João Petra de Barros (1914-1948)

Anúncio da Victor em 1942: Petra entre as estrelas de seu tempo

Se estivesse vivo, o cantor João Petra de Barros completaria 86 anos em 23 de junho passado. Como lembra o verbete do músico no site do instituto Cravo Albim (ICCA), nascido na véspera de São João, o intérprete não poderia receber outro nome. João Petra de Barros interpretou marchinhas, sambas-canções, foxtrotes, toadas em um total de 48 discos, com 94 fonogramas ao todo, segundo o verbete do ICCA – número que aumento para 105, pois incluo aqui alguns duetos não considerados com Aurora Miranda (16 no total) na contagem do importante instituto – como a belíssima Se a lua contasse, de Custódio Mesquita. Além de Mesquita e Noel Rosa, compositores como Mário Lago, Orestes Barbosa, Valfrido Silva, Braguinha, Ari Barroso, Ismael Silva, Peterpan e até mesmo um jovem Vinicius de Moraes e uma de suas primeiras músicas – Dor de uma saudade – foram gravadas por Petra.

 

Sua carreira começa com um dos pioneiros do rádio brasileiro, o programa de Ademar Casé (avô da atriz Regina Casé), da Rádio Philips. Mas sua primeira oportunidade de gravação surge a partir de um entrevero entre Noel Rosa e Francisco Alves, que retornavam de uma turnê pelo sul do país no primeiro semestre de 1932, em meio à qual Noel se apaixonou e compôs a letra de Até amanhã após deixar a namorada. Francisco Alves leu e animou-se a gravar. Cansado de ter Chico Viola como parceiro em composições que ele, Ismael Silva ou o finado Nilton Bastos sempre faziam, Noel pega a letra de Chico e diz: “essa vai para o João Petra”, como contam João Máximo e Carlos Didier em Noel Rosa – uma biografia. (Brasília: UnB, 1990).

 

Petra era um colega de Noel no Casé, mas principalmente nas noites de boemia carioca, especialmente no café da Uma Hora (site ICCA), no café Nice ou ainda no bilhar em frente, o Trianon, freqüentado por outros artistas como Sílvio Caldas, Jayme Britto, Jorge Murad e Luís Barbosa. Em outra ocasião, Cartola lembra que, junto com o compositor Pedro Caetano e Petra, Noel entrou na badalada rua do Ouvidor adentro com seu carro de capota de lona, recém-comprado de Chico Alves, lançando uma desculpa esfarrapada ao guarda: “eu não sabia que nessa rua não passava carro”.

 

Até amanhã foi assim a estréia de João Petra, que grava a canção no dia 19 de outubro de 1932, no álbum 10950 da Odeon. O disco será lançado em janeiro do ano seguinte e traz ainda o samba Quero falar com você (Lauro dos Santos, o Gradim, e Noel Rosa). Virão outras importantes gravações como Seja breve e Linda Pequena. A primeira, um dueto entre Luiz Barbosa e João Petra de Barros. A segunda, interpretada somente por Petra de Barros é, na verdade, uma conhecida composição de Noel e João de Barro, o Braguinha, a marcha-rancho As Pastorinhas. A marcha, embora tivesse sido levemente alterada e relançada pelo Braguinha em 1937 na voz de Sílvio Caldas, fora cantada dois anos antes por Petra de Barros, afinal também intérprete de várias outras músicas de Noel, incluindo ainda a primeira versão de Feitiço da Vila.

A carreira de Petra, após a boemia e o programa do Casé, integra-se assim, efetivamente a esta primeira geração do rádio. O curioso é que a trajetória de Petra tem dois momentos bem definidos que coincidem com dois períodos importantes do rádio brasileiro na década de 1930. No primeiro deles, entre 1932 e 1939, o rádio brasileiro dá os primeiros passos rumo à profissionalização a partir do decreto 21.111, de 1º de março de 1932, ainda no primeiro governo de Getúlio Vargas, e regulamenta a propaganda comercial no rádio brasileiro, entre outros pontos. Poucas estações funcionam, os cachês, quando existentes, são modestos, bem como os equipamentos. Contudo, a partir de 1936, o número de emissoras no país ganha a casa dos dois dígitos, o alcance começa a ficar maior e, além disso, revistas como Fon Fon e Carioca abrem páginas específicas para o rádio – o  que não ocorria anteriormente.

O segundo momento começa em 1939, quando o ano torna-se um marco pela consolidação do modelo de propaganda getulista, que deriva de 1934, mas se cristaliza com  a criação do DIP, já em pleno Estado Novo, que no ano seguinte vai estatizar e potencializar a rádio Nacional como elemento de unidade do varguismo para o país. Nesse período aumenta o circuito industrial e comercial do rádio, que atinge níveis elevados de comércio, intercâmbio internacional e programação. Por tudo isso inclusive é que o rádio vai sofrer um abalo sísmico com a saída de Vargas e, como se não bastasse, o decreto-lei 9215, de 30 de abril de 1946, já no governo Eurico Gaspar Dutra, que proíbe o funcionamento de cassinos no país – importante ator institucional nesse pujante período criativo, artístico e econômico do rádio.

Assim, personagem de seu tempo, João Petra vai acompanhar esses dois momentos: entre outubro de 1933 e janeiro de 1937, salvo por um período de dois meses na Victor (agosto e setembro de 1933, quando grava seis fonogramas), a principal gravadora de Petra foi a Odeon, onde grava mais da metade de sua produção (62 fonogramas), incluindo todos os principais duetos de sua carreira: Noel Rosa, Joaquim Medina, Luís Barbosa, com o irmão Mário Petra e, principalmente, com Aurora Miranda. No primeiro semestre de 1934, o cantor excursiona com as irmãs Miranda, o humorista Jorge Murad e importante compositor e amigo, Custódio Mesquita, com apresentações memoráveis no Rio (Cine Glória) e em São Paulo (Teatro Santana e, em 1935, na Rádio Record).

Coincidência ou não, é interessante notar que há um hiato de informações acerca de Petra  precisamente entre os anos de transição do rádio brasileiro 1937 e 1939 (até aqui, a pesquisa dá conta que Petra está para se casar e, desempregado, vai tentar a sorte no Rio Grande do Sul). Mas convém observar que é precisamente em maio de 1937 que morre um dos principais amigos, Noel Rosa (há informações de que Petra participou do enterro e das homenagens) enquanto, meses depois, nasce o Estado Novo. O cantor, que, em 1938 irá perder outro parceiro (Luís Barbosa, no dia 8 de outubro, aos 28 anos. Como Noel, vítima da tuberculose) só irá reaparecer em 12 de janeiro de 1939, mas em grande estilo: durante um programa especial da rádio Record de São Paulo (PRB-9), com as irmãs Miranda, Orquestra Nicolini, Sílvio Caldas, Almirante, Bando da Lua e Jayme Britto. Trata-se da véspera da estréia dos novos estúdios da emissora.  A rádio Tupi aproveita a presença dos artistas cariocas e promove também uma série de shows no teatro Santana. No dia 9 de janeiro apresentou-se o Bando da Lua (com menos um integrante, adoecido) e, no dia 12, João Petra, Almirante, Sylvio Caldas, Jayme e as irmãs Carmen e Aurora Miranda.

Assim, nesta segunda fase, o artista ressurge em 1939 e tenta retomar o seu lugar ao sol em uma indústria cultural radiofônica mais complexa e profissional, impulsionada por maiores campanhas de marketing junto às publicações e, no campo do governo, pela ascensão da Rádio Nacional, em meio à expansão das demais – todas sob os olhos atentos do DIP e do Estado Novo. Em 1940, segundo a revista Carioca, após disputa com o intérprete Roberto Paiva, célebre cantor de uma das versões de Oh Minas Gerais!, Petra consegue um contrato de exclusividade junto a outros artistas na Victor (ver anúncio nesta página), onde grava 32 fonogramas entre janeiro de 1940 e fevereiro de 1944. Sua carreira na indústria fonográfica termina com o registro de apenas quatro fonogramas pela Continental, então coordenada pelo Braguinha, lançados entre fevereiro de 1945 e setembro de 1946.

Vale ressaltar, porém, que o hiato 1937-1939 na carreira de Petra marca também uma mudança no que se refere aos principais compositores do intérprete. Se, antes de 1937, os principais eram Noel Rosa, Orestes Barbosa, Kid Pepe, Ismael Silva, Alberto Ribeiro, Custódio Mesquita, Braguinha, e Valfrido Silva, após 1939 passam a ser Peterpan, Haroldo Lobo, Marino Pinto, Milton de Oliveira e Newton Teixeira. Dos da fase anterior, só Mesquita (que vai morrer em março de 1945, aos 35 anos, na véspera de assumir a diretoria da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, a SBAT) e Braguinha reaparecem com uma composição cada para Petra, além de Valfrido, que vem com duas composições.

 

No que tange à sua carreira no rádio, após o show com as irmãs Miranda e outros na Record, Petra volta para o Rio, mas sem contrato – o que parece se resolver no final do ano, com o início de sua “segunda fase” na Victor. Mas, antes, em 19 de julho de 1939, às 21 horas, com a Orquestra Fon Fon e o locutor Erik Cerqueira Petra ressurge com um contrato no rádio carioca. Ele integra o cast da Rádio Transmissora (PRE-3) com Marília Batista e a dupla Joel e Gaúcho, sob a direção artística de Dermeval Costa Lima, quando canta, dentre outras, o belo fox Uma canção para você. Petra fica na emissora até dezembro de 1939, quando a Transmissora, após passar por problemas financeiros, cancela o contrato. Mas, naquele mesmo mês, Petra consegue participar de novo programa na Ipanema (PRH-8).

 

Em janeiro de 1940 participa de duas noites especiais do programa Museu de Cera, de Heber Bôscoli, na rádio Cruzeiro do Sul, sobre Noel Rosa e Luiz Barbosa, saudosos amigos. Em março torna-se atração da Rádio Mayrink Veiga (PRA-9), contratado por César Ladeira, o qual, notório por sua obsessão em criar alcunhas para os artistas, criou ali o bordão “a voz de 18 quilates” atribuída ao cantor.  Petra vai reencontrar o sucesso com as músicas de Peterpan (como Última inspiração) e várias marchas e sambas (como Ai, ai, ai e Santo Antônio amigo), em especial as que foram produzidas para o carnaval de 1941. Nesse ano, em outubro, Petra torna-se exclusivo da Rádio Ipanema (PRH-8), estação de Xavier Filho, ao ocupar lugar de Manoel Reis. Cerca de quatro anos depois, janeiro de 1945, retorna à ex-rádio Transmissora (PRE-3), já rebatizada como rádio Globo, onde permanece até a ocasião de seu trágico e fatídico acidente em 1946.

 

Naquele ano, no dia 22 de julho, às 18h30, enquanto viajava no estribo de um bonde pela rua da Assembléia com destino à Praça 15, João Petra de Barros é vitimado por uma  caminhonete da Escola de Aeronáutica, dirigido por Trifino Francisco de Almeida Filho. O veículo se choca com o bonde, fraturando o terço médio da perna direita de Petra de Barros. O cantor recebe atendimento no Hospital de Pronto Socorro, mas tem a sua perna amputada. Petra retira-se da cena artística, apesar do apoio de amigos, como, por exemplo, Carmen Miranda, que o teria convidado para se tratar nos Estados Unidos.  Inconsolável, o cantor tenta se matar por duas vezes, até conseguir alcançar o suicídio em 11 de janeiro de 1948.  Três dias depois, a coluna Rádio, de Alziro Zarur, publicada no jornal A Noite, assim também se despede de Petra: “Morreu o cantor da voz de 18 quilates, como lhes chamou César Ladeira, nos tempos áureos da PRA-9. Depois de rudes sofrimentos, que o amigo leitor está longe de imaginar, João Petra de Barros cerrou para sempre aqueles olhos bons, que eram bem o fiel espelho de sua alma de escol.” Que a doce voz do rádio possa descansar em paz.

 

Jornalista e professor, sigo reunindo informações sobre João Petra de Barros. Contatos ou dicas pelo e-mail [email protected]. Boa parte das músicas aqui citadas de Petra pode ser ouvida através do campo “Busca no Acervo” do seminal e importantíssimo trabalho de música digitalizada de discos 76 e 78 RPM disponível pelo site do Instituto Moreira Salles: www.ims.com.br. Ressalto também o trabalho de resgate de fonogramas do site Collector’s. A primeira versão deste texto foi publicada originalmente no jornal Estado de Minas de 19 de junho de 2010, caderno Pensar, posteriormente replicada também no site Overmundo. 

Luis Nassif

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