No panteão do samba com Noel e Adoniran, por Walnice Nogueira Galvão

No panteão do samba com Noel e Adoniran

Noel/Adoniran

por Walnice Nogueira Galvão

I – Crônica urbana

Integrando o panteão do samba, Noel Rosa no Rio de Janeiro e Adoniran Barbosa em São Paulo destacam-se como cronistas do cotidiano. Concentram sua atenção sobre o que se passa nas ruas e bares, nos bairros e subúrbios, registrando o pitoresco mesmo dos menores incidentes.  O humor e a empatia com que observam a vida passar revelam um olhar ao mesmo tempo curioso e compassivo, que concede um posto de honra a uma apresentação dos excluídos.  Adoniran oferece o histórico das transformações que fizeram de São Paulo uma metrópole, em que casarões abandonados se tornam moradias coletivas precárias antes de serem demolidos para dar lugar a arranha-céus. Ou a intensificação do tráfego de veículos, tornando perigosas as travessias. Ou então a importância do trem para a população pobre, expulsa do centro e empurrada para a periferia. Noel, que morreu aos 26 anos, não chegaria a acompanhar as várias fases do Rio, mas registraria as conversas de botequim, a influência do cinema americano sobre os costumes e a linguagem, o assédio dos rapazes de automóvel às operárias das fábricas, a mulher indigesta e o gago apaixonado, o amigo que não devolve o empréstimo… E muitíssimas picardias mais.

II – Malandragem e virações: Noel Rosa

Existência instável, recurso a expedientes, jogo de cintura, jeito brejeiro de sobreviver na barafunda urbana: tudo isso cabe no samba, personificado nestes malabaristas da corda bamba. Foi através do debate sobre a malandragem e as virações que o samba adquiriu respeitabilidade, de negro e marginal que era acabando por erigir-se em símbolo da nacionalidade. Uma tal metamorfose ficou impregnada em muitas composições, e pode ser melhor aquilatada na famosa polêmica musical entre Noel Rosa e Wilson Batista. Wilson   defendendo o malandro   de tamanco,  lenço no pescoço e navalha em punho, Noel acusando-o de ser um protagonista retrógrado que ficou no passado, alijado do curso da História.

III – Personagens e lugares de memória

As composições de ambos perpetuam vultos e lugares, tornando memoráveis pessoas humildes como João Ninguém e Arnesto, ou um operário de obra, ou um morador de rua. A crítica social é afiada: exalta valores autênticos, como a amizade e a simplicidade, afiançando a fidelidade a um barraco ou maloca ou bairro, por exemplo, enquanto resistência ao materialismo expresso na ganância. Muitas vezes uma figura, ou uma edificação, ou uma vizinhança, ou um objeto, ou um prato típico, transformam-se em aspiração e símbolo de algo maior, mais solidário.  

IV – Amores possíveis e impossíveis

O coração destes dois sambistas se escancara, celebrando mulheres bem e mal amadas. Algumas delas vistas à distância, inacessíveis, outras compartilhando a vida e até o lar. Emoções poderosamente evocadas falam de frustração, de ressentimento, de ciúme, de vingança, de sofrimento, raramente de júbilo e plenitude. Mas os sambistas também sabem enveredar pela sátira quando resolvem zombar de si mesmos, escapando da pieguice pelo riso.  

V – Flanar pela metrópole

Palmilhar as calçadas, frequentar os botequins e as sinucas, passar em revista as gafieiras: atividade predileta destes sambistas, estes são os espaços onde decorre seu dia-a-dia e onde recolhem estímulos para a inspiração. Revelando-se indomesticáveis, a opção pela boemia encarna bem seu jeito de quem prefere ficar à margem e desdenha mesmo integrar-se à vida burguesa. Flanando, os compositores tornam-se observadores privilegiados dos itinerários urbanos.

VI – Homenagem: Adoniran

Bela homenagem a Adoniran prestada por sua cidade foi esta. Há poucos anos, a mídia cismou de fazer um concurso para escolher a melhor canção popular brasileira. Como resultado, foi eleita “Cidade maravilhosa”, marchinha que exalta o Rio, hino do carnaval carioca que viria a ganhar estatuto oficial de hino da cidade. Os paulistas estrilaram, enfatizando que a canção não os representava. E elegeram – sabem qual? “Trem das onze”, de Adoniran. Todo mundo sabe que não há outra mais paulista, e até paulistana, que essa.  E assim se coroou a voz do povo.

Walnice Nogueira Galvão – Professora Emérita da FFLCH-USP

 

Walnice Nogueira Galvão

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