As fake análises sobre a concentração de renda no Brasil, por Luis Nassif

Esse tipo de postura - que se vê também na esquerda - é a principal responsável, em termos globais, pela desmoralização do pretenso conhecimento técnico dos economistas e seu combate pelos conceitos terraplanistas.

Pedro Fernando Nery é um jovem e promissor economista que tem se destacado por estudos e análises de cunho liberal. Assim como muitos outros economistas, o seu problema é a militância ideológica, que faz com que selecione indicadores de acordo com sua visão de mundo.

Esse tipo de postura – que se vê também na esquerda – é a principal responsável, em termos globais, pela desmoralização do pretenso conhecimento técnico dos economistas e seu combate pelos conceitos terraplanistas.

Analise seu último artigo no Estadão, “Fake Numbers e desigualdade”, no qual critica conclusões da Oxfam e do juiz que combateu a “merdocracia neoliberal e neofascista”.  Segundo ele, são conceitos que ”levam a diagnósticos errados e prescrições que isentam certas elites”.

Vamos a uma análise do artigo.

“(…) Não é que o problema não exista: o combate à desigualdade foi apresentado pelo próprio Estado como o principal valor a ser reafirmado na República. É que os fake numbers da desigualdade levam a diagnósticos errados e a prescrições que isentam certas elites.

(…) Entre os países com dados, o Brasil perde apenas para o Qatar quanto à parcela da renda concentrada pelo 1% mais rico (28%). O dado repercutiu ano passado – mas é relativo a 2015.

(…) Nessa série, a parcela subiu de 25% em FHC a quase 30% no fim de Lula. Uma desigualdade tão alta e tão persistente mesmo em governos em tese comprometidos com sua redução dá ensejo a políticas mais agressivas para tornar tributos e gastos mais progressivos. Essa prescrição não cabe se a culpa é do “golpe” e se o País não era campeão de desigualdade antes“.

Tem toda razão, mas passa ao largo da análise política dominante hoje em dia: a concentração de renda pós anos 70 foi tão violenta que gerou um poder político inédito do grande capital que, na prática, inviabiliza qualquer tentativa de redução da deisguldade por instrumentos fiscais e monetários. No Brasil, esse descompasso foi enormemente potencializado pela falta de vontade política dos governos do PT de encarar o conflito.

Mas a intenção de Nery é desviar o foco da análise. Criticando a gestão do PT, ele não precisa se debruçar sobre a nova legislação trabalhista e a informalização do trabalho, e a Lei do Teto sobre gastos públicos essenciais, e seus efeitos sobre a concentração de renda.

“Fala-se ainda que trilhões dos impostos vão para os rentistas por meio de juros da dívida, citando entidade notória por disseminar fake news. Com déficits primários desde 2014, não há que se falar em impostos indo cobrir a dívida. É o oposto: o mercado financeiro cobre os pagamentos e também as despesas primárias que o governo não tem dinheiro para pagar (como Previdência)”.

Um sofisma primário. Primeiro, por tratar a cobertura do déficit primário do governo pela dívida pública como transferência do setor financeiro para o público. Como assim? Esses títulos continuam sendo remunerados a taxas muito acima das taxas internacionais e com compromisso de resgate por parte do governo. Tanto assim, que a dívida pública não entrou na Lei do Teto. É a mesma coisa que tratar o financiamento bancário como uma transferência de recursos dos bancos a seus clientes.

“Medidas como o teto de gastos e a reforma da Previdência reduzem as transferências de juros, ao diminuir o risco da dívida e o preço para financiá-la (os juros)”.

O Banco Central e o Tesouro, como maiores tomadores do mercado, jamais encontraram dificuldades para colocar papéis. As taxas de juros – conforme inúmeras explicações do Banco Central – sempre tiveram como parâmetro central a inflação. E não há nenhuma certeza científica de que a inflação fosse resultante de descontrole das contas públicas. Tanto assim, que o principal efeito dos juros sobre a inflação consistia na apreciação do câmbio, por efeito justamente do diferencial de juros interno e externo. O controle da inflação, agora, decorre de uma política continuada que legou 12 milhões de desempregados.

“Desde o “golpe”, portanto, a conta dos juros caiu significativamente. O melhor ano para os rentistas da dívida foi 2015: e 2020 pode ser o pior desde que Lula assumiu (em % do PIB)”.

Claro! Um choque de câmbio, tarifas e juros, e um trancamento no crédito, devido à política de Joaquim Levy amplamente avalizada pelo mercado.

“O espantalho dos juros da dívida pública tira atenção do problema dos spreads. Ele decorre da regulação bancária, atacada nos anos recentes pelo Banco Central, e da falta de competição, ainda pouco discutida.

(…) Se a desigualdade no Brasil é problema de um punhado de bilionários, estão isentas elites que não gostam de se ver como tal – como o funcionalismo, os profissionais liberais subtributados, até os ultrarricos viciados em crédito subsidiado ou proteção tarifária”.

O argumento é tipicamente ideológico. É só inverter a lógica: se o problema do Brasil é um punhado de profissionais liberais e ultrarricos viciados em crédito subsidiado, estão isentos os bilionários que vivem dos ganhos em cima do Tesouro Nacional.

“(…) Por exemplo, os resultados da Oxfam são rotineiramente disseminados por associações como a de auditores. Elas estão na linha de frente contra medidas progressivas nas reformas da Previdência, administrativa ou no teto de gastos, e têm muitos de seus associados no 1% mais rico. Já uma milionária youtuber compartilhou os resultados e propôs “hackear” o sistema, direcionando sua raiva contra os tais bilionários. Do servidor de elite à milionária, desigualdade acaba sendo os privilégios dos outros. Chega de fake numbers: a desigualdade é um problema grande demais para não ser problema de ninguém.

Tem razão. A questão exige uma abordagem sistêmica e cientificamente honesta, que não tire da reta nem bilionários nem a elite do funcionalismo público e os profissionais liberais. Em seu artigo Nery incorre no fenômeno típico da concentração de argumentos: uma frase curta para admitir que bilionários fazem parte do fenômeno da concentração de renda; e um artigo inteiro para desqualificar os instrumentos de concentração de renda dos bilionários.

Luis Nassif

11 Comentários

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  1. O truque é sempre o mesmo, esconder que as despesas com juros e rolagem da dívida são…DESPESA. Gostam de dar exemplos das “familias” (que não podem emitir moeda). Ainda assim, qualquer um que já caiu no cheque especial sabe muito bem o que é despesa.

    Fala-se tanto em “levar para a administração publica princípios da administração privada”…Ora, em qualquer organização privada a primeira medida saneadora é SEMPRE atacar o principal item de despesa. Aqui, a ideologia — no sentido purinho do conceito, ou seja, falsa consciência — leva a ocultarem a despesa financeira, que representa metade das despesas totais da União, e culparem a Previdência, que significa o básico do pacto e da integração social.

    E ainda propõem um ajuste que pega principalmente quem ganha entre mil e dois mil reais….

  2. O que não fazem para proteger o rentismo ………..transformam o preto no branco e vicee versa…..jessuiiiiisss….e ainda citam uma elite inexistente que é essa do funcionalismo …..em que poucos ganham realmente bem, e mesmo destes, quantos viveriam independentes de seu salário???? Poucos, pois no fundo são assalariados também, aliás, TODOS, os bem ou mal remunerados, com os devidos impostos descontados em folha…. diferentemente dos banqueiros e seus bilhões de lucro…..
    Um detalhe que intriga, ninguém vai fundo na análise da tal pec do gasto…..se o governo não gasta, para onde vai o dinheiro? Evapora? Dois anos dessa trolha e ninguém se interessa em saber mais detalhes….. estranho….

  3. Ele disse que o país não paga juros?! A velha mentira de que só se pagam juros se houver superávit primário. Na votação do orçamento já se garante o desvio para pagar juros.
    Então os dados do BC no sistema Siga Brasil são mentirosos?
    Lá está claro que foram pagos em 2019, R$ 561 bilhões em juros, mais R$ 479 bilhões foram tomados emprestados para pagar o restante de despesas com a dívida.
    Sujeitinho mentiroso!

  4. Luiz Gonzaga Belluzo na Carta Capital:
    “O mercado de ações bate recordes, mas a classe trabalhadora prossegue na dura batalha pela sobrevivência. Joseph Stiglitz reconheceu que a declaração em prol do bem-estar das demais partes interessadas – trabalhadores, fornecedores, clientes – repercute um mal-estar com os desequilíbrios de poder e desigualdade na distribuição de renda. Assinado na mencionada reunião do ano passado por praticamente todos os parrudos integrantes da Mesa-Redonda, o mea-culpa causou grande agitação nos mercados. Desconfiado, o economista recomendou cautela diante das boas intenções dos executivos. “Teremos que esperar para ver se a declaração recente da American Business Roundtable a respeito da governança corporativa com base na primazia dos acionistas é para valer ou meramente um golpe publicitário. Se os CEO mais poderosos da América realmente acreditam no que dizem, apoiarão reformas legislativas abrangentes.”
    Nos Estados Unidos, entrou em voga nos anos 80 a “economia da oferta” e sua filha dileta, a curva de Laffer, que preconizavam a redução de impostos para os ricos “poupadores” e empresas. Os adeptos da supply side economics decretaram a ineficácia dos sistemas de tributação progressiva da renda, que, segundo eles, promoviam o desincentivo à produção e à poupança geradora de novo investimento. A macroeconomia de Ronald Reagan defendia a tese do “gotejamento”: as camadas trabalhadoras e os governos receberiam os benefícios da riqueza acumulada livremente pelos abonados empreendedores sob a forma de salários crescentes e aumento das receitas fiscais.
    A enrolação do gotejamento não entregou o prometido. A migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, a desregulamentação financeira e a prodigalidade de isenções e favores fiscais para as empresas e para as camadas endinheiradas não promoveram a esperada elevação da taxa de investimento e, ao mesmo tempo, produziram a estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, a persistência dos déficits orçamentários e o crescimento do endividamento público e privado.”
    https://www.cartacapital.com.br/mundo/o-sonho-americano-sucumbe-diante-da-destruicao-do-valor-do-trabalho/

  5. Caro Nassif, referenciei seu artigo no twitter do Sr. Pedro Nery, ele deu algumas respostas e ao meu ver gostou da conversa. Se puder de uma olhada. Espero que um dia possam debater melhor o assunto em um artigo. Acho enriquecedor o posicionamento de ambos. Abraços.

  6. Apesar de ser uma verdade que grita, nossos economistas liberais fazem ouvidos moucos e os oligopólios da imprensa escamoteiam: No orçamento aprovado pelo congresso em 2019 para ser executado em 2020, 45% de tudo o que é arrecadado pelo governo federal está sendo destinado ao pagamento dos juros + amortização da dívida pública brasileira, aquela que nunca foi auditada como manda a constituição (o STF também ensurdeceu ao longo dos últimos 32 anos). Esse valor é praticamente igual ao de todas as despesas do governo (salários, saúde, previdência, educação, segurança, investimentos…) JUNTAS.

  7. Prezado Nassif, você sabe muito bem que hoje no Brasil os três grandes jornais nada mais são do que panfletos do Sistema Financeiro. Portanto, não é de se estranhar a publicação pelo Estadão de análises como a deste senhor. Não podemos esquecer que no segundo turno, este mesmo jornal dizia que a opção entre Bozo e Haddad seria uma “Escolha Difícil”.

  8. “uma frase curta para admitir que bilionários fazem parte do fenômeno da concentração de renda; e um artigo inteiro para desqualificar os instrumentos de concentração de renda dos bilionários.”
    Imagino, mesmo não sendo da área, que o uso da tática de distorcer e alterar sentidos e interpretações, com a adoção de floreios técnicos, que em certo ponto são quase convincentes, é como se fosse uma espécie de algoritmo de raciocínio que era usado moderadamente e principalmente, quando se pretendia distorcer a origem da culpa ou da causa a ser protegida. Acredito que por ser prático, de bom efeito e com certa facilidade para confundir e enganar , esse algoritmo está sendo tão distorcido para outras emergências elitistas, que tão comum e usual ganhou o status de Fake News e/ou conversa pra boi dormir.

  9. Se a tabela do imposto de renda fosse atualizada 10milhões não pagariam imposto de renda.
    Se não é a solução, pelo menos já ajudava 10milhões.

  10. A seleção da amostra, estatisticamente falando, é a coisa mais importante NUM ESTUDO HONESTO.
    Selecionar uma amostra pelo simples termo ELITE é pra lá de desonesto, e é, sim, uma falha de caráter imperdoável para qualquer pesquisador, até mesmo os menos sérios.
    Para ilustrar com uma figura de linguagem bizarra um bilhão nada mais são, já se referem assim nossos descobridores no seu português mais que perfeito, MIL MILHÕES.
    Qual funcionário público tem MIL MILHÕES?

  11. A seleção da amostra, estatisticamente falando, é a coisa mais importante NUM ESTUDO HONESTO.
    Selecionar uma amostra pelo simples termo ELITE é pra lá de desonesto, e é, sim, uma falha de caráter imperdoável para qualquer pesquisador, até mesmo os menos sérios.
    Para ilustrar com uma figura de linguagem bizarra um bilhão nada mais são, já se referem assim nossos descobridores no seu português mais que perfeito, MIL MILHÕES.
    Qual funcionário público tem MIL MILHÕES?

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