“Xará”: álbum do músico baiano Paquito traduz tragédia brasileira e mundial
por Josias Pires Neto
A poesia, a música e o canto de Paquito (Antonio José Moura Ferreira) revelam-se inteiros e maduros no álbum “Xará”, disponível em plataformas digitais, como Spotify. São 20 canções, gravadas entre 2014 e 2019, que nos encantam pela complexa e singela estranheza da síntese musical realizada. Rica de interpretações, como o próprio Paquito define, no baião “Caro Canto” (música e letra de Paquito), as composições tem algo “meio santo meio diabo”:
caro canto canto caro
raro canto encanto raro
caro engano canto avaro
pra você eu faço um preço mais barato
há tantos cantores no mercado
convém manter o decoro
se necessário eliminar o decoro
amor no fundo do poço
poço sem fundo a condição pra esse corpo
casto canto canto casto
meio santo meio diabo
homem santo meio veado
convém eliminar o decoro
quem é louco de cantar a peso de ouro
convém manter o decoro…
canto duro escuro
noite em claro
canto mal falado
quase mudo
véio safado
e no entanto
caro canto
mais que puro
tadeu mascarenhas: sanfona
paquito: canto e violões
Paquito faz canções que transitam por fora do sistema de estrelas, do mainstream musical. Canto duro, porém, suave; escuro, mas luminoso o suficiente para atravessar noites em claro, como vemos na moda de viola Mel e pus (música e letra de Paquito):
melodia eu te compus
só pra ver se alguém se encanta
nó de afeto na garganta
corpo em sangue mel e pus
melodia que seduz
ao tempo em que desencanta
pequenez se agiganta
desesperança reluz
qual ciência de criança
tateando a escuridão
e o bater do coração
na ilusão da contra-luz
meio dia um verso irmão
da canção que não se diz
fez-se feliz infeliz
de se rastejar no vão
meia noite os infantis
sons do breu ao rés-do-chão
trazem sol pro coração
da canção que jamais fiz
pensamento sem razão
corpo são dejetos vis
mel e pus luz dos debris
assim fiz essa canção
paquito: canto e violão.
gravada por cândido neto e tadeu mascarenhas
Tendo iniciado sua carreira musical, na década de 1980. na banda de rock soteropolitana Flores do Mal, Paquito transitou, nos anos de 1990, da sua poesia musicada para a produção artística. Ao lado de J. Velloso, produziu o LP “Diplomacia – Antologia de um Sambista”, doze faixas cantadas pelo genial Batatinha, o compositor baiano Oscar da Penha (1924-1997). No LP mais cinco faixas são cantadas por Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Jusssara Silveira: Diplomacia – antologia de um Sambista. No começo dos 2000 Paquito e J. Velloso produziram o primeiro CD, aos 80 anos, do impagável Riachão.
A música título do mais novo álbum de Paquito, “Xará”, é um lamento respeitoso e debochado para o Santo Casamenteiro:
antônio meu xará
um amor eu arranjei
como faz pra eu me livrar
meu santo e orixá
a sua vontade é lei
mas demora pra passar
desça desse velho altar
e desfaça seu mal-feito
eu ando por aí a rodar
só porque fui seguir seu preceito
me socorra meu santo e xará
eu carrego seu nome em meu peito
você disse que eu ia pro céu
mas o caminho é pra lá de estreito
bate um sol de furar o chapéu
frio de apertar o peito
no fim fica assim corpo ao léu
o amor é um céu imperfeito
quem quer? amor de josé
quem quis? amor de luís
quem queria? amor de maria
orgão: tadeu mascarenhas
canto, violão e piano: paquito
Entre as canções-cabeça estão duas que mexem fundo com a nossa tragédia atual no mundo e no Brasil. Nelas Paquito traduz a crise civilizatória resultado do progressismo iluminista racionalista capitalista, que levou o planeta à crise do clima, síntese atual de todas as demais crises:
Melô do Aquecimento Global (Música e letra de Paquito)
das geleiras o sinal
do que está pra acontecer
o planeta terminal
que deixamos pros bebês
hum hum é o sinal
pro planeta terminal
hum hum afinal
sem juízo no final
conferência mundial
anunciam na tv
tudo vai virar mingau
inclusive eu e você
hum hum é o sinal
tudo vai virar mingau
hum hum afinal
sem juízo no final
pá pá pá pá pá pá pá pá
tu ru ru ru ru ru ru ru
valei-me exú e oxalá
do apocalipse carurú
valei-me oxalá e exú
quem sabe alá talvez jesú
tudo vai virar mingau
que deixamos pros bebês
o culpado é o animal
que ajoelha reza e crê
hum hum animal
o culpado é o animal
hu hu racional
de joelhos no final
tá na hora de dar tchau
tata honorato: canto
paquito: canto e violão.
Em “O Monstro” (parceria com Chico Cesar), canção feita dois anos antes da eleição do atual presidente, está tudo dito:
O monstro (Paquito – Chico Cesar)
o monstro chegou
no mundo pleno de ódio e amor
não adianta chamar a polícia
não tem sentido alertar a família
ninguém segura
a criatura e seu terror
o monstro naturalmente
exibe os dentes à luz do dia
caninos proeminentes
na boca quente e macia
bandido bom é bandido morto
jesus moído até o osso
o monstro habita o esgoto
qualquer de nós, uns e outros
exceto a virgem Maria
o monstro chegou
no mundo pleno de ódio e amor
será que tem entrada na polícia
andam dizendo que é muito família
ninguém segura
a criatura e seu terror
desumano humanamente
e a mente mente mente fria
descrente e se diz crente
e no escuro o arguto guia
tadeu mascarenhas: sanfona
paquito: canto e violão
Síntese de informações musicais populares, clássicas, pops e eruditas, Paquito faz o seu vatapá, o seu caruru, com o cancioneiro pop atravessado de baiões, sambas, cantigas, lamentos, orações. Canções que estranhamente irradiam suavidade ruidosa em meio ao “Barulhento” (música e letra de Paquito, gravada com Caetano Veloso) mundo da indústria musical e reclama para que o “silêncio” atue indo a “ninar meu bem” em meio aos “decibéis e dor”:
rock and roll som ambiente
axé music também
sob o sol mais inclemente
a gente no vai e vem
chuva e sol de shopping center
onde a gente vai, evem
decibéis indiferentes
ao coração de ninguém
silêncio
silêncio
silêncio
silêncio
vai ninar meu bem
rock and roll de shopping center
onde a gente vai é vem
chuva e sol indiferentes
orações a deus ausente
corações em deus amém
silêncio
silêncio
silêncio
silêncio
vai ninar meu bem
decibéis em flor
decibéis e dor
dorme dorme amor
silêncio
caetano veloso: canto
paquito: canto, violão e slide
cândido neto: slide do “amém”
gravada por cândido neto
Album produzido por tadeu mascarenhas e paquito
produção executiva: paquito e joão gabriel carvalho
gravado e mixado por tadeu mascarenhas, no estúdio casa das máquinas, exceto as indicadas na ficha técnica de cada faixa, gravadas na casa amarela e no estúdio t, de 2014 a 2019.
masterizado por daniel carvalho.
arranjos de paquito e músicos participantes.
fotos Sora Maia
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