Como é ser uma mulher catadora de materiais recicláveis em São Paulo, por Mariana Lima

Algumas atuam em cooperativas, outras puxam carroças para recolher os materiais recicláveis. Todas lidam com uma rotina dura para manter a casa, os filhos e a si mesmas

Elismaura é catadora há mais de 20 anos. | Foto: Mariana Lima/Observatório do 3º Setor

do Observatório do Terceiro Setor 

Como é ser uma mulher catadora de materiais recicláveis em São Paulo

Por Mariana Lima

Antes das 7 horas da manhã, a catadora Elismaura Pereira dos Santos, 45, já pode ser vista pelas ruas de São Paulo com sua carroça, recolhendo materiais pela cidade.

Há 21 anos, essa vem sendo a rotina de Maura, como é conhecida pelas pessoas na região da Vila Nova Conceição, bairro da Zona Sul de São Paulo.

Em uma volta no bairro, ela consegue encher sua carroça com metais, papelão e até lâmpadas. “Tem que colocar os maiores na parte de trás para sustentar o peso, a partir daí eu começo a encher com os outros. Depois é só puxar”, explica.

Quando retorna para casa, começa a separar os materiais em grandes sacos, ainda na calçada.

Enquanto realiza a separação, uma motorista para o carro perto de Maura, abaixa o vidro da janela do passageiro e a ofende.

“Você viu isso?! Acontece várias vezes. Só falam que a gente faz sujeira. Ninguém repara no esforço que a gente faz. Chovendo ou com o sol a pino, a pessoa tá lá catando reciclagem. Se o catador não recolher, quem vai? ”.

Aos 7 anos, Maura foi trazida da Bahia para São Paulo, a pedido da mãe, que ela mal conhecia. Não se adaptou à nova vida e começou a ter desentendimentos com a mãe, até que decidiu ir para as ruas.

“Eu me adaptei melhor na rua porque sabia que estava por conta própria. Vendi balas no farol, apanhei e fui chutada. Eu sou uma amostra viva de tudo, de tudo”.

Pouco depois de ir para a rua, começou a puxar carroça. Na primeira vez, quase se machucou ao descer uma ladeira, precisando jogar a carroça no meio-fio e pular para o outro lado.

“Com o tempo, fui aprendendo. Já tentei outros trabalhos, mas não me vejo mais fora da carroça, parece que a carroça virou um pedaço de mim, algo íntimo”.

Mãe de 7 filhos, Maura lembra que quase deu à luz uma de suas filhas na carroça, enquanto trabalhava.

“Foi em um sábado, nunca esqueço. Peguei a carga e levei até o ferro velho. Já estava enchendo a carroça de novo, quando comecei a entrar em trabalho de parto, mas cheguei a tempo no hospital”, conta aos risos.

Há tantos anos na profissão, Maura relata que são recorrentes as situações em que sofre humilhações e ofensas, principalmente no trânsito.

“Acho que a gente tinha que ser reconhecida, porque não é fácil levar a nossa carroça até o ferro velho. Eu fico olhando para o retrovisor do carro, para ver a reação do motorista quando vê que sou mulher. Eles sempre se assustam”.

É justamente pelo tamanho de sua carroça que muitas desavenças no trânsito começam.

“Já falei para uma moça que inventou de medir a minha carroça comparando com o carro dela, que a minha carroça é do tamanho da minha necessidade, da minha barriga”.

Maura se inspira em pessoas mais velhas que vê puxando carroça. “Tem uma senhora no ferro velho, e eu fico observando, pensando se vou conseguir puxar com a idade dela, porque daqui eu não saio”.

Maura vive com 6 de seus filhos em uma casa que eles ocupam há mais de 20 anos. Os mais velhos têm suas próprias carroças e trabalham juntos.

“Passei quase toda a minha infância aqui. Meus filhos nasceram e foram criados aqui. O pessoal nos conhece. Se for embora, vou me sentir como uma formiga fora do formigueiro”.

Elismaura realiza a separação dos materiais que recolhe na calçada de sua casa. Ela paga um valor para manter os materiais nesse espaço. | Foto: Mariana Lima/ Observatório do 3º Setor
Dados e Cooperativas

De acordo com uma estimativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), existem no país aproximadamente 800 mil catadores. Deste total, cerca de 70% seriam mulheres.

Já o estudo ‘Situação Social das Catadoras e dos Catadores de Material Reciclável e Reutilizável’, lançado pelo Ipea em 2013, aponta a existência de 338 mil catadores (as) pelo país, sendo eles responsáveis por 90% de todo o material reciclado no Brasil.

O estudo do Ipea ainda diz que os homens são a maioria destes profissionais, representando 68,9%, contra 31,1% de mulheres.

Francisca Araújo, 68, tornou-se catadora devido ao desemprego. Começou seu trabalho no lixão do Alvarenga, localizado na divisa entre São Bernardo do Campo e Diadema, na Grande São Paulo.

Morava em uma favela próxima ao lixão, começando no trabalho para conseguir alimentar os filhos. Quando não conseguia vagas na creche, deixava os filhos sob o cuidado de vizinhos para poder trabalhar.

Em 2001, após o fechamento do lixão, foi acolhida pela Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis Reluz, onde hoje atua como presidente.

“Quando eu entrei, comecei uma mudança na minha vida. Deixava meu filho na creche, ia trabalhar na cooperativa e depois ia para a escola à noite. Toda essa situação só me deixou mais forte”.

Francisca passou 12 anos como catadora independente no lixão, e há 19 anos atua na cooperativa.

“Para mim, é melhor. Na cooperativa, as coisas são mais formais e não preciso trabalhar na chuva ou ficar muito no sol sem proteção. Aqui [cooperativa] nosso trabalho é mais reconhecido”.

Ao relembrar seu trabalho no lixão do Alvarenga, Francisca reconhece muitas diferenças em relação à cooperativa.

“No lixão, as pessoas tinham nojo da gente, do nosso trabalho. A gente não era visto como cidadão. Quando eu fui para a cooperativa, a mudança foi bem grande, principalmente na minha autoestima”.

A vivência que teve a motivou a participar do Movimento Nacional dos Catadores, onde atua desde 2002 como representante estadual.

“Eu entrei para reivindicar os meus direitos, pois ser catador e catadora é muito difícil. Ainda tem muita discriminação, e as mulheres são os principais alvos”.

Arte: Mariana Lima/Observatório do 3º Setor

De acordo com Francisca, a maioria das mulheres catadoras está sozinha e precisa sustentar os filhos, como foi seu caso.

“As mulheres também são mais ativas no Movimento, porque são mais insistentes, não desistem de primeira. O respeito que temos hoje vem do fato de se ter mais conhecimento sobre os nossos direitos”.

Para ela, a mulher catadora é “uma vencedora. Nós somos a salvação do planeta. Estamos lá resolvendo um problema coletivo, e devemos ser valorizadas”.

Francisca afirma que ganha mais na cooperativa, mas aponta que não tinha um controle de quanto recebia no lixão.

“O que a gente ganhava lá já ia direto para as compras. Aqui na cooperativa varia também, pois depende de quanto material recebemos”.

Atualmente, Francisca vive em uma casa alugada com o marido e os filhos. Futuramente, pretende cursar uma faculdade, no entanto, não se vê deixando a profissão.

“Eu sou apaixonada pelo que faço, se não já teria deixado. Quero estudar, mas não seria capaz de deixar a reciclagem”.

A arte como ferramenta para a valorização

O movimento do coletivo Pimp My carroça surgiu em 2012, reunindo artistas voluntários para grafitar de forma gratuita as carroças de catadores pelo Brasil.

“O Pimp quer trazer um olhar diferente para as questões sociais através da arte. As frases e a pintura nas carroças atuam para devolver o respeito aos catadores, mostrar que eles existem”, explica Elissa Fichtler, responsável pela área de Inovação e Parcerias do Pimp My Carroça

Para Elissa, a transformação na carroça impacta no cotidiano dos catadores. “Com o telefone na carroça, eles conseguem divulgar o trabalho, e a arte na carroça traz um peso diferente do que teria se estivesse em um quadro”.

A aproximação com o catador é feita aos poucos, visando à construção de uma relação de confiança. Além disso, a arte e as informações na carroça são de escolha dele.

De acordo com Elissa, as mulheres ainda representam uma minoria quando se trata de puxar a carroça.

“A carroça em si ainda carrega uma imagem masculina. Se elas não estão nas cooperativas, elas recolhem com sacos. Além disso, elas tendem a receber menos pelo mesmo trabalho”.

O Pimp desenvolveu um aplicativo gratuito, o Cataki, para conectar os catadores a quem precisa dos seus serviços, aproximando esses dois lados e quebrando estereótipos. Nem sempre quem usa o app segue essa filosofia.

“As pessoas, às vezes, têm uma imagem muito destoada do catador. Elas precisam ter consciência que o catador é um prestador de serviço, e que não vai levar qualquer coisa, mas sim aquilo que ele poderá vender, que compensará para ele”.

Outra questão no aplicativo, em relação às mulheres catadoras, é o assédio. “No app, tivemos alguns casos de pessoas entrando em contato com as catadoras para assediá-las. Esses indivíduos são expulsos assim que elas nos informam, mas é inquietante perceber que nem nesse espaço elas estão seguras”, conta Elissa.

Maura faz parte das catadoras que utilizam o aplicativo Cataki. Ela também teve sua carroça pintada pelo projeto do Pimp My Carroça. O Pimp a encontrou após uma palestra que ela deu na escola dos filhos sobre reciclagem.

“Me perguntaram como eu queria a carroça, aí eu falei pra deixar as crianças escolherem. Quando eu recebi, coloquei as crianças na carroça e andei com elas pela quadra. Elas se divertiram muito”, relembra Maura, aos risos.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador