Com pobres empurrados para encostas, Litoral Norte de SP tem expansão habitacional “muito acima da média”

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Documento oficial acessado pelo GGN fala em crescimento desenfreado por "interesses econômicos" e "segregação socioespacial"

Vista aérea da Vila Sahy, em São Sebastião, Litoral Norte de SP. Imagem: Reprodução/Youtube
Vista aérea da Vila Sahy, em São Sebastião, Litoral Norte de SP. Imagem: Reprodução/Youtube

O crescimento habitacional nos municípios do Litoral Norte tem ocorrido a uma taxa “muito acima da média” no Estado de São Paulo, perdendo apenas para a Baixada Santista. Sem fiscalização e sob pressão de “interesses econômicos”, a expansão desenfreada empurrou e continua empurrando a população mais pobre para as encostas, sujeitando-a ao risco de desmoronamentos que deixam um rastro de danos financeiros e mortes, como ocorreu em São Sebastião no último final de semana.

A constatação de que o crescimento habitacional no litoral paulista gera impactos sociais e ambientais irreparáveis e precisa ser congelado em determinadas regiões, consta no relatório de “estudo de impacto ambiental e social” feito pelo governo de São Paulo em 2020, no âmbito do projeto “Litoral Sustentável”, que buscava financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). O orçamento do programa era de 125 milhões de dólares.

O Litoral Norte é composto pelos municípios de Caraguatatuba, Ubatuba, Ilhabela e São Sebastião, onde ocorreram 47 das 48 mortes já confirmadas após o deslizamento de terras provocado pelas fortes chuvas que atingiram sobretudo a região de Vila Sahy.

Crescimento populacional x turismo

De acordo com o relatório oficial acessado pelo GGN, o governo de São Paulo só conseguiu efetivamente congelar o crescimento habitacional na cidade litorânea de Santos, onde “praticamente não tem mais áreas ambientalmente adequadas para expansão territorial”. Mas Baixada Santista e Litoral Norte – onde há muitos hotéis e condomínios de luxo – têm crescimento acima da média do Estado.

A taxa média de crescimento habitacional no Estado é de 0,36% ao ano. Enquanto isso, entre 2010 e 2020, as cidades do Litoral Norte chegaram a 1,76% ao ano no caso de Ilha Bela; 1,68% a.a. em São Sebastião; 1,44% a.a. em Caraguatatuba, e 1,23% a.a. em Ubatuba. O Litoral Norte perde somente para as taxas de crescimento habitacional da Baixada Santista: Bertioga (2,92% a.a.), Praia Grande (1,94% a.a.) e Mongaguá (1,69% a.a.).

A expansão habitacional está diretamente ligada ao turismo nas praias da região. “No litoral norte, o turismo é a mola propulsora de uma gama de atividades econômicas”, impulsionadas pela construção da Rodovia Rio-Santos na década de 1980, que “aqueceu o mercado imobiliário e trouxe um número expressivo de trabalhadores. Vieram também os trabalhadores de menor qualificação atraídos pelas oportunidades de trabalho nas residências de veraneio.”

Segundo o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, o Litoral Norte apresenta 26,5% de sua população exposta às condições de vulnerabilidade social alta. Na Baixada Santista, são 12,2% expostos às condições de vulnerabilidade muito alta.

Mercado imobiliário e segregação socioespacial

Segundo o documento, os “interesses econômicos que recaem sobre a região pressionam por espaço para seu desenvolvimento, gerando uma intensa valorização imobiliária que resulta na segregação socioespacial da parcela da população que não tem condições de entrar nessa disputa.”

Com isso, a população de menor renda vem ocupando áreas de encosta “altamente vulneráveis a riscos de escorregamento, os mangues e beiras de córregos sujeitos a inundações, bem como avançando sobre as Unidades de Conservação (UCs).”

“Apesar de legalmente protegidas, a implementação destas UCs enfrenta inúmeras dificuldades e são ameaçadas pelos mais diversos tipos de pressão, em especial os impactos ambientais gerados pela ocupação irregular, somando-se a fatores como a caça, desmatamento, o turismo desordenado, além de grandes obras de infraestrutura, o que as torna vulneráveis e representam séria ameaça à efetiva proteção da biodiversidade”, acrescenta o documento.

Em 2020, a população de todo o litoral paulista estava estimada em 2,2 milhões de habitantes, o equivalente a 5% da população do Estado. “Graças ao turismo, a região costeira recebe uma população flutuante estimada em 1,4 milhão de pessoas, ou seja, um acréscimo de 65% à população residente.”

A expansão sem planejamento resulta na falta de sistema público de saneamento, e assim os “esgotos domésticos são despejados diretamente nos cursos d’água, assim como o lixo é carreado pela chuva para os mesmos pontos. Essa dinâmica gerou bolsões de ocupação precária que são uma das principais fontes de poluição e degradação ambiental em toda região litorânea do Estado.”

O documento ressalva, contudo, que a população de poder aquisitivo mais alto também contribui com o desequilíbrio na região, pois passou a construir nos morros “em busca de privacidade e visuais exuberantes”.

Morar em determinados locais do litoral paulista, porém, configura um risco, pois a região “apresenta sérias restrições à ocupação urbana: alto índice de vegetação natural protegida, encostas íngremes sujeitas a escorregamentos, áreas de manguezais e planícies estreitas, além de uma rede hidrográfica densa composta por rios, ribeirões e córregos que geram incontáveis Áreas de Preservação Permanente – APPs.”

Obstáculos à fiscalização

Segundo o relatório, as prefeituras, que detêm atribuição legal para fiscalização sobre a ocupação urbana, não agem a contento por falta de “recursos financeiros, humanos e instrumentos de monitoramento”.

A fiscalização exige a desconstrução de edificações irregulares, impedindo a fixação das populações em áreas irregulares e de risco. Mas “uma grande barreira para essa ação é a falta de condições para demolições e remoções de material pelo poder municipal.”

Os governos federal, estadual e municipal têm se organizado para tentar reagir em caso de emergências, mas as ações de prevenção estão aquém do esperado.

“As ações emergenciais de enfrentamento dos riscos decorrentes dos desastres naturais são coordenadas e executadas pelo Sistema de Defesa Civil, estruturado em nível federal, estadual e municipal. Desta forma, há uma estrutura organizacional com diretrizes e planos de ação para os atendimentos emergenciais em todo território nacional. Entretanto, as ações de prevenção aos desastres naturais não têm o mesmo tratamento, considerando o número reduzido de municípios que contemplam a gestão de risco em seus planos de desenvolvimento urbano.”

Impacto ambiental

A tragédia histórica em São Sebastião era uma tragédia anunciada, posto que o Ministério Público Estadual visitou a Vila Sahy há dois anos e avisou a Prefeitura sobre os riscos de deslizamento de terra. Além disso, o poder público detém dados sobre os inúmeros eventos geodinâmicos que têm atingido o litoral paulista há 25 anos.

“No litoral paulista, no período de 1998 a 2017 ocorreram 1.492 eventos geodinâmicos (geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climáticos), acarretando danos a pessoas e bens: 12.214 pessoas afetadas (mortes, desaparecidos, feridos, desabrigados, desalojados); e, ao menos, 3.647 edificações afetadas (temporária ou definitivamente)”, diz o relatório.

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3 Comentários

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  1. A tragédia em São Paulo é a máxima demonstração da estupidez do PSDB e oligarquias nacionais. Governam São Paulo há décadas. Mas falta Segurança, Habitação, Saúde, Transporte na maior Cidade do País, que a Rede Globo, mensageira do atraso, mostra nas novelinhas como se fosse New York ou Paris.

  2. Boa tarde.
    Me chamo Osvaldo.
    Perfeita a matéria!!!!
    O que está ocorrendo aqui em São Sebastião realmente foi uma tragédia anunciada o poder público Municipal protelou ao máximo a regularização fundiária contribuindo pelo fato ocorrido..O MP já havia notificado 47 vezes sobre o risco, mas a Prefeitura fez vistas grossas…
    A minha esperança é que as pessoas envolvidas nessa omissão responda, essa dezenas de vidas perdidas não pode ficar em puni..

  3. Classificar o cidadão de “pobre” num artigo é demonstrar o desconhecimento, a ignorancia e a arrogância de uma só vez. Agora sim cabe o termo “pobreza” de espírito.

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