A imaginação política como estratégia de sobrevivência no fundamentalismo do mercado, por Jaqueline Morelo

O que estamos vivenciando é passagem, movimento histórico que nos leva em direção a um mundo que ainda não compreendemos e no qual não nos reconhecemos principalmente porque está sendo erigido sobre uma lógica nova

Imagem: Forbes

A imaginação política como estratégia de sobrevivência no fundamentalismo do mercado

por Jaqueline Morelo*

Uma onda global de infelicidade assola a humanidade, encobrindo sonhos e esperança, de acordo com o relatório “World Happiness Report” do Instituto Gallup, divulgado em 2018. Os brasileiros foram  fortemente atingidos, registrando o pior índice de infelicidade (6,3 em uma escala de 0 a 10) desde 2006, primeiro ano de realização da pesquisa, número que colocou o país na 32ª posição entre as 156 nações investigadas.

O índice, segundo o relatório, foi puxado pela crise financeira e pela desconfiança nos líderes da política nacional, mas a infelicidade dos brasileiros também está sendo percebida por médicos e psicólogos, que atendem cada vez mais pessoas tristes e angustiadas, que relatam sensação de insegurança profissional e financeira, incapacidade de atender as expectativas da sociedade, medo de julgamentos, entre outros males.

O que estamos vivenciando é passagem, movimento histórico que nos leva em direção a um mundo que ainda não compreendemos e no qual não nos reconhecemos principalmente porque está sendo erigido sobre uma lógica nova, a do capitalismo financeiro, que desconhece os valores humanistas que até recentemente orientavam a racionalidade humana nas sociedades modeladas pelo capitalismo e pela democracia liberal. Valores como a liberdade individual, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.

No dizer do historiador e cientista político Achille Mbembe, nos encontramos no limiar entre o mundo tal como o conhecemos a partir do final da Segunda Guerra Mundial, e uma nova era, regida pelo capitalismo neoliberal, na qual o capital financeiro, apoiado pelo poder tecnológico e militar, se tornou hegemônico ao produzir certo consenso em relação à ideia de que para sobrevivermos temos que aderir às novas regras, ditadas pelo mercado, ainda que discordemos delas.

Podemos constatar, portanto, a existência de um novo tipo de fundamentalismo, no qual o capital financeiro disseminou e transformou em dogma a ideia de que já não é possível criar outras formas de organização da sociedade fora deste sistema econômico.

Ainda segundo Mbembe, uma era caracterizada pela liberação das paixões e afetos, que se voltam não contra a crescente desigualdade social, mas produzem conflitos sociais em forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia, como forma de fortalecimento identitário. Um tempo em que uma multidão de sujeitos destruídos pelo capitalismo neoliberal, convencidos, em sua maioria, de que seu futuro será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial, na tentativa de produzir alguma segurança e restaurar a masculinidade perdida, reafirmam a hierarquia, a religião e a tradição.

No Brasil, grupos conservadores e ultraconservadores são facilmente identificados promovendo ataques contra museus, exposições e instituições culturais públicas e privadas, defendendo a escola sem partido, a educação domiciliar, a posse de armas, e combatendo tudo aquilo que identificam como avanço do comunismo.

Diante desse quadro, é possível pensar, como sugere o filósofo Vladimir Safatle, que o poder está sendo exercido para produzir e gerenciar a melancolia coletiva dos sujeitos, um estado físico e psíquico paralisante que tem bloqueado toda e qualquer imaginação política. Ou seja, constadas as imensas perdas – dos ideais, dos sonhos e promessas irrealizados -, e ainda perplexos diante de um governo e de um governante até pouco tempo inconcebíveis, a resposta dos indivíduos que sempre estiveram comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa tem sido, quase sempre, uma resignação lamuriosa.

Assim, se consideramos válida a hipótese da produção deliberada de melancolia, é preciso perguntar quem está lucrando com essa situação e como podemos enfrentá-la. Nesse sentido, o também filósofo Jacques Rancière tem apontado uma direção ao afirmar ser necessário redobrar o esforço do pensamento para evitar a paralisia que tanto tem beneficiado aos que exercem o poder em nome do deus mercado.

Fato é que ainda nos resta a imaginação política necessária à concepção do novo, daquilo que ainda não foi pensado e que poderia nos levar a encontrar brechas dentro do sistema, pelas quais seria possível construir novos espaços de enfrentamento e resistência para viver neste mundo.

Para Rancière, esses seriam lugares onde se poderia escapar da ordem social dominante; ilhas ou oásis não só de resistência, mas também de criação de vidas autônomas em relação à lógica dominante, como espaços de tipo cooperativo de produção, novas formas de ensino e novas maneiras de organizar a vida.


*Jaqueline Morelo é jornalista, cientista social, mestre em Ciência Política, é diretora da Associação Internet Sem Fronteiras.

Redação

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