Samba de Geovana: A Deusa negra que faz o mundo brilhar, por Daniel Costa

Geovana era figura conhecida no mundo do samba, e sua obra merece a consagração popular, com LP de estreia lançado em 1975

Foto: Mariana Caldas / Coletivo Sindicato do Samba / Divulgação

Eu sendo filha de tatá. Tatá eu sou!

A Deusa negra que faz o mundo brilhar.

Por Daniel Costa

Quando paramos para fazer uma pequena revisão da trajetória do samba na indústria do disco é consenso entre críticos, estudiosos ou simplesmente apreciadores do gênero que a década de 1970 ficou marcada por representar um salto em relação a vendagem de discos e acesso do ritmo aos meios de comunicação de massa. Cabe ressaltar que desde o registro daquela que é considerada a primeira gravação oficial do género, a composição de Donga e Mauro de Almeida, Pelo Telefone, o samba emplacou inúmeros sucessos e revelou diversos compositores e cantores, porém será nos anos 1970 com a chegada de Martinho da Vila (RCA) e Clara Nunes (Odeon) ao topo da listagem de artistas com maior vendagem de lps que outros intérpretes também ganhariam espaço e destaque no mercado fonográfico. Basta dizer que o período em questão marca a estréia de grandes cantoras como Leci Brandão (Discos Marcus Pereira, depois Polydor), Dona Ivone Lara (Odeon), Aparecida (CID), Alcione (Philips), Georgette da Mocidade (Tapecar), Sabrina da Imperatriz Leopoldinense (CBS), Renata Lu (Continental), Sonia Santos (Som Livre) e a consolidação de nomes como Beth Carvalho (Tapecar, em seguida RCA), Clementina de Jesus (Odeon), além da já citada Clara Nunes; é nesse contexto que nossa personagem chegará pisando no chão com força.

Agora proponho ao leitor das próximas linhas o seguinte exercício: feche os olhos e apesar de tudo tente esquecer que estamos em 2022, viaje no tempo e imagine aterrissar no Brasil de 1975, talvez a conjuntura não fosse tão diferente daquela que estamos vivendo, afinal naquele momento o país ainda respirava os ares pesados da ditadura civil militar implantada em 1964, a censura buscava sufocar a vida cultural e o movimento negro e de mulheres ainda davam seus primeiros passos, assim como os trabalhadores que pouco tempo depois ressurgiriam no cenário nacional protagonizando o movimento grevista na região do ABC paulista. Pois bem, é nesse cenário que uma carioca criada na Rocinha e com sangue senegalês correndo nas veias conquistará inúmeros admiradores cantando versos como, “Ora, veja só, eu te amava tanto. Mas agora não te quero mais“, e ainda “Gosto de fazer amor. Quem tem carinho me leva“. Quem escuta hoje os versos da canção Quem tem carinho me leva poderia encará-la como mais uma canção onde a mulher parte do seu lugar de fala para dar o recado, porém na década de 1970 o contexto era completamente diferente.

Apesar do seu lp de estreia ser lançado apenas em 1975, Geovana era figura conhecida no mundo do samba, em 1971 foi destaque na segunda edição da Bienal do Samba com a canção “Pisa nesse chão com força” que seria gravado por Jair Rodrigues, é nesse período também que a compositora passa a frequentar as noitadas de samba no teatro Opinião, o evento organizado pela ativista e produtora teatral Tereza Aragão era conhecido por levar nomes consagrados e também revelações do mundo do samba para o palco do teatro localizado em Copacabana. Foi no palco e nas coxias das noitadas no Opinião e a convivência com mestres como Xangô da Mangueira, Zé Keti, Walter Rosa e tantas outras figuras que Geovana realizou seu “estágio de formação” no mundo do samba.

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Das noitadas de samba para os estúdios

Com arranjos de Luiz Carlos Eça, Chiquinho de Moraes e Rildo Hora a cantora lança pela RCA seu primeiro álbum, intitulado Geovana (1975), ao longo do disco podemos acompanhar a artista transitando pelas variadas vertentes do samba, indo do fundante partido alto ao samba rock; assim, a Deusa negra do samba mostra ao longo das 11 faixas que o título que ainda hoje recusa, ou quando aceita deixa muito claro que é com ressalva foi mais que merecido.  Geovana que conhecia o riscado do samba desde criança; além de seu padrasto que tocava cavaquinho, o ritmo dos pontos tocados pelos ogãs dos terreiros da Rocinha ecoavam pelos ouvidos da pequena Maria Teresa deixando em sua memória o registro da força da ancestralidade africana.

Apesar de carregar consigo uma grande caminhada no mundo do samba, Geovana tem uma discografia pequena, além do citado disco de 1975, seu segundo lp “Canto pra qualquer cantar” seria lançado em 1991, o terceiro disco viria apenas em 2020, “Brilha Sol” mostra nossa dama negra em plena forma dividindo algumas faixas com a nova geração do samba. Apesar dos longos intervalos entre os discos, Geovana continuou pisando no chão com força para deixar sua marca, seja compondo para outros intérpretes, participando da ala de compositores da Acadêmicos do Salgueiro ou mandando suas brasas nas rodas de samba de São Paulo, onde reside desde os anos 2000.

Assim como a imensa maioria das mulheres pretas do país, Geovana travou muitas batalhas, inclusive trabalhando em outras atividades que não a música, porém a força e a vitalidade da obra forjada pela nossa deusa negra reforça apenas a máxima trazida pelo cronista Francisco Guimarães, o Vagalume na sua clássica obra “Na Roda do Samba”, ao escrever que “quando o samba é bom mesmo e merece a consagração popular, fica anos e anos na memória de toda a gente e é sempre lembrado com alegria e entusiasmo”.  E foi exatamente o que essa filha de Tatá, com vovô feito na pemba e vovó feita na Guiné nos proporciona.

Obrigado Geovana! Por através das suas canções e do seu sorriso fazer não apenas o sol e a lua brilhar, mas também nossos olhos e alma ao ouvir suas criações.

Daniel Costa é graduado em história pela UNIFESP, compositor, e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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