A lenda

As artimanhas do STF para manter Lula preso e as façanhas grotescas de Jair Bolsonaro dentro e fora do Brasil sugerem que o realismo fantástico deixou de ser apenas um gênero literário. Ele cruzou a linha entre ficção e realidade, pois foi transformado tanto numa técnica para distribuir injustiça quanto num instrumento para desgovernar o Brasil. Em razão disso resolvi publicar aqui um modesto exercício de criatividade literária feito há quase duas décadas. O nome do conto é “A lenda”. Apreciem.

Quando estive entre os Jkeils, no hemisfério norte do planeta Fibhows, do sistema Pyroniano (cerca de dois ou três bilhões de anos luz de Alfa Centauro), vim a conhecer uma lenda muito interessante. A lenda do Timbau Tuimba, espécie de demônio que desceria dos céus para impor a desordem e o caos, livrando a sociedade da ordem e da justiça imperantes. Segundo a lenda, cada vez que um Jkeil saia da linha, cometendo alguma maldade, o Timbau ficaria maior, até que um dia o céu não teria mais força para contê-lo e ele cairia novamente Fibhows para restabelecer seu reinado de perversidade.

Durante muitas eras o Timbau Tuimba, então conhecido apenas como Tuimbuatui, reinou pacificamente em Fibhows, impondo a lei, a justiça e a ordem. Naquela época, o poder não era exercido de maneira despótica, mas sábia. Tuimbuatui, o rei filósofo, se limitava em convencer o súdito faltoso de que ele havia obrado em erro, devendo reparar o dano mediante uma pena razoável, que era escolhida e cumprida pelo próprio penitente, desde que fosse compatível com sua falta é claro. Não sendo reconhecido o instituto do auto-flagélo, Tuimbuatui não permitia que qualquer súdito seu se martirizasse além da conta. Afinal, em geral as pessoas tendem a dar muita importância para suas faltas.

A não ser pelos traços delicados, fisicamente nada distinguia o rei dos seus súditos. Os Jkeils vestiam-se com a natureza, não escondendo as limitações e defeitos atras das togas como fazem a maioria dos homens. No mais, Tuimbuatui tinha a pelagem creme e o nariz pequenino e preto, contrastando com os olhos grandes e redondos, cuja íris amarela fulgurante destacava-se sob o fundo lapis-lazuli. Por isto seu nome Tuimbuatui, que em Lamti, a língua dos ancestrais dos Jkeils, queria dizer “sol amarelo perdido no céu azul”. Não se sabe ao certo porque, mas o rei tinha o hábito de dormir confortavelmente numa gaveta, onde atendia a todos durante as audiências públicas. Exceto por esta pequena regalia, a vida de Tuimbuatui não se distinguia da dos seus iguais.

Certo dia, o sono do rei foi interrompido por dois de seus súditos que disputavam uma mulher: Lombitu, a mais bela Jkeil que já habitou o hemisfério norte de Fibhows. Dada sua natureza, a união e a paternidade não tinham importância alguma entre os Jkeils, de maneira que os machos não disputavam propriamente os favores da fêmea e sim o prazer de escolher o primeiro nome de seu novo filho. Diferentemente dos homens, os Jkeils acreditavam piamente que o nome é muito importante, sendo uma honra inigualável entre eles batizar um novo habitante do universo. Entretanto, o nome de batismo dado a um “poti” – filho da luz que vicejou sem nome no universo, em Lamti clássico – era temporário, porque todo Jkeil tinha direito de escolher outro assim que assumisse sua real posição na sociedade. Assim, a honra de batizar um “poti” era redobrada se no momento de seu segundo nascimento ele não mudasse de nome, razão pela qual disputas como aquelas eram freqüentemente resolvidas pelo Tuimbuatui.

Geralmente, o rei ou fazia a fêmea escolher definitivamente o padrinho de seu novo filho ou convencia-os a enumerarem uma a uma as virtudes do oponente, chegando ambos a um consenso através do reconhecimento de qual, naquele momento, reunia as melhores condições de batizar com acerto o “poti”. Todavia, naquele dia as coisas se deram de maneira diferente. Lombitu recusou-se a decidir qual dos dois pretendentes haveria de batizar seu filho. Como ambos eram realmente sinceros, sendo-lhes difícil deixar de reconhecer todas as qualidades do oponente, a demanda de virtude resultou empatada. Diante disto, o Tuimbuatui, não sabendo mais o que fazer, resolveu propor que o nome da criança fosse objeto de um sorteio. A coisa toda seria muito simples, cada pretendente escreveria o nome que daria ao garoto em uma telha de myntral – em Lamti, argila cozida em forno frio-, depositando-a com a face escrita virada para o chão na frente da mãe e do rei. Sem ver os nomes, o rei jogaria as telhas no Rio Tquiriri – em Lamti, rio profundo – e o primeiro nome que viesse dar na mesa do rei dentro de um pisquês – em Lamti, peixe voador – seria dado ao “poti”.

Dois dias depois, o rei jogou no Rio Tquiriri as duas telhas de myntral. Feito isto, todos aguardaram ansiosamente o desenlace do sorteio. Na manhã seguinte, um pisquês gordo de fazer gosto foi pescado e depositado diante da gaveta do rei. Como o diâmetro de seu dorso indicava que ele havia engolido uma telha, Tuimbuatui mandou chamar Lombitu e os dois pretendentes a padrinho. Todos reunidos, o rei abriu o dorso do pisquês e foi surpreendido por uma tragédia. O pisquês havia engolido não uma, mas as duas telhas de myntral. Assim, o problema sem solução ficou na frente de todos. Como faltavam apenas alguns dias para o “poti” nascer e o costume pedia que o nome fosse escolhido antes do parto, os Jkeils ficaram apreensivos, ainda mais porque Lombitu insistiu em não escolher entre os pretendentes cujas virtudes, uma vez mais enumeradas de parte a parte, continuavam rigorosamente iguais.

Naquela noite, o sábio Tuimbuiatui não conseguiu dormir direito. Por mais que tentasse resolvê-lo, o problema relutava em encontrar solução de maneira que o rei acordou irritado no dia seguinte. Isto nunca antes havia acontecido, razão pela qual alguns dentre os Jkeils acabaram interpretando a irritação do rei como o primeiro sinal de cumprimento da profecia Orwelticyum – fim dos tempos, em Lamti clássico. Tuimbuatui não acreditava em profecias, mas sabia que a fé dos Jkeils era poderosa, sendo capaz de realizar qualquer destino, por isto tratou de escolher um nome para o “poti”. Assim, para desgosto de Lombitu e certo desconforto dos pretendentes a padrinho, Tuimbuatui batizou o “poti” de Galgour – janela para a discórdia, em Lamti vulgar.

Galgour não teve nada a ver com o que aconteceu depois. De fato, o procedimento adotado por Tuimbuatui não foi bem recebido pelos Jkeils mais velhos, deixando ressentidos os pretendentes a padrinho do filho de Lombitu. Com o passar do tempo, por onde Galgour passava muitos gritavam:-

– Lá vai a janela para a discórdia que pariu Lombitu.

– Deixem Galgour em paz, ele não escolheu seu destino – gritavam os Jkeils mais virtuosos.

A medida que Galgour crescia, aumentava a discórdia entre os Jkeils. Assim, quando nasceu pela segunda vez, Galgour não teve outra opção senão manter seu primeiro nome. E foi isto que antecedeu a série de acontecimentos que levou ao pior. A discórdia precedeu o fim da virtude, o fim da virtude o perecimento da justiça, o perecimento desta a morte da razão, cujo enterro acarretou o nascimento do Timbau Tuimba, segundo nome adotado pelo Tuimbuatui. Quando ele resolveu assumir sua verdadeira identidade, com exceção de Galgour, a maioria dos Jkeils já havia se conformado, dando por certa a concretização da profecia Orwelticyum. Não sei se é verdade, mas há relatos de que um contemporâneo de Galgour teria ouvido da boca do herói lendário que a realização da profecia Orwelticyum decorrera da fé dos Jkeils em sua concretização. Feita esta ressalva, devo apenas dizer que a história teve um desenlace instigante.

Ao assumir seu novo nome, o rei passou a chicotear a todos, apenas para demonstrar seu poder absoluto. Os costumes antigos foram abolidos, principalmente aquele que dizia respeito ao batismo dos recém-nascidos. Para assegurar-se de que a pouca virtude que restava não se propagaria novamente, o Timbau Tuimba passou a batizar pessoalmente cada “poti”, a quem dava nomes horríveis como Ytzar, Kilmtor e Lianteel – filho do medo, carrasco fiel, pervertedor de famílias, todos em Lamti vulgar. Além disto, os nomes já não podiam mais ser mudados, porque o próprio Timbau Tuimba revogara o direito de cada Jkeil assumir sua verdadeira identidade na sociedade, tendo que conformar-se com aquela que lhe era imposta pelo rei.

Durante décadas, o único Jkeil que permaneceu fiel a virtude foi Galgour. E não poderia ser de outra maneira, posto que a maioria dos Jkeils o culpava pelo estado de coisas e o Timbau Tuimba o tinha em alta conta, crendo-o isento de bondade no coração. Galgour, que se conformara ao seu próprio nome, evitava controvérsias com os patrícios e abstinha-se de qualquer participação ativa no reinado de Timbau Tuimba, sendo deixado em paz sob a proteção aberta do facínora.

As coisa iam assim, quando um novo mito surgiu entre os Jkeils, o mito de Hyrtre – o enviado que aprisionaria a maldade novamente no céu, em Lamti clássico. Ninguém sabe ao certo como ele começou, mas o fato é que o mito foi tomando forma e força depois do desaparecimento de Galgour. Segundo foi relatado pelo falecido Ryvegmar – contador de histórias, em Lamti vulgar – , de uma hora para outra os Jkeils passaram a crer que, vindo do hemisfério sul, Hyrtre prenderia o Timbau Tuimba no céu e devolveria aos habitantes de Fibhows a ordem, a justiça e a razão.

Como o hemisfério sul do planeta era uma região inóspita, inabitável e inacessível a qualquer Jkeil, o rei não deu importância ao mito. Além do mais, acreditava piamente que não corria qualquer perigo, afinal nunca haveria de batizar um “poti” com aquele nome.

Ano após ano, era após era, a crença no Hyrtre animou o coração de muitos Jkeils. Com o tempo, vendo que o mito ganhava força no seio da população e entre seus sinistros serviçais o Timbau Tuimba resolveu cercar-se de maiores cuidados. Primeiro reforçou o contingente de seus exércitos nas cidades limítrofes entre os dois hemisférios, depois mandou levantar uma muralha intransponível, isolando definitivamente o hemisfério sul do hemisfério norte do planeta. Quando todas as vigias da muralha foram inauguradas, o rei festejou matando dois milhões dos escravos que trabalharam na construção daquela obra inexpugnável.

Mas nada disto abalou a fé da população no mito de Hyrtre. Ao contrário, durante as obras não eram poucos os que anunciaram estar mais próxima a chegada do enviado, comparando o temor do Timbau Tuimba ao tamanho da muralha que ele havia mandado construir com o sangue dos Jkeils. Assim, quando um soldado avistou um desconhecido caminhando em direção ao hemisfério norte do outro lado da muralha, todo Fibhows tremeu. A notícia espalhou-se instantaneamente pelo planeta, o povo saiu às ruas celebrando a derrocada do rei, os soldados abandonaram seus postos e o Timbau Tuimba refugiou-se no céu, onde encontra-se até hoje prisioneiro de seu medo de retornar a terra até que o mal volte a imperar entre os Jkeis.

É fato que ninguém chegou a ver pessoalmente o Hyrtre, mas o restabelecimento da ordem, da justiça e da razão entre os habitantes de Fibhows é contemporâneo ao aparecimento do corpo de Galgour nas proximidades da muralha mandada construir pelo facínora. Há quem diga que o próprio Galgour falou com o herói antes de morrer. Porém, como sempre ocorre nestes casos, a verdade acabou sendo cuidadosamente sepultada com a janela para a discórdia. Assim, isentarei o leitor das hipóteses que cheguei a formular sobre o assunto.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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