Como fugir da barbárie sem celulares e tablets em “À Espera dos Bárbaros”, por Wilson Ferreira

A mídia está para nós assim como o peixe está para a água. Mas a questão é: será que temos uma boa vida com as mídias, assim como os peixes na água?

por Wilson Ferreira

Um grupo de seis pessoas está com medo: souberam através das redes sociais que os bárbaros estão chegando. Eles batem à porta da casa de um casal de magos, pedindo para se esconder do perigo iminente. Mas os magos impõem uma condição: deixar seus celulares e tablets num cesto na entrada, para iniciarem uma viagem iniciática e mística no presente e para o passado. Sem wi-fi e Internet, o grupo sente-se nas trevas – como saberão do avanço dos bárbaros sem Internet? Esse é o filme francês “À Espera dos Bárbaros” (“En Attendant Les Barbares”, 2017), de Eugène Green, uma experiência ao mesmo tempo documental e ficcional sobre nossa condição em um mundo tecnológico: a mídia está para nós assim como o peixe está para a água. Sem nossos dispositivos tecnológicos nos sentimos fora d’água. Mas esta não seria a oportunidade de nos religar com o outro e com a realidade? Filme sugerido pelo nosso leitor Fernando Câmara.

A mídia está para nós assim como o peixe está para a água. Mas a questão é: será que temos uma boa vida com as mídias, assim como os peixes na água? Essa é a pergunta feita pelo pesquisador Mark Deuze em seu livro “Media Life” (Polity Press, 2012) a partir de uma prosaica constatação: não vivemos mais com as mídias, mas vivemos nas mídia – nossas relação com as mídias se tornaram onipresentes, universais, quase que codificando os nossos genes. “Gostemos ou não, todos os aspectos de nossas vidas têm lugar nos meios de comunicação”, afirma Deuze.

Há muito as mídias deixaram de ser apenas conteúdo: tornaram-se num ambiente, um mundo em permanente construção, um novo mundo que aparentemente nos dá liberdade, mas é uma liberdade contida no horizonte de eventos midiáticos.

A certa altura em “Media Life”, Deuze alerta para um “Apocalipse Zumbi” no qual perdemos as fronteiras entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo.

À Espera dos Bárbaros (En Attendant Les Barbares, 2017) do cineasta francês Eugène Green coloca em perspectiva essa crítica do “Media Life” de Mark Deuze sobre as nossas vidas cada vez mais mediadas por dispositivos tecnológicos. A tal ponto que os dispositivos se tornam a realidade, nossas próprias vidas. E, ao invés de extrairmos deles informações, tudo o que obtemos é medo, persecução e desorientação.

Paradoxalmente, Eugène Green vai discutir esse tema não através de uma linguagem contemporânea sci-fy, cyber alguma coisa, como um thriller contendo narrativas de ação com máquinas ou inteligências artificiais nos perseguindo e roubando nossas identidades.

Um mundo cheio de História

O filme vai abordar o tema da maneira mais tradicional, conservadora e histórica possível: primeiro, a narrativa nos transporta para Toulouse e seu magnífico patrimônio histórico, com imagens estáticas de lugares, obras de arte e arquitetura sacra. Um mundo cheio de História.

E segundo, parte do filme é falado em língua occitana (língua românica falada no sul da França surgida na Baixa Idade Média), num estilo teatral, quase sem cenografia, filmado em ambientes mal iluminados, e com muitos olhares dirigidos diretamente para a câmera, com atores recitando versos occitano-silábicos.

Inicialmente, Eugène Green foi convidado para filmar um workshop de atores. Mas ao invés de fazer um simples documentário, Green criou um projeto de filme. Selecionou doze de 35 candidatos presentes no workshop e escreveu o roteiro com uma pequena equipe composta por um diretor de fotografia, um engenheiro de som e um assistente.

O resultado foram 75 minutos de uma estória que, em muitos aspectos, lembra Esperando Godot, peça do teatro do absurdo de Samuel Beckett – homens e mulheres estão ali para se esconder da chegada dos “bárbaros”, uma ameaça indeterminada, vaga. Quem são eles? Os godos? Visigodos? Os hunos? Ou serão os norte-americanos? Eles podem vir de qualquer parte. E aquele grupo de homens e mulheres pedem ajuda para um casal de magos que iniciará o grupo em uma viagem iniciática.

O Filme

Uma noite, seis pessoas batem na porta da casa de um casal de magos. Estão preocupados com a “invasão dos bárbaros”, cuja chegada foi anunciada pelas redes sociais.

Os magos aceitam acolher aquele grupo, mas com uma condição: que depositem seus celulares, tablets e fones de ouvido numa cesta de vime na entrada. Mas como eles saberão dos avanços das hordas bárbaras sem um wi-fi e Internet?

Há um pequeno momento de dúvida e tensão naquele grupo. Mas acabam aceitando as condições diante da necessidade urgente de um refúgio.

Os magos conduzirão aquele grupo em uma espécie de viagem iniciática, dividida entre uma reflexão sobre o presente (quem é cada um deles, suas identidades e problemas) e depois sobre o passado. Percebemos que cada um daqueles personagens representam tipos-ideais da sociedade moderna: um típico casal de classe média (os “bobos”, como se referem) que tentam engravidar sem sucesso; um jovem que vive nas ruas, egresso de bairros periférico; um empresário que pensa em entrar na política; um jovem poeta celibatário às voltas em diálogos com um fantasma feminino com quem trava longos diálogos sobre vida e morte – na verdade o fantasma é a filha dos magos, morta aos 20 anos.

E uma artista plástica que se recusa a pincelar uma tela por considerar um ato violento que profana a pureza de uma superfície branca…

A casa é escura. Mas os magos prometem que o grupo encontrará a luz a partir das trevas. E o que são essas trevas? A ausência de qualquer mediação tecnológica entre eles. Para começar, o casal de “bobos” indaga: o que faremos para passar o tempo sem Internet? Ora, discutirão os temas delicados de relacionamento que jamais discutiram por causa dos dispositivos tecnológicos.

Enquanto isso, o empresário sentará lado a lado com o jovem das ruas, discutindo temas sobre desemprego, representação política etc.

Mas a segunda parte da viagem iniciática é a mais densa – é sobre o passado, a História, que parecem terem sido esquecidas num mundo de mediações tecnológicas.

Então, os magos convocam “aparições” que declamarão um excerto do “Romance de Jaufré”, um texto do século XIII do ciclo arthuriano, em occitana, cujo protagonista é um cavaleiro da Távola Redonda – suas traduções foram bem populares na Península Ibérica.

Após a primeira parte das discussões em que os fugitivos dos bárbaros se conheceram uns aos outros, agora sentam-se no chão para acompanhar a declamação daquele romance de cavalaria medieval.

Redação

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