Uma entrevista com Bezerra da Silva

Por Antonio C.

Do O Malaco

Malaco da Silva

A sabedoria do sambista mais respeitado e admirado do País

TEXTO PUBLICADO EM O MALACO #1 – Fevereiro de 2001

É difícil entrevistar Bezera da Silva e não indagá-lo sobre a diferença entre um malandro e um mané. Chavões à parte, O Malaco foi buscar numa peculiaridade das músicas que ele canta o ponto central da conversa: a falta da palavra “amor” nas letras. E aí o intérprete mais longevo do samba deita e rola.”Se o amor é tudo isso que eles falam, então na Terra ele não mora”, define. Emendando um assunto atrás do outro, Bezerra opina sobre encrencas com a polícia, jornalistas, samba, favela e, óbvio, malandragem.

A palavra AMOR. Que Bezerra não soletra.

“O problema não é a palavra. Eu sempre procurei ouvir as minhas opiniões e as dos outros, vivendo dentro de uma realidade. Então, eu tive prestando a atenção nessa palavra, A-M-O-R, eu procurei saber o que era, não falando dos compositores do mundo artístico, que esse é um tema manjado, cansado, fica cansativo. Você vê a maioria das composições é “meu amor, eu te amo”, não sai disso, é uma coisa de novela. Quanto à palavra amor, eu procurei saber, e acordo com a definição, isso não pode existir aqui na Terra. Segundo a definição, ‘o amor não tem sexo, o amor é puro, é sublime, eterno, divino, puro, lindo, perfeito, sem defeito…’. Se o amor é isso tudo, então aqui na Terra ele não mora, bicho, de maneira nenhuma.

Inclusive tem frases como ‘fazer amor’, eu queria saber onde fica essa fábrica. Se você for observar, ‘amai-vos uns aos outros’ não existe. Eu tive vendo o nono mandamento da lei de Deus, ‘não cobiçar a mulher do próximo’, ninguém passa nessa, só viado (risos generalizados). Aparece uma mulher boa pra caralho, ah… pecou, já foi pro inferno. Entendeu bem?

Mas esse tema começou uma vez lá na Rádio Globo: ‘o Bezerra da Silva não canta o amor’, isso não tem nada a ver com o gênero, entendeu. Eu não acredito nessa história. De vez em quando eles dizem ‘você diz que não tem amor’, então fica com o teu pra lá que tá tudo bem, agora, não vai querer me levar pra grupo que eu não sou nenhum otário, porra, entendeu. Quer dizer, a mulher te ama, daqui a pouco te bota um chifre, que porra de amor? É de boi? Porra, cara, entendeu? (risos) Cadê o amor no sistema capitalista? Que amor que tem? Se botou ‘nosso amor’ na música, já não serve.

Existe também um termo, uma frase bem marcante ‘o amor é eterno’. Eu não sei dizer o que é eterno. É claro, todo mundo sabe o quê que é, mas daqui a pouco você amava uma mulher, era gamado mas já largou ela, então etcetera e vai pra casa do cacete. Vida a dois é um problema sério, como acontece depois que casou e descobre o defeito da mulher, depois separa, isso aí é um agá, tá havendo aí um negócio de caô caô do cacete, pra engrupir, pra levar a rapaziada pra grupo, morô?

Se amanhã você for namorar uma moça, ou vice-versa, se alguém for namorar a sua irmã, se ela quer o fulano, a primeira preocupação dos pais é saber onde você trabalha, se tem condições financeiras de sustentar a filha dele, então o amor vai pra casa do cacete. Primeiro ele vai ver o vil metal. Esse amor é foda né, bicho, não dá pra eu entender. Então como não gosto de agá, meu negócio é na dura, é zero a zero.”

Drogas, Polícia…

“Eu sou um cara realista e não se trata de malandragem, sabedoria, nem porra nenhuma. Se trata que eu sou ruim de me levar pra grupo porque, por exemplo, eu ensinei meus filhos. E você vivendo dentro de uma realidade, você passa a sofrer pouco, você não tem mais surpresas, sabe que maconha faz mal, que cocaína faz mal, você sabe que você vai preso, que há repressão, mas tem a sua saúde que vai pro beleléu, então você é um cara preparado pra vida. Não é que eu seja, por exemplo, como essa garotada do hip-hop, Racionais, toda essa juventude gosta de mim, porque realmente eu sempre adorei uma coisa que chama real. Porque não há tempo pra viver mais enganado, pra sonhar acordado, tá entendendo? Agora, eu me dou bem, eu vivo bem. Jamais eu vou discutir com você, te convencer.

Mas há um tempo atrás, até os anos 70, se a gente tivesse conversando aqui, passava a polícia e ficava pedindo ‘documento, documento!!’ e sabe o que eles queriam? Era uma carteira profissional assinada. Era a prova de trabalho. Aí você podia ir por aqui, por ali.. Então se não tivesse aquela carteira eles levavam você pra delegacia para ‘averiguação’. Mas isso era arbitrário. Então o policial se achava no direito de zoar de você e convidar você pra ir à delegacia, chegar lá e bater um boletim, ler a sua ficha penal seja lá o que for daí depois pediam desculpa, coisa e tal, botavam você no carro e deixavam você no mesmo lugar onde tinha sido pego. Sabiam que você não fazia porra nenhuma, aí botavam no xadrez 24 horas pra esperar o boletim, mostrar que tá trabalhando, com as estatísticas e o policial que prendia mais ganhava um prêmio. Então ele prendia os otário, né? Não matei, não roubei, então eu não vou correr. ‘Pare, eu sou Polícia’, legal, bicho. ‘Agora sai, Bezerra da Silva, vai embora e não aparece mais aqui’. E eu respondia: ‘tu acha que eu vim sozinho pra delegacia ou foi você que me trouxe?’. Pergunta cretina. (risos). Minha folha penal é ‘nada consta’, mas se bobear, eles dizem que sou mal-criado, mal educado.”

Cantando para sobreviver

“Eu saí de casa com 15 anos de idade e fui lutar pela vida, trabalhar em construção civil e coisa e tal. Quando eu não tinha onde morar eu morava na rua, e acabei por me criar no Morro do Cantagalo. Ali eu vi de tudo, aprendi tudo.. então é um universo próprio, né? É um diploma que bem poucos têm. O morador do morro é um trabalhador incansável. Então, quando você aprende o mundo com a própria vida, então ninguém agüenta você, ninguém te leva pra grupo. Que porra de vim me falar por livro, o caralho! Tudo bem, você vai pra escola, aprende a falar bonito, mas não vai levar você pra grupo. Entrei em cana 21 vezes, sou campeão de averiguação sem fazer porra nenhuma, entendeu? Todo dia quase entrando em cana lá, não sei por quê…

Realmente existe uma mídia violenta, selvagem, desumana e tal, então eu vivo num gênero que é marginalizado, desde os tempos que eu cheguei do Recife, que não sou carioca, me criei no morro, aquela coisa toda, porque esse gênero já existia, eu não inventei nada. Então quando teve a chance, eu fui o primeiro a gravar, eu não criei nada, entendeu? Quando eu não era nascido, o gênero já existia. E fiquei também, dei uma sorte que não tenho concorrente, por isso que eu tô de pé até hoje. Porque se eu cantasse esse ‘meu amor eu te amo, pá pá pá’ eu já tinha me fudido há muito tempo, já tinha batido na trave, ido pra casa do cacete. Então essa é a minha realidade.

Eu canto a realidade brasileira, eu canto o dia-a-dia do compositor pobre, porque eu não sou autor, tô cansado de dizer isso, certo? Eu gravo para os compositores do morro, da favela, da periferia, da Baixada Fluminense, quer dizer, as pessoas humildes, trabalhadores de baixa renda, então gravo pra esse pessoal. Então eles escrevem o dia-a-dia deles, na favela, e o gênero pegou, foi conquistando o público de todas as idades. Já fui até fazer palestra na universidade, lá em Vitória. Você não é obrigado a acreditar em nada, pode fazer o que você quiser. Não tem esse negócio de amor de mãe, amor de pai, amor de porra nenhuma. Se realmente tivesse mesmo, tem mãe que abandona filho, tem mãe que mata o filho quando nasce, joga na lata do lixo, tal. Complicado, então.”

Samba, partido alto ou pagode?

“Isso aí é um terreno de músico, e eu sou músico. Trabalhei na Sinfônica da Globo oito anos, então esse negócio de partido alto, essas coisa tudo, fica dentro de um compasso, se você é músico sabe disso. Então não tem essa história, tem samba, entendeu, samba, dois por quatro. Agora você pode cantar o que você quiser ali dentro, mas é dois por quatro. Esses subtítulos, esses rótulos que eles botam, pagode, sambode, MPB, não sei o quê, tudo isso eu vejo como uma maneira de querer ludibriar as pessoas, entendeu? Eu sou sambista, acabô aí. Cabô. Agora, pagode é um termo pejorativo, apesar de ter dicionário que dá uma interpretação, tem outro que dá outra, você fica sem saber. Pagode, se você for abrir um diconário, é ‘templo pagão de alguns povos asiáticos’, ou então, ‘pândega ou divertimento’, e dentro dessa informação não tem nada a ver com dó ré mi fá sol lá si. É um negócio nosso, da nossa cultura, da falta de educação, estupidez.

Eu já passei em lugar que te densina violão em três meses, não tô entendendo, ou eu sou muito burro, meu professor também, porque violão em seis meses você não aprende nem a afinar. Meu filho toca bateria porque eu ensinei. Porque se você for pra uma escola, te ensinam a tocar aquele rock, tum, tum, tum, daí não passa, acabou, dois por quatro não vai tocar nunca. O garoto não sabe, o pai não sabe, vai gastando dinheiro, vai não sei o quê, então nós temos essa série de, problemas sociais, de educação e cultura, e o pessoal vive enganado. ‘Onde é o seu nariz?’ (aponta) ‘ah, é aqui no pé’ (risos). Tá entendendo? Uma série de analfabetos se apropriaram do Brasil, dá até pena, é doloroso. Não tenho curso superior não sou formado em porra nenhuma e nem quero. Leio código penal, aquela coisa toda. Quer dizer, fico olhando, observando os agás, né, os caô caô, tudo grupo, então eu não vou cair naquela.”

Culpa da imprensa

“Uma vez tava num programa, tava brincando com os jornalistas, até que um, famoso, disse ‘um nunca vi crioulo pobre, favelado, bem criado e bem educado’. É mal criado porque o cara passa muita fome, mal educado porque ele não vai pra escola. Daí veio o (Jorge) Mascarenhas e disse: ‘Não, mas acontece que educação é uma coisa de cultura. Educação é de berço’. E eu falei: ‘Mentira tua. Você é omisso’. Não existe educação de berço. Ah, vá sacanear o cacete.. Será que a pessoa não sabe o que quer dizer educação? Eu tenho dois filhos, e paguei escola pra eles porque podia. Porque no Brasil não tem curso de graça pra ninguém, e quando tem é agá. Não é política, é realidade.”

Décadas de Bezerra

“Fazer sucesso é realmente difícil, mas difícil ainda é manter. Tem uns colegas meus que acerta numa música só e acabou. O poder econômico, dentro do rádio, atua contra o talento. É preciso que você tenha muita ajuda de Deus, seja muito esperto. Por exemplo, em 1979, quando o Brasil passou a conhecer essa sigla, essa marca Bezerra da Silva, eu já tava na área há muito tempo. Trabalhava como músico, portanto… De 69, 65 pra cá, praticamente eu devo ter uns 34 anos de área. Mas durante aquele período de músico, quando eu trabalhava na Rede Globo, ninguém sabia, o pessoal só conhece depois do sucesso. Então tudo começou em 79, entendeu?. E eu segurei até hoje.

Mas aquela leva de colegas que veio junto, praticamente dançou todo mundo. Janaína, Neguinho da Beija-Flor. Porque.. não é que ele não seja bom, eles tão sendo usados. E também porque eles cantam uma coisa que é corriqueira, e tem que gastar muito, tem muita pedra pra chegar lá. E se você entra no gênero romântico, como eles falam, tá arrumado. Vai ter que encarar muita coisa, vai ter que encarar Roberto Carlos, que é profissional, inteligente, tem máquina publicitária, tal, e uma série de coisas, e depois o vil metal. E o público tá sempre enganado. O público é sempre aquele último a saber. Principalmente o rádio, hoje em dia, é na base do vil metal. Você paga pra cantar na televisão, paga pra cantar no rádio, paga pra não sei o quê. Então não é pra pobre. Você observa, dá até pena. Vocês lembram daquele negócio do sapatinho (o ex-bando do filho do Zico, Só No Sapatinho)? Cadê? Vendeu 100 mil naquela brincadeira. E acabou. É diferente do crioulo, do pobre, favelado, encarar a realidade. Porque eu fui consagrado pelo povo, e não pela mídia.”

Entrevista: Fabrício Rodrigues/Gabriel Rocha/Romeu Martins
Fotos: Fred Carvalho

Luis Nassif

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