Por Luiz Feldman, Diplomata, e Pedro Meira Monteiro, Professor de Literatura
Em torno de um artigo esquecido de Sérgio Buarque de Holanda
Na Revista Inteligência nº 83 – Out/Nov/Dez 2018
Em setembro de 1941, o governo brasileiro lançou Travel in Brazil, revista dedicada a apresentar o país ao público norte-americano. Era editada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda da Presidência da República, organizada por Cecília Meireles e iniciava-se com um artigo de Sérgio Buarque de Holanda intitulado “Outlines of Brazilian History”. A distribuição da revista nos Estados Unidos parece ter sido limitada. Não há, por exemplo, sinal de Travel in Brazil na Biblioteca do Congresso norte-americano. No Brasil, a dispersão e destruição dos arquivos do DIP após o fim do Estado Novo terá contribuído para o esquecimento em que caiu essa publicação, que não foi possível localizar sequer na coleção da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Esse estado de coisas manteve o texto de Sérgio Buarque basicamente desconhecido do público brasileiro. Deve-se a Tania Regina de Luca a referência ao caso de Travel in Brazil e ao artigo do historiador. Em um estudo sobre a produção do DIP em instituições acadêmicas norte-americanas, a pesquisadora localizou, na biblioteca da Universidade de Tulane, em Luisiana, os sete primeiros números de Travel in Brazil, publicados entre o fim de 1941 e o começo de 1942.
Essa preciosa indicação permitiu a um dos autores do presente texto, à altura pesquisando o pensamento do autor de Raízes do Brasil na década de 1930, obter, na Universidade de Tulane, cópia de “Outlines of Brazilian History”. Desde logo ficou evidente a necessidade de resgatar o artigo, publicado logo após a viagem de Sérgio Buarque de Holanda aos Estados Unidos entre junho e agosto de 1941, a convite do Departamento de Estado e sob a égide da política de boa vizinhança de Franklin D. Roosevelt. O artigo é significativo por uma plêiade de razões, que procuraremos apontar na sequência. A iniciativa de republicá-lo teve pronta acolhida pela Inteligência, que agora traz a público o inédito “Linhas gerais da história brasileira”, do historiador paulista. Como o original, provavelmente escrito em português, não foi encontrado, vimo-nos obrigados a verter o texto do inglês. Procuramos ser fiéis à versão publicada em Travel in Brazil, ao mesmo tempo em que tentamos, na medida do possível, respeitar a cadência e as particularidades sintáticas da escrita de Sérgio Buarque de Holanda à época.
Os leitores encontrarão, aqui, alguns dos tópicos fundamentais que ocupariam o historiador em suas pesquisas nas décadas seguintes, e que já haviam sido desenhados em Raízes do Brasil, publicado em 1936. São eles: o caráter da exploração econômica na América portuguesa; as tensões entre os Estados nacionais europeus e seu reflexo no além-mar; o sempre debatido surgimento de um sentimento nacional nas guerras contra os “invasores”; a suposta “mão mais leve e tolerante” dos portugueses em relação à ação individual na colônia, quando comparada à matriz da colonização espanhola; o caráter precoce do Estado português e suas consequências para a expansão ultramarina; a interiorização a partir de São Paulo e a importância de uma “raça mestiça” de mamelucos; a diferença das entradas pelo sertão no Brasil e pelo interior dos Estados Unidos da América; a maior adaptabilidade do português à zona tropical, argumento caro a Gilberto Freyre em Casagrande & senzala; a escravidão africana vista como opção à escravidão indígena; o atraso das técnicas agrícolas desde o início da colonização; a estabilidade e prosperidade do Império sob o Segundo Reinado.
Muitas conexões podem ser estabelecidas entre essa rica tábua de matérias e a produção posterior de Sérgio Buarque. Em Monções, de 1945, Sérgio Buarque voltaria ao problema das entradas no sertão, agora sob a luz das singularidades da formação brasileira. Nos artigos que compõem Caminhos e Fronteiras, de 1957, a “conquista do oeste” no Brasil seria pensada pelo contraste com a noção de fronteira empregada por Frederick Jackson Turner para o caso norte-americano. Caminhos e Fronteiras também desenvolveria o tema da adaptação das técnicas agrícolas europeias ao solo sul-americano, já tangenciado no prefácio à edição brasileira de 1941 do livro Memórias de um colono no Brasil, de Thomas Davatz, traduzido pelo próprio Sérgio Buarque. Em Visão do Paraíso, de 1958, o historiador regressaria à questão da diferença entre as experiências ibéricas no Novo Mundo, desta vez na chave da oposição entre o realismo lusitano e o senso espanhol do maravilhoso. O tema do avanço político durante a monarquia, por sua vez, seria atenuado em Do Império à República, de 1973, que aponta a aliança entre progresso e regresso na sustentação do regime, inclusive por meio do elo entre a política e a escravidão.
O resgate de “Linhas gerais da história brasileira” se dá no momento de uma revisão crítica do grande clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, e não poderia ficar imune a ela. O ano de publicação do artigo em Travel n Brazil, 1941, está praticamente a meio caminho entre a primeira edição de Raízes, em 1936, e a segunda, em 1948. O significado das diferenças entre essas duas edições é objeto de vivas discussões entre os especialistas, uns identificando tendências progressistas do autor já no texto original de 1936, outros apontando o abandono de inclinações conservadoras por Sérgio Buarque na versão revisada de 1948. O ponto pacífico, contudo, é o reconhecimento da insatisfação de Sérgio Buarque com a primeira edição de Raízes do Brasil, escrito quando era professor na Universidade do Distrito Federal, cargo que ocuparia até que a instituição fosse extinta em 1939, já no Estado Novo, quando passaria a trabalhar no Instituto Nacional do Livro, subordinado ao Ministério da Educação e Saúde, de Gustavo Capanema. De modo geral, a crítica especializada reconhece o empenho de Sérgio Buarque em fazer com que a segunda edição de Raízes do Brasil refletisse, doze anos após a primeira, a sua visão atual, passado o Estado Novo, terminada a Segunda Guerra e com o historiador já de volta à sua cidade natal, onde se instalara em 1946 no cargo de diretor do Museu Paulista. Em suma, é possível conceber “Linhas gerais da história brasileira” como um importante testemunho de um pensamento em evolução.
Travel in Brazil era uma revista de divulgação, editada pela máquina de propaganda do Estado Novo, mas “Linhas gerais da história brasileira” escapa a um enquadramento simplista. É certo que há, no artigo, pontos de contato entre a agenda historiográfica de Sérgio Buarque e o imaginário político oficial. Note-se, por exemplo, as menções à interiorização baseada em São Paulo e à “raça mestiça” dos mamelucos, que ecoavam, inadvertidamente ou não, a apologia dos bandeirantes, então promovida ao nível escolar. Entretanto, como mencionamos antes, o artigo é atravessado por tópicos que já estavam em Raízes do Brasil, o que lhe confere um tom antes autoral que oficialista. Tem-se a sensação de que se trata de uma súmula daquele livro, ou mesmo de uma redução brutal do pensamento do autor a um pequeno texto esquemático.
Tal pensamento, como se sabe, era carregado de ambiguidades. A primeira edição de Raízes do Brasil revelava o exímio ensaísta, que oscilava entre a defesa dos méritos da tradição cordial e o reconhecimento do imperativo de uma civilidade moderna. Definir qual fosse, naquela quadra, a mensagem política do livro ainda é uma questão em aberto. Em trabalhos individuais, temos explorado hipóteses distintas, que apontam seja para a existência de uma matriz antiautoritária já no primeiro Raízes do Brasil, seja para certa identificação do livro coma linhagem estatista do pensamento político da época. Essa encruzilhada das ambiguidades políticas de Sérgio Buarque em 1936 tem interesse porque, cinco anos mais tarde, em “Linhas gerais da história brasileira”, o autor parece também negociar entre um tom otimista sobre a aventura civilizacional brasileira e a abordagem bastante mais crítica que caracterizaria vários de seus escritos posteriores.
Gostaríamos de chamar a atenção para três casos dessa natureza no artigo de 1941. O primeiro é como Sérgio Buarque parece redimensionar a chave heroica do discurso oficial sobre a história brasileira. A “descoberta” do Brasil, parte do discurso mítico sobre a formação nacional, é logo de início colocada entre aspas, e explicada como peça central na estratégia diplomática que reforçava o direito português à colonização da terra sul-americana, na complexa geopolítica do Novo Mundo. Outro caso ocorre no penúltimo parágrafo do texto, quando a comparação com os Estados Unidos serve de mote para uma afirmação um tanto impaciente sobre o ritmo “vagaroso” do desenvolvimento econômico brasileiro. Na verdade, como sentencia a frase seguinte, é nada menos que a “nossa vida nacional” que fica sujeita, em “importantes dimensões”, a uma aflitiva “lentidão”. O trecho como que adverte o leitor contra conclusões fáceis, e até certo ponto prefigura o tom com que Sérgio Buarque falará da necessidade de modernização na edição revista de Raízes do Brasil. Aqui, aliás, encontra-se um ponto sensível na argumentação do autor, que nos últimos anos tem recebido uma estridente crítica ao que seria seu entusiasmo, supostamente acrítico, com tal modernização.
O último caso da negociação que sugerimos acima aparece nas duas frases finais do artigo. O autor volta a um tópico recorrente desde seus escritos de juventude: as virtudes do regime monárquico. Nos reinados de D. Pedro I e D. Pedro II,diz, está “o segredo de nossa admirável unidade nacional”. Não há registro de como a estabilidade política foi construída placidamente sobre a escravidão, nexo que um Joaquim Nabuco já havia reconhecido quase seis décadas antes. Na frase seguinte está a referência ao Brasil como “um dos dois ou três maiores impérios do mundo”. O leitor notará como o tom em geral sóbrio de Sérgio Buarque parece vacilar, aqui, para contrabalançar a impaciência exibida no parágrafo anterior com o atraso do país e concluir o artigo em uma nota nacional altissonante.
Este é, em suma, mais um documento interessante na arqueologia de um pensamento inquieto, que pretendeu abarcar a experiência histórica a partir de temas pontuais e eixos de compreensão que dialogam com os grandes problemas do século XX no Brasil e no mundo. Resta agora aos leitores avaliar o que tem diante de si, lembrando que, mais que em outros casos, trata-se de um texto de caráter eminentemente didático, tendo em vista um público de língua inglesa, que deveria, por razões que o historiador enfrenta com as armas que tem à mão, interessar-se pelo Brasil a ponto de deixar o seu país, por um momento que fosse.
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