Sobre o Autoritarismo Brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O livro lançado no dia 27 de maio de 2019 tem defeitos e virtudes. Apontei alguns defeitos, pois tenho certeza de que o leitor saberá encontrar as virtudes que existem no livro de Lilia Moritz Schwarcz.

Sobre o Autoritarismo Brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No dia 27 de maio de 2019 fui ao lançamento do livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz (editora Companhia das Letras), na Livraria da Vila. Figuras conhecidas da cena intelectual tradicional paulistas foram ao evento.

O livro é dividido em 8 capítulos curtos: 16 páginas são dedicadas à escravidão e ao racismo; 14 páginas ao mandonismo; 23 páginas ao patrimonialismo; 24 páginas à corrupção; 38 páginas à desigualdade social; 26 páginas à violência; 22 páginas a raça e gênero e 33 páginas à intolerância. Nenhuma capítulo ou página foi dedicado ao autoritarismo nas relações de trabalho durante a República Velha e na atualidade.

Os referenciais teóricos utilizados na construção do livro são aqueles que tem sido refutados por Jessé de Souza nas suas obras. Em seu novo livro, Lilia Moritz Schwarcz menciona várias vezes, quase sempre em tom laudatório, as obras dos três pensadores que compõe o que Jessé de Souza chama de vacas sagradas no panteão da tolice intelectual brasileira: Raymundo Faoro, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta.

O livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro funciona como uma excelente peça de propaganda tucana. A pesquisadora da USP legitimou de maneira acrítica a narrativa jornalística de que o principal problema do Brasil é a corrupção dos “…nossos principais partidos políticos – PMDB, PP, PSD, PSDB e, sobretudo, o PT.” (p. 117). Frisei a expressão “sobretudo, o PT” porque é evidente que a autora omitiu deliberadamente um fato importante: a quantidade de políticos petistas envolvidos no escândalo da Petrobras é muito menor do que os dos outros partidos. Essa omissão não pode ser considerada fruto de ingenuidade, pois um pouco adiante a antropóloga corroborou a narrativa da imprensa corporativa ao afirmar que o “… o esquema de corrupção praticado pelo Partido dos Trabalhadores não era exatamente novo, mas chegou a uma escala e abrangência nunca vistas.” (p. 118).

Não há no livro qualquer referência à verdadeira origem da corrupção na petrolífera brasileira: o Decreto assinado por FHC e Gilmar Mendes dispensando a Petrobras de realizar licitações. Terceiro. Algumas páginas adiante, a autora faz uma concessão ao respeitável público de esquerda ao mencionar a corrupção de Aécio Neves. Contudo, mesmo aqui podem ser notadas algumas omissões importantes.

Primeiro, o livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro não faz menção à corrupção de líderes tucanos paulistas (estou me referindo aqui especificamente ao escândalo do Metrô envolvendo José Serra e seu homem de confiança Paulo Preto). Somente sobre esse assunto existe 8,85 milhões de verbetes sugeridos pelo Google, muitos dos quais oriundos das empresas de comunicação. Lilia Moritz Schwarcz cita e corrobora as acusações jornalísticas sacadas contra o PT, mas não pesquisou ou se referiu às acusações que a imprensa fez contra os líderes do PSDB de São Paulo.

Nesse ponto preciso fazer uma digressão importante. No capítulo sobre o mandonismo, a autora faz referências à preservação do poder por algumas famílias em diversos Estados brasileiros. Ela inclusive cita os nomes dos clãs Caiado, Bulhões, Ferreira Gomes, Richa, Sarney, Calheiros, etc… (p. 59 a 61).

Durante décadas a cidade e o Estado de São Paulo foram governados por José Serra e Geraldo Alckmin. O atual prefeito de capital paulista, Bruno Covas, é neto de Mário Covas (um ex-prefeito e ex-governador de São Paulo ligado a Alckmin e Serra). Lilia Moritz Schwarcz não foi capaz de escrever uma só frase criticando o clã Covas ou o mandonismo tucano em São Paulo. No capítulo sobre a Intolerância, a autora critica os “códigos binários” que domesticaram o mercado de opiniões na internet. O que dizer da “ciência social binária” que tem sido feita por alguns pesquisadores paulistas com o intuito de garantir a construção de uma imagem positiva dos clãs tucanos que comando a cena política no Planalto de Piratininga?

Também causa estranhamento a forma elogiosa como a antropóloga uspiana se refere à Lava Jato e ao juiz Sérgio Moro.

A obra lançada na Livraria da Vila foi escrita e impressa antes da imprensa noticiar o escândalo da tentativa de apropriação privada de 11 bilhões de reais pelos procuradores da Lava Jato. Aquele negócio duvidoso, que foi feito no âmbito do processo, teve a anuência da substituta de Sérgio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba e foi suspenso pelo STF a pedido da Procuradora Geral da República. O Ministro Dias Toffoli, presidente do STF, sugeriu que o desvio de dinheiro público para a criação de uma fundação controlada por procuradores pode ser crime. Na próxima edição do livro, a autora de Sobre o Autoritarismo Brasileiro terá uma excelente oportunidade para ampliar o capítulo sobre a corrupção a fim de abordar esse episódio escabroso

Lilia Moritz Schwarcz também não se deu ao trabalho adentrar ao “campo jurídico” para pesquisar como os juristas (alguns deles professores das melhores universidades brasileiras e europeias) encaram a corrupção dos princípios constitucionais do Direito Penal no âmbito da Lava Jato. Esse tema por si só mereceria um estudo antropológico dentro do capítulo sobre o mandonismo ou, ainda, naquele em que a autora estudou a violência (a seletividade penal e a utilização política/partidária do processo penal podem, sem dúvida alguma, ser consideradas uma espécie de violência simbólica).

Fui advogado de Sindicatos durante uma década. Há mais de trinta anos estudo a história do Direito do Trabalho e atuo como defensor de operários. Considero absolutamente imperdoável o fato da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz não ter estudado o autoritarismo antes e depois do fim da escravidão. Durante a República Velha, quando a questão social era tratada como caso de polícia, a criação de sindicatos e a organização de greves causou a prisão e a deportação de líderes operários. Esse indício claro do autoritarismo da sociedade brasileira não pode ser desprezado.

Os episódios grotescos de autoritarismo, racismo e sexismo dentro dos locais de trabalho, que ocorrem nos dias de hoje, podem ser considerados uma sobrevivência histórica do regime de produção escravocrata que perdurou até o final do século XIX. Eles são debatidos e julgados em milhares de Acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo em casos de “assédio moral”. Todo esse material está à disposição dos pesquisadores da USP e os ajudaria a construir uma imagem mais fidedigna do “autoritarismo à moda brasileira” do que aquela que resulta do estudo de matérias jornalísticas contaminadas por parcialidade ideológica, política e/ou partidária.

No capítulo em que trata a intolerância, a autora afirma que o “… uso das redes sociais, em vez dos veículos tradicionais de comunicação, também se comporta como elemento que aguça a comunicação bipartidária. No vale-tudo da internet, não há espaço para a confirmação de fatos, documentos e fontes, tampouco para a autoria intelectual, ou para a análise menos passional do que aquela feita no ‘calor da hora’.” (p. 212/213). A autora tem razão, mas ela colocou o foco apenas nos usuários. Com isso ela isentou as próprias redes sociais, que tem sido acusadas de realizar experimentos de engenharia social sem o conhecimento ou a autorização dos cidadãos.

“O experimento do Facebook, de incentivo à participação eleitoral, é um teste de controle aleatório, uma modalidade comum de experimento científico, originalmente difundida em medicina, no qual os participantes são divididos aleatoriamente em dois ou mais grupos. Um dos grupos é alvo de uma intervenção – por exemplo, o recebimento de fotos de amigos que já votaram -, enquanto nada acontece ao outro. Esses estudos são cada vez mais populares entre os cientistas sociais, e serviços como o Facebook – com seus milhões de usuários e configurações facilmente ajustáveis de acordo com o que cada um deve ver – são ideais como campos de experimentação, repletos de cobaias involuntárias (ou seja, nós).

O futuro a respeito de um novo estudo em que o Facebook mostrou a usuários felizes mensagens positivas, e a usuários infelizes mensagens negativas, parece bastante ingênuo. Como afirmou um especialista em dados do Facebook poucos meses antes do escândalo, ‘no Facebook, realizados mais de mil experimentos por dia. Enquanto muitos desses experimentos são concebidos para otimizar resultados específicos, outros visam servir de base para decisões de longo prazo do projeto’. Traduzindo: melhor nos preocuparmos com os milhares de experimentos diários a respeito dos quais não comentamos nada!” (Big Tech – A ascensão dos dados e a morte da política, Evgeny Morozov, Ubu Editora, 2008, São Paulo, p. 105)

A acusação de que uma empresa de tecnologia da computação israelense foi contratada para ajudar a explorar as vulnerabilidades dos internautas/eleitores brasileiros durante a última eleição presidencial também é relevante. Ela tira o foco do comportamento individual das pessoas, na medida em que elas são transformadas em ratos no laboratório de experimentos virtuais com finalidade política e partidária. Numa próxima edição do livro Lilia Moritz Schwarcz também terá a oportunidade de tratar desse assunto que eclodiu depois que a obra foi escrita e impressa.

Por fim, gostaria de problematizar um pouco a crença que a antropóloga devota aos “veículos tradicionais de comunicação” e a suspeição que a internet desperta em todos nós. Antes e durante a Guerra do Iraque a grande imprensa norte-americana repercutiu de maneira acrítica a acusação feita pelo governo Bush Jr. de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Muito tempo depois a imprensa reconheceu seu erro, mas quem conseguiu expor os crimes de guerra cometidos pelo US Army no Iraque foi o Wikileaks. A imprensa foi a reboque daquele website, pois durante a guerra os jornalistas se limitaram a fazer aquilo que os comandantes norte-americanos mandavam.

No Brasil a grande imprensa apoiou o golpe de estado de 2016 “com o Supremo com tudo”. Dilma Rousseff não havia cometido nenhum crime de responsabilidade, mesmo assim o governo dela foi interrompido para que Michel Temer começasse a desmantelar o Estado de bem-estar social. O processo de Impeachment foi uma fraude jurídica, política e midiática conduzida pelo PMDB e apoiada pelo PSDB.

Entre nós, quem denunciou a fraude do Impeachment de Dilma Rousseff foram os jornalistas que mantém blogues independentes (blogues sujos, segundo José Serra). Quando compararam a versão dos “veículos tradicionais de comunicação” brasileiros com a narrativa alternativa das redes sociais, as maiores empresas jornalísticas norte-americanas e europeias admitiram que o Brasil sofreu um golpe de estado. Portanto, em nosso país é no mínimo complicado confiar cegamente nas empresas de comunicação (especialmente para os pesquisadores e antropólogos).

O livro lançado no dia 27 de maio de 2019 tem defeitos e virtudes. Apontei alguns defeitos, pois tenho certeza de que o leitor saberá encontrar as virtudes que existem no livro de Lilia Moritz Schwarcz.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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