Com 80 músicas para gravar, Luiz Carlos Borges retoma vida artística

Com mais de 400 músicas gravadas, Luiz Carlos Borges recebe de direitos de reprodução um terço do que ganhava há 10 anos. Sem estresse, vai à luta em estúdios e palcos

do Jornal do Comércio 

Com 80 músicas para gravar, Luiz Carlos Borges retoma vida artística

por Geraldo Hasse*, especial para o JC

Voltando de uma viagem a trabalho a Campo Grande, em junho passado, o músico Luiz Carlos Borges sentiu-se mal na estrada e alertou os companheiros de viagem: estava tonto, com falta de ar e dor nas costas – era o coração batendo pino!

Parar na primeira cidade e procurar um médico? Nem pensar: melhor ligar para a Santa Casa de Porto Alegre, onde ele havia sido operado 15 anos atrás. A resposta dos cardiologistas aumentou o suspense: “Estamos te esperando, mas precisas chegar vivo”. Feitas as contas da quilometragem a percorrer, os artistas da comitiva “se vieram” em carreira louca para entregar o astro à equipe chefiada por Fernando Lucchese.

Borges passou o inverno de 2019 no Hospital São Francisco. Dos 85 dias de internação, foram 70 na UTI, sem poder receber visita de amigos e familiares. Durante o reparo da aorta, peito aberto, o coração do gaiteiro parou; as contrações voltaram graças a massagens feitas pela médica Marcela da Cunha Sales, que trabalhava ao lado do dr. Paulo Ernesto Leães.

Salvo pela segunda vez de uma crise aguda de aneurisma, o artista voltou para casa em setembro com 10 quilos a menos, “o que foi muito bom”, diz ele, afagando a barriga, e começou a fazer fisioterapia para recuperar a massa muscular e a sensibilidade do braço esquerdo, afetado pela cirurgia. Por isso ficou difícil usar a gaita e o violão, seus instrumentos de trabalho. Menos mal que sobrou a garganta privilegiada de seresteiro.

Já premeditando voltar à lida artística em março de 2020, Borges recebeu a visita do produtor Ayrton ‘Patineti’ dos Anjos às vésperas do 7º Encontro da Música Popular Gaúcha, marcado para a noite de 5 de novembro, no Auditório Araújo Vianna. “Vi que a voz dele estava boa, então banquei o convite para cantar uma música no Encontro”, disse ‘Patineti’, que gravou o primeiro disco brasileiro de Borges há quase 50 anos.

Numa espécie de ressurreição, Borges foi dos mais aplaudidos da noite ao cantar Romance na tafona, música sua com letra de Antonio Carlos Machado (1935-1997), segunda colocada na 10ª Califórnia da Canção Nativa (1980), vencida por Veterano, de Antonio Augusto Ferreira e Ewerton Ferreira, que imortalizaram nessa canção o refrão “Sou bagual que não se entrega/ assim no mais”. O episódio emocionante foi resumido de forma singela pelo produtor: “Ele entrou devagarinho, cantou como sempre e saiu de mansinho”.

Para Luiz Carlos Borges, cantar e respirar são quase a mesma coisa. Nessa batida, a volta ao trabalho é fundamental, não só pela compulsão artística, mas porque, desde que “a internet matou o disco” (frase de Ayrton ‘Patineti’), não lhe é mais possível viver somente de direitos autorais.

Com mais de 400 músicas gravadas, ele recebe de direitos de reprodução um terço do que ganhava há 10 anos. Sem estresse, vai à luta em estúdios e palcos. Tem 80 músicas (inéditas) com arranjos prontos para gravar.

Em sua visão, o tempo festivo dos festivais já passou. No entanto, aquela Califórnia da Canção de 1979 foi um divisor de águas em sua carreira, quando concorreu com a memorável Tropa de osso. Uma das marcas desses eventos simultaneamente festivos e competitivos era a confraternização dos músicos, muitos deles acampados em barracas de lona nos arredores das cidades.

Desde o encontro de 1979, Borges ficou muito amigo de Telmo de Lima Freitas – a quem chama de guru. Depois desse grande episódio, o gaiteiro teve sua figura ligada a muitos festivais do Estado, inclusive, sendo o idealizador e criador do Musicanto Sul-Americano de Nativismo, de Santa Rosa.

Estilo inconfundível

Hoje com 66 anos, Luiz Carlos Borges tem trajetória identificada com a Região das Missões. | Foto: MARCOS NAGELSTEIN/JC

Nascido em março de 1953 em Santo Ângelo, Borges tinha 26 anos quando participou pela primeira vez da já famosa Califórnia de Uruguaiana, da qual só tomou conhecimento em meados dos anos 1970. Músico aprendiz em São Luiz Gonzaga e graduado em Santa Maria, desde os nove anos tocava gaita em bailes animados pelo conjunto musical da família, mas sempre buscou um caminho próprio, procurando mesclar a música regional sulina com o choro carioca e os ritmos peculiares do nordeste argentino.

Em julho de 1979, trabalhando como instrutor musical de hinos na Biblioteca Pública de Santa Maria, recebeu uma letra do advogado Humberto Zanatta (1948-2018), que o desafiou a criar uma melodia para concorrer na Califórnia de 1979. Somente às vésperas do prazo de inscrição (30 de outubro) ele terminou de compor Tropa de osso.

Na noite de 13 de dezembro, garantiu sua presença na final de domingo (e no disco do ano). No sábado, viajou para Ijuí, com o irmão Albino, para tocar em um baile. “Vai ser meu último baile”, avisou. No domingo, cansado, com a voz rebaixada pelas noites mal dormidas, defendeu a milonga cujo refrão já estava na boca do povo: “Tropa de osso quem não teve quando piá/ Ou não foi piá ou não viveu como nós outros”.

Tocando violão e usando uma boina emprestada por Tau Golin (“Toma, isso vai te dar sorte”, disse o historiador), Borges ganhou a Calhandra de Prata, deixando escapar o ouro para Esquilador, mazurca de Telmo de Lima Freitas, um dos pilares do cancioneiro sulino.

A excepcional letra de Freitas (“Quando é tempo de tosquia/ já amanhece o dia com outro sabor”) fala da mecanização da esquila das ovelhas, mudança que levou muitos peões a migrar das fazendas para as cidades, onde descobrem “a ilusão povoeira”. Era uma canção com o viés crítico próprio do nativismo.

Enquanto cantava a letra de Zanatta (“Por algum estreito corredor feito esperança/ algumas vezes sou tropeiro, outras sou tropa”), Borges conta que “viu” o vulto fugidio de uma mulher deitada em uma cama – pressentimento confirmado horas depois, quando foi avisado do nascimento de Sibelle, sua segunda filha. Assim, o dia 15 de dezembro de 1979 se tornou um duplo marco na biografia do músico missioneiro, dali em diante presente em todas as antologias do nativismo, o movimento musical iniciado em 1971 em Uruguaiana e que deu origem a dezenas de festivais no território gaúcho.

Desde o encontro de 1979, os dois ganhadores ficaram amigos, tanto que, em 2018, Borges gravou 17 canções de Freitas no CD Jaguaretês, uma primorosa produção com a participação de vários músicos gaúchos. “Telmo é meu guru”, disse Borges ao Jornal do Comércio, sugerindo que ele represente, para o Rio Grande, o mesmo que Dorival Caymmi para a Bahia.

Além de admirações, Borges possui outras referências fundamentais: Canhoto, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Elomar Figueira de Mello e o argentino Raúl Barboza, entre outros. Foi assim, atento aos sons do Brasil e da vizinhança, que ele construiu seu estilo inconfundível.

Um gaiteiro de mãos plenas

Irmãos Borges (Luiz Carlos, Albino, Ernando, Irenita e Antônio), em São Luiz Gonzaga, em 1961. | Foto: ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC

O pai Vergilino Borges era carreteiro, rodava semanas transportando cargas entre cidades missioneiras não servidas por barcos ou trens, mas quando voltava para casa encontrava tempo para ensinar o caçula a digitar a gaitinha de oito baixos que levava em suas viagens. Assim começou a trajetória do gaiteiro Luiz Carlos Borges. Aos nove anos, foi autorizado a acompanhar os seis irmãos em bailes – não para dançar, mas para tocar como gente grande.

Adolescente em São Luiz Gonzaga, gostava de “fugir” para o outro lado do rio Uruguai. Via rádio, instruído pelo pai, tomara gosto pela sonoridade da música fronteiriça, especialmente o chamamé, chave de sua amizade com o acordeonista Raúl Barboza, que o levou para gravar em Buenos Aires (“Raulito” vive desde 1987 na França; em maio passado, tocou em Caxias do Sul). Nas andanças pelo interior argentino, Luizito compôs milongas e incorporou ao próprio repertório algumas canções alheias, como a clássica Mercedita (de Ramón Sixto Rios), perfeitamente adequada a seu timbre vocal de seresteiro.

Nas bailantas das cidades missioneiras, quando os puristas questionavam seus improvisos – “Naquele tempo, o chamamé era ‘proibido’ do lado de cá do rio”, lembra Borges -, ele se defendia dizendo que havia uma diferença sutil no seu modo de tocar: “O que eu toco é rancheirão!”. Mal sabiam os vigilantes da tradição que Borges também curtia músicos situados fora dos redutos da canção regional. Na época, os gaiteiros mais apreciados eram Pedro Raimundo e os irmãos Bertussi, grandes tocadores de rancheiras e de alguma milonga, um bugio ou um xote como Laranjeira, gravado por todos os gaiteiros sulinos.

Antes de completar 18 anos, Borges foi apontado como um prodígio pelo compositor Bruno Neher, líder do grupo Os Três Xirus. “Tu precisas gravar um gaiteiro lá de São Luiz, é um guri bom barbaridade”, disse ele ao produtor Ayrton “Patineti”, que não demorou a programar a soltar seu brado: “Eu gravo!”.

Acompanhado de dois irmãos, Albino e Antonio, o gaiteirinho chegou a Porto Alegre pilchado: alpargatas, bombacha, chapéu, camisa de mangas compridas e uma mala de garupa na qual carregava arroz e charque (para fazer carreteiro). Nos ensaios, rejeitou a sugestão de gravar solito, sem os irmãos.

Só mais tarde Patineti ficou sabendo que Los Hermanos Borges já haviam gravado dois LPs na Argentina. Foi somente após o sucesso na raia do nativismo que Borges aceitou iniciar a carreira solo. Tempos depois, Patineti descobriria que o cantor-gaiteiro de São Luiz carregava na matula uma faca não apenas para cortar charque, mas para fazer valer seus direitos autorais.

Agitador cultural

Em 1981, com Apparício Silva Rillo, durante triagem da Califórnia da Canção em Uruguaiana. | Foto: ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC

Com um pé no nativismo e outro no tradicionalismo, Luiz Carlos Borges sempre teve olhos e ouvidos atentos para as sonoridades de outras regiões. Quem o conhece afirma que, na realidade, por tocar dois instrumentos, ele possui uma dupla forma de expressão. Tocando violão, é um. Tocando gaita, é outro. Graças à sua técnica como instrumentista, mantém interfaces produtivas com músicos de vários estilos e origens.

Além de ser criador, instrumentista e arranjador, revelou-se um bom organizador de eventos, faceta que se revelou em 1981, quando se mudou de Santa Maria para São Borja, onde, por influência do poeta Apparicio Silva Rillo (1931-1995), assumiu um cargo como assessor cultural do prefeito Salvador Alvarez. Ficou apenas um ano na cidade, mas deixou sua marca ao organizar a festa dos 300 anos de São Borja, o mais antigo município das Missões.

De quebra, musicou 50 poemas de Rillo e assumiu o compromisso de vestir musicalmente Itinerário de Rosa, livro publicado em 1982 pelo amigo poeta. Tarefa terminada em 2008 com o lançamento, pela Acit, de um CD sobre uma das maiores figuras humanas da história são-borjense.

O passo seguinte foi em Santa Rosa, cujo prefeito, Erni Friederich, o nomeou secretário da Cultura, com a missão de criar um festival. Nasceu, assim, o Musicanto, festival que abriu definitivamente a porteira da música popular gaúcha para o chamamé e outros ritmos do continente, graças à presença de artistas de todo o Brasil e de diversos países. Foi num desses eventos que Borges concluiu que o cantor pernambucano Alceu Valença “é gaúcho”.

Depois de sete anos na capital nacional da soja, Borges aceitou o desafio de montar um festival em Foz do Iguaçu, um dos grandes destinos turísticos do Sul do Brasil, onde quase tudo é cotado em dólar. Promovido pelo CTG Charrua, o festival Acordes Cataratas só teve uma edição, pois foi arrancado do calendário e do orçamento fozense pelo prefeito eleito em 1990.

Com o dinheiro ganho na aventura paranaense, Borges comprou um sítio em Viamão, nos arredores de Porto Alegre, onde viveu até se divorciar. Fugindo do isolamento, mudou-se para a Capital, onde mora até hoje. Entre 2003 e 2006, a convite do então governador Germano Rigotto, foi presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, extinto em 2017 pelo ex-governador José Ivo Sartori.

Vida nova na Capital

Songbook biográfico lançado em 2016 teve coordenação da esposa, Andressa Camargo. | Foto: NATURA MUSICAL/DIVULGAÇÃO/JC

Acampado em Porto Alegre desde o final do século XX, Borges misturou talento, esforço e sorte para conquistar o lugar que ocupa na galeria dos artistas surgidos na esteira do nativismo. Em 1997, passou um mês em Havana ao lado de músicos de todo o mundo. Lá aprendeu a fumar charuto, instruído por Belchior. Na Expointer, em Esteio, atravessou vários invernos fazendo o fundo musical do concorrido restaurante do estande do Grupo Gerdau. “Era bom aquele lugar”, lembra ele.

Às vésperas de completar 50 anos, decidiu presentear-se com um plano de saúde. Comprou um Golden Cross sem prazo de carência. Pouco mais de um mês depois, baixou hospital com uma baita crise cardíaca. Um aneurisma foi corrigido com uma artéria artificial de oito centímetros de comprimento. Durante a cirurgia, ele afirma que sonhou com uma imagem feminina desconhecida.

Passados três anos, rodando o mundo com seu acordeon, foi convidado a tocar na festa de 15 anos de uma moça de São Luiz Gonzaga. A filha do Seu Camargo, cujo gaiteiro favorito era Adelar Bertussi, o rei da rancheira. Quando foi apresentado à moça, ele viu que correspondia à imagem do sonho. E falou: “Já te conheço”. E Andressa, que pedira a presença do gaiteiro como presente de aniversário, em um arroubo de fã: “Vou me casar contigo”.

Menos de um ano depois, os dois se casaram e vivem, agora, com o filho Gregório, de sete anos, em um apartamento de dois quartos em uma rua tranquila da Cidade Baixa. Ela o assessora na carreira e participa de projetos como o livro A alma atada na gaita (2016), que reúne fotos, histórias e partituras da obra de Borges. O texto histórico, com requintes literários, foi escrito por Vinicius Brum, ganhador de festivais e estudioso de música. Com 216 páginas, capa dura, o livro financiado pela Natura expressa a identificação do artista com o instrumento musical mais associado ao chamamé e à milonga.

Teclas x botões

O músico Kleiton Ramil considera Luiz Carlos Borges o maior gaiteiro do Sul. Maior do que Renato Borghetti? Sim, “outro gigante”, mas cada um com seu instrumento.

Ramil explica as diferenças. A gaita-ponto de Borghetti tem botões dos dois lados, enquanto o acordeon de Borges possui, para a mão direita, teclas.

Os dois são gaitas, funcionam com fole e têm estrutura interna semelhante, mas a sonoridade é distinta e a técnica de execução, bem diversa. “Cada um na sua raia, os dois são expoentes na música instrumental e têm em comum uma enorme simpatia e elegância no trato pessoal”, ressalva Kleiton, lembrando que nos anos 1980, quando a dupla Kleiton e Kledir se firmou, “Borges era sempre o primeiro nome lembrado, quando se precisava de um acordeon”. O gaiteiro participou de diversos discos do duo pelotense, que também deslanchou nos festivais nativistas.

Conexões nos festivais

Borges produziu o 1º Musicanto Sul Americano de Nativismo em Santa Rosa, em 1983. | Foto: ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC

Deflagrada em 1971 em Uruguaiana, a moda dos festivais tirou a música regional da mesmice, restrita então a figuras como Teixeirinha, Gildo de Freitas, José Mendes e os Irmãos Bertussi. Além de afastar-se do tradicionalismo cevado nos clubes de danças originários das pesquisas dos folcloristas Barbosa Lessa e Paixão Côrtes no final dos anos 1940, o nativismo criou conexões com alguns ramais da música brasileira como os de Almir Sater (MS) e Renato Teixeira (SP), que exploram a sonoridade identificada com a moda de viola.

A onda nativista foi tão forte que, nos anos 1980, a TV Bandeirantes tentou viabilizar nacionalmente os festivais rio-grandenses. Não rolou: prevaleceu o isolamento geográfico do Estado, à margem do mercado. Vários artistas sulinos tiveram de se submeter ao imperialismo cultural carioca.

Abriu a fila Radamés Gnatalli, seguido por Nelson Gonçalves e Lupicínio Rodrigues. Nos anos 1960, Elis Regina se mudou para o Rio. Depois da dupla Kleiton & Kledir, os últimos gaúchos a acampar no Centro do País foram Adriana Calcanhotto e Yamandu Costa. Alguns como Bebeto Alves, Jerônimo Jardim e Vitor Ramil foram e voltaram depois de algum tempo.

Apesar de sua abrangência social, o nativismo é um movimento pouco estudado. Embora a mídia a prestigie e festeje, a academia a despreza, não só por sua baixa extração cultural, mas por seu ranço conservador. Dos 22 ensaios de O alcance da canção (Arquipélago, 391 págs., 2016), organizado por Luís Augusto Fischer, apenas um, de Álvaro Santi, aborda o fenômeno aberto pela Califórnia.

Os artistas regionais, sejam tradicionalistas ou do círculo dissidente do nativismo, só extrapolaram do Sul para atender à demanda dos gaúchos que migraram para o Centro do País, onde há muitos CTGs. Nesse sentido, os festivais foram um manancial de revelações artísticas. No auge, nos anos 1980, o nativismo deu emprego, renda e visibilidade para dezenas de artistas, produtores e trabalhadores que rodavam de cidade em cidade, apresentando-se em exposições, ginásios e teatros.

A onda arrefeceu, mas não está extinta. Para Luiz Carlos Borges, o tempo festivo se foi. “O modelo está vencido, mas o nativismo está vivo”, diz ele, que mora hoje na Cidade Baixa – bairro boêmio da capital gaúcha.

Com quase meio século de existência, a Califórnia da Canção Nativa segue sendo uma referência para músicos de todo o Estado. Na edição de 2019, que acontece neste fim de semana em Uruguaiana, há uma maioria absoluta de “novos”, embora nem todos sejam exatamente jovens. É o caso de Érlon Péricles, sobrinho de Borges: com 48 anos de idade e 30 de carreira, ele encabeça a lista dos classificados com duas músicas.

CLASSIFICADOS PARA A 41ª CALIFÓRNIA DA CANÇÃO NATIVA – FASE GERAL

– Passo das carretas (Letra: Érlon Péricles | Música: Olgi Zauza Krejci)
– Milongas, ondas do mar (Letra: Paulo Righi | Música: Érlon Péricles)
– Sob os olhos do luar (Letra: Bianca Bergmam | Música: Igor Alexsânder Silveira Corrêa)
– A Dom Ivo Rodrigues (Letra: João Sampaio | Música: Mano Souza)
– Leilão de Aperos (Letra: Flávio Saldanha | Música: Nilton Ferreira)
– O anjo e o louco (Letra: Vaine Darde | Música: Lenin Nunes)
– Do chão batido dos galpões à infinitude das galáxias (Letra e Música: Piero Ereno)
– Milongão de Fronteira (Letra e Música: Márcio Manoel Borges)
– Vanerão pra Uruguaiana (Letra e Música: Roberto Carvalho de Souza)
– Norte mais ao Sul (Letra: Martim César | Música: Paulo Timm)
– Artes de Ubirajara (Letra: Silvio Aymone Genro | Música: Gilberto Schmidt da Silva)
– Querência morena (Letra: Tadeu Martins | Música: Lenin Nunes)
– Protagonistas (Letra e Música: Carlos Eduardo Nunes)
– Num fundo de campo (Letra: Didi Teixeira e Rafael Ferreira | Música: Mateus Neves da Fontoura)

FASE LOCAL

– Guria (Letra: Maxsoel Bastos de Freitas | Música: Jaime Ribeiro)
– Ode ao Guitarreiro (Letra e Música: Adão Quintana)
– Prosa de louco (Letra: Augusto Wawginiak e Luciano Bertoluzi | Música: Josemar Busanello)
– Na solidão da milonga (Letra e Música: Paulo Maldonado)
– Amigo antigo (Letra e Música: Luiz Felipe Delgado Brandolt)
– Jeitão de Fronteira (Letra: Valdir Quintana | Música: Fernando Carrazzoni)
– O Campeiro, a Califórnia e o Carnaval (Letra e Música: José Candido Vieira)
– Quando os remos batem na água (Letra e Música: Silvio Carvalho)
– A última travessia (Letra: Armando Vasques | Música: Valdir Santana)
– Ronda e solidão (Letra e Música: Paulo Maldonado)

A poética gaudéria

Desde que foi fixada por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, a música gauchesca – originária basicamente da Península Ibérica – tem servido principalmente como correia de transmissão do conservadorismo político. Cevados por verbas públicas e patrocínios privados, os adeptos mais fervorosos do tradicionalismo se pilcham para teatralizar uma igualdade social que nunca existiu nas fazendas ou nas cidades de ontem ou de hoje.

Dissidência do tradicionalismo, o nativismo ampliou e aprofundou seus temas, mas manteve o gaúcho campeiro no centro do universo. A maior parte de suas letras viaja por um mundo tríptico em que: 1) o cavalo é um escravo amigo, 2) a mulher, prenda cativa e 3) o trabalho, raro prazer para patrões e peões – ainda mais se o trabalhador for um solista: domador, ginete, esquilador, aramador, gaiteiro…

A cavalo ou a pé, o nativismo enriqueceu a música regional com letras ousadas, melodias ricas e arranjos criativos marcados pela presença de instrumentos esquecidos como o bombo leguero, que ressuscitou nas mãos d’Os Tapes e d’Os Angueras, dois excelentes conjuntos vocais mais voltados para a riqueza cultural indígena e a música folclórica rio-grandense. Nenhum dos dois grupos sobreviveu à voragem de uma enxurrada discográfica comercial, ansiosa por agradar os patrões de CTGs e de festas agropecuárias, nas quais muitos integrantes do Vozeirão Futebol Clube cantam a liberdade – de andar a cabresto dos poderosos.

Escapando da fanfarronice da maioria dos letristas campeiros do Rio Grande, algumas ovelhas negras cultivam um rebuscamento semântico sem igual na língua portuguesa. Em certas canções, brilham metáforas como “A estrela Dalva é uma espora que, sangrando a noite, acende a aurora e os braseiros do fogão” (Wilson Paim, em Lira da noite). Cavalgando no escuro, Jari Terres fala de “colear madrugada” e “cinchar um novo dia”.

Já o compositor uruguaianense Mauro Moraes escreveu em Assim no más: “Esporeei reminiscências/ com pesadas nazarenas”. E o gabrielense Adair de Freitas, que passou a maior da vida em Livramento, arrematou em seu De já hoje: “A mentira vem tropeando mil promessas/ que a verdade já cansou de cabrestear”.

No fundo, a maioria parece inspirar-se na verve inconfundível do payador Jayme Caetano Braun, que deixou versos como “O aço da minha faca/é primo-irmão da minha espora”. Sem dúvida, são exercícios poéticos que poderiam inspirar pesquisas em cursos de literatura.

*Geraldo Hasse é jornalista. Nascido em Cachoeira do Sul, formou-se em Pelotas. Escreveu uma dezena de livros sobre agricultura, economia, história e meio ambiente. É autor de biografia sobre o escritor e professor Darcy Azambuja.

Redação

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