e promotores que investiram contra o espírito de linchamento da mídia, em uma premonição tenebrosa do que ocorreria anos depois.

São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2000 

O mérito do Judiciário

LUÍS NASSIF

Conheci as duas faces do Poder Judiciário no primeiro grande processo do qual fui alvo, por parte do então consultor-geral da República do governo Sarney, José Saulo Ramos. Conheci as interferências políticas, quando o procurador-geral Sepúlveda Pertence afastou do caso o procurador que, valentemente, opinou pelo arquivamento da ação. Sempre penso com gratidão nesse procurador, sem sequer me lembrar de seu nome. Nesse episódio, conheci a face independente do Judiciário, no comportamento do juiz José Kallás. E a face sabuja em um juiz do Rio, que teimava em alterar os termos do depoimento de minha testemunha. Mas a instituição do Judiciário foi minha garantia.

Este é um país cuja herança cultural remonta à Inquisição. Os processos de linchamento, de destruição dos que são ou pensam diferentemente, não poupam ninguém. Nos anos 70 o alvo eram os militantes de esquerda. Nos anos 80, os filhos da ditadura. Dos anos 90 em diante, o indeterminado. O “diferente” passou a ser toda pessoa suspeita de algum crime -não necessariamente culpada. Foram o japonês da Aclimação, os rapazes do bar Bodega, o cearense da Faculdade de Medicina. E também culpados óbvios, mas aos quais era negado o direito básico de serem ouvidos.

Pouco importa a natureza ou a gradação do crime. Cada qual serviu de álibi para o fortalecimento do mais execrável personagem que a indústria da mídia logrou criar nos anos 90: o justiceiro, o sujeito que se apropria e manipula a indignação popular, traz à tona o que de pior existe na natureza humana, não para buscar justiça, mas para satisfazer seus ressentimentos ou sua carreira.

A história está repleta de tipos assim, o mais ilustre dos quais o senador beberrão e corrupto que deu nome ao macartismo nos Estados Unidos.

O ponto em comum em todos esses casos foi a ausência de uma estrutura institucional que se tornasse um anteparo ao arbítrio.

O Poder Judiciário tem muito a avançar. Ainda é um poder lento, pouco transparente, cheio de feudos, sem preocupações de ordem gerencial e administrativa. Quando esses defeitos passaram a ser utilizados para a busca de saídas fora do Judiciário, no entanto, abre-se caminho para a disseminação do macartismo. E abre espaço para que juízes fracos se curvem ao chamado “clamor das ruas”, permitindo a consumação de abusos contra direitos individuais.

A busca da justiça tem que se dar com um Judiciário forte. As críticas contra seus vícios têm que ser daqueles que, antes de mais nada, acreditam que só haverá respeito aos direitos individuais com um Judiciário forte. E que a melhor ferramenta para o respeito aos direitos individuais é o processo judicial aprimorado, dando todo direito às partes de serem ouvidas -seja ela um honesto dono de escola da Aclimação ou um bandido com crimes comprovados.

O maior desafio que um juiz pode enfrentar é sobrepor sua consciência individual às pressões de toda espécie -da qual a mais insidiosa é a busca da notoriedade. Por isso, ao receber a Medalha do Mérito Judiciário Ministro Nelson Hungria -outorgada ontem pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região- , dedico aos valentes, que investiram contra os linchadores e colocaram seus princípios acima do seu medo -o juiz que deu a sentença do caso Herzog; o promotor Eduardo Araújo da Silva, que pediu a libertação dos meninos acusados pelo crime do bar Bodega; a juíza Sandra de Santis de Mello, que não mandou a júri os rapazes que queimaram os pataxós; o juiz Helder Girão, que se voltou contra os abusos de seus pares; e a jovem juíza Raecler Baldesca, que impediu que, sem base legal, se consumasse a prisão do empresário Luiz Estevão, mas que, tenho certeza, lhe aplicará a pena mais severa, quando as acusações contra ele forem comprovadas.

Mencionada no artigo, a juíza Sandra Sanctis de Mello é esposa do Ministro Marco Aurélio de Mello – o mesmo que negou liminar para levantar a censura que me foi imposta pela Justiça, permitindo que se mantivesse o pacto de silêncio da mídia em torno do BTG Pactual.

Desde aqueles tempos tinha duas certezas.

A primeira, é que uma das funções essenciais do jornalismo era a de combater os abusos de poder de qualquer lado. A segunda, é que os maiores abusos de poder vinham do jornalismo. Sabia que era questão de tempo para encarar a maior guerra da minha vida.

Na excelente série sobre Sherlock Holmes, produzida pela BBC, o maior vilão enfrentado por Holmes é o dono de uma rede de publicações especializada em destruir reputações. Seu poder era tão grande que a única saída encontrada por Holmes foi… mata-lo, uma representação simbólica da falta de esperanças na regeneração da mídia empresarial.

São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 1997

O pluralismo na mídia

LUÍS NASSIF

Não me canso de repetir: a discussão sobre o caso Galdino representa uma oportunidade única de repensar questões como direitos individuais e papel da imprensa na formação da opinião pública.

Nos últimos anos, casos de repercussão junto à opinião pública têm sido instrumentalizados com o fito de aumentar tiragem e audiência de jornais.

Entrei de cabeça contra todas as “ondas” que se formaram nesse período -caso Escola Base, bar Bodega, Cláudia Liz, Osmar Santos, Agroceres, PT Venceslau, CPI dos Precatórios e muitos outros. E não por reflexo condicionado, por masoquismo ou para ser “do contra”, mas porque em todos esses casos havia erros primários de julgamento e sonegação de todas as informações que, de alguma forma, pudessem atrapalhar o impacto das manchetes. Repito: em todos os casos.

Na Escola Base, os donos eram inocentes. No bar Bodega, os meninos da favela que foram presos nem sequer se conheciam pessoalmente. No caso Cláudia Liz, a clínica acusada tinha dado o melhor tratamento possível à modelo. No caso Osmar Santos, a Santa Casa de Lins tinha sido a responsável por sua sobrevivência. No caso Agroceres, havia indícios claríssimos das tendências suicidas do empresário Ney Bittencourt. Na CPI dos Precatórios, um amplo mar de corrupção que nem sequer tinha sido tangenciado pelas investigações iniciais. No caso PT Venceslau, a comissão criada pelo PT partido confirmou todas as denúncias.

Um erro se justifica. Dois erros se aceitam. Mas errar reiteradamente denota uma deformação crucial na cobertura. A busca da verdade deixou de ser objetivo. A notícia passou a ser mero complemento para esse enorme show da vida.

Nos casos Cláudia Liz e Osmar Santos, recebi mais de cem e-mails de médicos agradecendo por eu ter dito o óbvio -que a clínica e a Santa Casa tinham tratado adequadamente seus pacientes. Era informação de conhecimento geral na classe médica. Nem assim vazou para os jornais.

Como se pode fazer jornalismo, ou uma sociedade buscar o aprimoramento, se os fatos são deixados de lado e se parte, primeiro, para o julgamento; depois, para a adaptação de todos os fatos à sentença exarada antecipadamente?

É que todos esses casos viraram mero álibi para o aumento de vendas e a promoção individual de algumas pessoas -os chamados “porta-vozes do clamor das ruas”.

Se os acusados são pretos e pobres, levantam-se os porta-vozes da direita exigindo seu linchamento (caso Bodega). Se são brancos e de classe média, levantam-se os porta-vozes da esquerda querendo levá-los à fogueira (caso Galdino). Invariavelmente, não analisam o episódio nem respeitam os direitos individuais dos acusados. Não lhes importam os fatos, mas a simbologia, o álibi para obter projeção. Não existe nada mais semelhante do que os justiceiros de direita e de esquerda.

Recebi dezenas de e-mails contra e a favor da posição da coluna no caso Galdino -desde domingo, mais a favor do que contra. Assim como na coluna, nenhum dos e-mails a favor advogava a absolvição dos rapazes. Repito: assim como a coluna, todos eram a favor de punição para os culpados. Apenas não queriam o linchamento. Porque, ao se permitir o linchamento dos assassinos de Galdino -sob o argumento de que são réus confessos-, está-se autorizando novamente a imprensa a reeditar todos os crimes perpetrados contra inocentes.

Vício geral

Essa incapacidade de perseguir objetivamente os fatos reflete-se em todo o noticiário -não apenas no policial. É um vício de cobertura, que apequena o papel da imprensa e impede que realidades complexas sejam transmitidas com isenção aos leitores.

A diferença de padrão entre as reportagens de publicações internacionais e as nossas é patética. Naquelas, a capacidade de descrever conflitos, mostrando ângulos diferentes dos casos e permitindo ao leitor fazer seu julgamento.

Aqui, o monolitismo absoluto, primário. Qualquer explicação que possa reduzir o impacto das matérias é deixada de lado, para não “esfriar” a denúncia. Leitores que já dispõem de uma exigência maior de qualidade são obrigados a engolir fatos de um ângulo só, como um pianista que só sabe tocar com um dedo.

Vai mudar, não se tenha dúvida. A cada dia que passa, mais leitores, mais jornalistas e mais jornais se chocam com esse primarismo. Nos veículos mais responsáveis, já se nota claramente a preocupação com a ética e a qualidade jornalística. Há um movimento nos sindicatos e nas faculdades para discutir essas questões.

É questão de tempo para que esse primarismo seja varrido do mapa, institua-se o verdadeiro pluralismo que caracteriza as sociedades democráticas e a mídia avance degraus no sentido da qualidade e da defesa dos direitos individuais.

Mas quantos mortos a mais serão deixados pelo caminho?

 

 

 

 

 

Luis Nassif

8 Comentários

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  1. Este seu artigo, companheiro Luis Nassif, deveria ser leitura obrigatória nas faculdades de jornalismo e também nas nossas redações, cada vez mais problemáticas, entre outras coisas, em relação ao diminuto número de profissionais, o que dificulta e precariza o trabalho. Mas nada, absolutamente nada, pode servir de desculpa para que o profissional negligencie a ética, que deve ser condição indispensável ao seu trabalho, mesmo que isso, eventualmente possa custar o seu emprego. É sempre bom ter em mente o saudoso Claudio Abramo – O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter.

  2. O tempo passou e o jornalismo só piorou. O capitalismo neoliberal não permite mais pluralidade e a grande mídia é capitalista neoliberal. Não há futuro democrático como caoitalismo. É socialismo ou barbárie

  3. Li todo este artigo, longo, porém, nos demonstra com clareza o porquê estamos neste beco hoje. Não fomos capazes ainda, como sociedade de formar uma nação que possamos dizer como de futuro, mas, artigos como este, que abre a ferida e nos mostra a realidade revigora as nossas forças, abraços Nassif, obrigado.

  4. SOLTANDO O BRAÇO.

    Leio que FHC se arrepende tardiamente a “compra” da emenda que institui a reeleição no Brasil.Arrenpendimento uma cibola.O jurista e politico bahiano de saudosa memória,Josaphat Ramos Marinho costumava colocar quase sempre nos seus artigos quinzenais no jornal A Tarde de Salvador,que a reeleição liquidou com País,e consequentemente com a cambaleante democracia brasileira.Entendia como algo comparável a escravidão,tal a tragédia que esta emenda causou ao sistema político brasileiro.A corrupção endêmica tomou proporções inimagináveis.Apos a instalação da reeleição,surgiu a figura do ladrão reeicindente.Se o Plano Real é da lavra do doido manso Itamar Franco,um homem sério,a FHC só teria um bem a fazer ao Brasil: Não ter nascido.Uma das figuras mais execráveis da política brasileira em todos os tempos.

    Ganha uma viagem só de ida para Moçambique,quem acertar o vencedor da quizumba entre a Globo X Record.Quero dizer,o autor da redação que melhor descrever,a mais corrupta,safada,lavadora de grana oriunda da corrupção,a mais cafajeste,canalha,a que abriga “xeiradores de cocaína”.Vale ressaltar que a resposta de maior peso,será aquela que indicar qualquer virtude que detém,uma ou outra.

    Esse tamborete das Damas da Noite,um certo General que fica a altura dos bagos de Jair,continua produzindo Fake News para ficar bem com o chefe.Um mafioso sem tirar nem por.Um canalha da pior espécie.

    Se as pesquisas sobre as eleições americanas confirmarem nas urnas a derrota de Trump para o Joe Biden,o doidivana do Entreguista colocará uma bola de ferro em cada pé,e teremos a Morte em Veneza II.Luchino Visconti vai se remexer no túmulo.

    Se Jair conseguir a reeleição,os que discordarem já tem destino certo:Vênus.Por precaução,reservei minha passagem.

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