Reparação oficial a Dilma incomoda imprensa. Por quê?, por Luis Felipe Miguel

O golpe marcou a ruptura, de vastos setores da classe dominante brasileira, com o princípio do respeito às regras do jogo.

Ricardo Stuckert

Reparação oficial a Dilma incomoda imprensa. Por quê?

por Luis Felipe Miguel

Noticia-se que o governo está pensando em promover uma reparação simbólica a Dilma Rousseff, agora que o Poder Judiciário confirmou que o pretexto usado para derrubá-la – as “pedaladas fiscais” – não se sustenta.

É o correto a ser feito. Não só em relação a Dilma, embora só isso já fosse suficiente. É importante, para a história do Brasil, deixar registrada essa tautologia: o golpe foi um golpe.

Com consequências que foram muito além da retirada ilegal, de seu cargo, de uma presidente eleita.

O golpe marcou a ruptura, de vastos setores da classe dominante brasileira, com o princípio do respeito às regras do jogo.

Inaugurou um período de vale-tudo na política brasileira, com incerteza quanto à vigência das normas constitucionais, marcado pela permanente queda de braço entre os poderes. Afinal, deslanchado por Eduardo Cunha e impulsionado pela Lava Jato, o golpe não poderia deixar de assinalar o triunfo do gangsterismo político.

O rompimento dos consensos sobre valores democráticos e igualitários básicos, alimentado pela direita tradicional, PSDB à frente, abriu espaço para o crescimento de uma aberração como o bolsonarismo.

Os líderes do golpe em 2016 e aqueles que se reuniram em torno de Bolsonaro, que no script inicial estavam destinados a ser meros coadjuvantes, se irmanavam, porém, no projeto de redução do Estado e desmonte das proteções oferecidas à classe trabalhadora.

Em suma: o golpe nos legou desorganização institucional, violência política e ampliação da desigualdade.

Mas a Folha de S. Paulo publica hoje um editorial furibundo contra o possível desagravo a Dilma.

É um texto cheio de ódio. Diz que a ideia de Lula, de oferecer uma reparação a Dilma, é um absurdo: “não bastou a sinecura internacional com que a presenteou”.

A Folha julga que Dilma não tem competência para ser presidente do Banco do BRICS? Que apresente seus argumentos. Em vez disso, prefere lançar acusações ao vento.

Mas o central, anunciado já no título, é que “não foi golpe”.

O que o editorial diz é que “a lei dos crimes de responsabilidade […] é flexível a ponto de permitir o enquadramento de virtualmente qualquer governante”. Em seguida, assume que “Não foi a tecnicalidade das pedaladas fiscais […] que de fato derrubou Dilma Rousseff”.

Ela caiu por conta de sua “política econômica” e de sua “inapetência [sic] parlamentar”.

(Está certo que a péssima redação dos editoriais da Folha é lendária, mas este se superou.)

Em suma: o jornal reconhece que a presidente foi retirada do cargo sob falso pretexto. Mas não podemos chamar de golpe mesmo assim.

A mídia corporativa brasileira foi cúmplice do desmonte da Constituição no Brasil, patrocinando a Lava Jato, apoiando o golpe, aplaudindo as práticas autoritárias do governo Temer, normalizando o bolsonarismo.

Depois, quando o fedor neofascista do governo passado começou a ficar forte demais, quis se fazer de paladina da democracia. A Folha ainda mais que seus concorrentes.

Sem nem sombra de autocrítica, é claro. Se é incapaz de se arrepender por ter colaborado com a tortura de opositores da ditadura, porque iria fazer mea culpa pela simples participação coadjuvante numa trama golpista?

O editorial de hoje só confirma que ela segue nesse caminho.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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