Blasé tropical [DIálogos com a dança]

O olhar estrangeiro sobre nós nos permite desenxergar muitas coisas que nos soavam tão naturais que sequer necessitavam ser vistas. Esse olhar pode ser ao ir para o exterior, se pôr em contato com uma outra realidade (dentro do próprio país), ou quando o estrangeiro (ou migrante) vem até nós e se surpreende com aquilo que nos é óbvio. A questão é o quanto estamos abertos (ou seria aptos?) para ir além do familiar, sem preconceitos e sem temores paralisantes. Frantz Fanon só é Frantz Fanon porque soube se desenxergar e se enxergar de outros modos – ou então seria apenas outro zé ninguém na Martinica, arrotando prepotência para outros zé ninguéns tão negros quanto ele, mas mais zé ninguéns porque não moraram na França nem falavam o francês “correto”. Soube – de modo fenológico, arrisco dizer – aceitar a forma como era visto na França como a verdade, não a verdade absoluta, mas a verdade dessa visão – parcial, preconceituosa, rebaixadora, formadora das verdade das elites da Martinica e da França. E se deu conta que ser capitão do mato poderia lhe dar alguns privilégios, sem o salvar, porém, de ser um dos condenados da Terra – o colonialismo europeu, sempre presente, é como a hospedagem de Polifemo com Odisseu: daria a Fanon o privilégio de ser comido por último. E como Odisseu, Fanon soube que se assumir um ninguém, um zé ninguém, era a chance de salvação de todos os que estavam na mesma condição.

Escrevo isso pensando em amigos, conhecidos e desconhecidos que foram para o exterior e voltaram tal qual foram – ou sequer voltaram, mas seguiram os mesmos. Visitar os pontos turísticos consagrados pelo roteiro da circulação de pessoas é bonito, interessante – eu mesmo gosto -, porém nada, muito pouco acrescenta – uma professora (suíça) do mestrado dizia que se era para viajar só para ver os locais consagrados, melhor, fotografar ponto turístico melhor ir numa livraria de São Paulo, mesmo, e comprar um postal, sai mais barato e dá na mesma. Amiga que mora no Canadá comenta que recebe seguidamente da comunidade brasileira abaixo-assinados contra o aborto, o casamento homoafetivo e outros avanços legais canadenses. Não se trata de defender um adesismo cego, porém, se ser chauvinista já não é bom, quando se mantém essa mentalidade morando no exterior, só mostra a incapacidade de qualquer reflexão, para além da dos espelhos bem polidos (e vale para os que aderem ao chauvinismo local, como um (ex) amigo que foi morar nos EUA e não cansa de louvar a terra da liberdade, onde só há pontos positivos – tirando os mexicanos e os árabes). Como cantam os Racionais Mc’s em “Negro Dama”: não dá para tirar a favela de dentro de quem nasceu nela: saber assumir sua origem, trazer suas referências consigo, entretanto aberto ao que surge de novo. Não é destino, mas é parte da história.

Na verdade, ao começar a escrever, pensava mesmo em exemplos menos drásticos, criticar meus colegas de fração de classe, homens e mulheres na faixa dos trinta, quarenta anos, universitários, mestres, doutores, brancos, de esquerda, descolados, cosmopolitas com toques nacionalistas (anos-luz do patriotismo chulo de um Galvão Bueno), que geralmente passaram uma temporada no exterior – de alguns meses, ao menos. Como parte do discurso de valorização do Brasil, não raro gostam de samba, sabem até a letra de alguns famosos, como “Trem das onze” (ultimamente alguns até ousam um funk ou afim, depois que parte dessa cultura foi valorizada por teses universitárias), mas também não dispensam um rock alternativo internacional – se hoje odeiam hypster é porque não podem se assumir, pois pegaria mal a eles, antigamente emos ou indies, dançar de moda em moda, deixando evidente sua preocupação em estar up to date, na ausência de algo mais sólido com o que conseguiriam se apresentar. Em meio a estes meus amigos, é comum os que mantém uma pose blasé: aquele que quer fazer o estilinho intelectual ou artista parisiense desolado do pós guerra, o entediado com cara de bunda, o “descolado descolado” – a pessoa especial que não tem lugar nestes Tristes Trópicos. Admito que blasés são dos que mais me cansam – acho só perdem pros indies ressentidos que odeiam hypsters.

Todo essa conversinha de cerca lourenço acima por conta de dois espetáculos de dança a que assisti recentemente. Um deles foi este fim de semana, “O que ainda guardo”, da Quasar Cia. de Dança, de Goiânia. Uma hora de dança embalada por bossa nova. O espetáculo é bom, bonito, divertido de um humor sutil (como no rapaz guache (para usar um termo franco-drummondiano) que ensaia se aproximar da mulher que se insinua ao som de “Só danço samba”), com uma leveza gostosa (como em “O Pato”); porém me fez lembrar que, ainda que eu goste de bossa nova, não aguento muito: dá sono. Sambas do sono. Sambas brancos, classe média, jazzísticos: a retomada antropofágica de Oswald de Andrade ao ethos (ou seria ao pathos?) das elites nos anos sessenta. E qual seria esse ethos ou pathos?

Quem me deu a deixa foi a companhia francesa Cie. DCA Philippe Decouflé, que apresentou em São Paulo, no final de agosto, a ótima e divertidíssima “Nouvelles Pièces Courtes”. Não sei se é o original, ou foi adaptado para o Brasil, porém no ato anterior aos bailarinos embarcarem para o Japão oitentista, com seu consumismo bizarro e sua programação televisiva bizonha, a cena do aeroporto tocando bossa nova, num clima sessentista e blasé, me fez entender que é isso – esse som que orna com certa cara de bunda e tédio enquanto se toma água de coco e fuma um cigarro em Ipanema – que tanto me cansa: seu “blasésismo”, mesmo que abrasileirado. Se acaso foi adaptado para a apresentação aqui, a junção entre bossa nova e o estilo blasé foi de uma harmonia perfeita: aquele samba contido, de bons modos, voz e violão, para não incomodar os vizinhos do andar de baixo em algum edifício da Avenida Vieira Souto, o chique cosmopolita tentando fugir do tédio com uma versão para gringo ouvir do samba que se faz no morro. Som brasileiro-cosmopolita de altíssima qualidade adaptado para harmonizar com não-lugares – no caso de “Nouvelles Pièces Courtes”, o aeroporto. Um blasé tropical, mais leve, mais solto, e com uma pitada de melancolia para quem a vida não tem prestações a pagar nem faz sentido.

Fecho este texto retomando o que havia falado antes, o complexo de vira latas tupiniquim: meus amigos da minha fração de classe, ilustrados e de esquerda, vividos em Paris, Berlim, Londres, Barcelona e alhures, cosmopolitas – como bons cidadãos globais -, porém admiradores do samba – como bons brasileiros -, apreciadores das artes e dos pensadores mais refinados, na sua pretensão de artistas ou intelectuais, mesmo que apenas entre seus pares (já que fazer sucesso é difícil), seguem tendo Europa e EUA como único norte: que não seja para ser um blasé, mas para se referir a esse estilo, nossa referência é sempre a França de Truffaut, Godard, Sartre, Camus e Piaf, os cafés, os cachecóis, os óculos de aro grosso (e isso não é uma dedução minha, era explícito em nossas conversas). Talvez porque para nós o Brasil, esta terra quente e tropical, de gente extrovertida e espontânea, do samba-caipirinha-futebol (que negamos e acusamos de simplista sempre que ouvimos tal definição que, no fundo, seguimos), não orna com os altos esforços intelectuais, com a reflexão profunda sobre o ser, com o tédio, com a melancolia. Neste ponto, parece que com o dueto ditadura militar e pacto democrático de 88, o Brasil dos grandes centros, da “alta cultura” e da “alta intelectualidade” andou para trás, e sequer consegue ser antropofágico, preferindo o mimetismo simples e acrítico (ou com apenas um verniz de crítica superficial).

 

23 de setembro de 2018

 

PS: sim, vejo uma base muito próxima no estar no mundo entre a intelectualidade universitária de esquerda e o fascismo que hoje ocupa boa parte da nossa discussão política.

 

Redação

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