Dengue e verão: novos casos, velhas práticas – entrevista com Rivaldo Venâncio

As metodologias para enfrentamento do vetor, no entanto, ainda se mostram ineficientes. Ele dá o exemplo do fumacê, que asperge inseticida em volume baixo pelas cidades, mas que tem como único efeito o de acalmar a população

do CEE Fiocruz

Dengue e verão: novos casos, velhas práticas – entrevista com Rivaldo Venâncio

por Daiane Batista

Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde divulgado em 11/9/2019 apontou que os casos de dengue tiveram aumento de quase 600% em um ano, contabilizando-se cerca de 1,5 milhões de pessoas com a doença. Com a chegada do verão, esse número pode ultrapassar a marca dos 2 milhões até dezembro, como calcula o médico infectologista, Rivaldo Venâncio, pesquisador associado do CEE-Fiocruz, nesta entrevista para o blog. Nesse quadro, um aspecto chama atenção, ao lado do percentual assustador: o retorno à circulação do sorotipo 2 do vírus da dengue. “Já há uma geração razoável de pessoas que não estão imunes a esse sorotipo”, observa Rivaldo, lembrando que a ocorrência do sorotipo 2 concentra-se em Minas Gerais e São Paulo, o que significa que há muitos estados nos quais o vírus ainda pode circular.

O epidemiologista reforça a associação que deve ser feita entre o aumento dos casos de dengue e a existência do mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus da doença. “Precisamos entender que não haverá casos de dengue se não houver o mosquito transmissor”, destaca. As metodologias para enfrentamento do vetor, no entanto, ainda se mostram ineficientes. Ele dá o exemplo do fumacê, que asperge inseticida em volume baixo pelas cidades, mas que tem como único efeito o de acalmar a população, pela sensação de que “algo está sendo feito”. Na prática, é inócuo, afirma Rivaldo, apontando metodologias mais eficazes, só que ainda em teste, como as armadilhas dispersoras de larvicida para os mosquitos e a vacinação das fêmeas com a bactéria Wolbachia, que bloqueia a transmissão do vírus.

Tais metodologias não substituem a urgência por políticas públicas, como água, saneamento básico e até emprego para todos, cuja ausência impulsiona a proliferação do mosquito. Isso, no entanto, ainda está longe de acontecer. “O Brasil vive um apartheid social”, resume.

Leia a entrevista, a seguir.

Como podemos ler os dados divulgados pelo Ministério da Saúde indicando aumento de quase 600% na incidência de dengue em um ano? 

De fato, no ano de 2019, houve crescimento assustador no número de casos de dengue registrados no país. Temos computados, até o momento, algo como 1,5 milhão, 1,6 milhão de casos no ano. A continuar nesse ritmo, provavelmente, até dezembro teremos ultrapassado a casa dos 2 milhões de casos notificados no país. Nesse crescimento vertiginoso da circulação do vírus dengue, se dá a reintrodução quase que dez anos depois do sorotipo 2, ou seja, já há uma geração razoável de pessoas que e não estão imunes a esse sorotipo. Precisamos observar também que desse 1,5 milhão de casos até então registrados, algo como 1 milhão estão registrados somente em dois estados: Minas Gerais e São Paulo. Isso quer dizer que ainda temos muitos estados nos quais ainda não houve a circulação do sorotipo 2 neste ano.

Que fatores contribuem para esse quadro?

Precisamos entender que não haverá casos de dengue se não houver o mosquito transmissor. Quando reportamos a existência de casos de dengue, isso significa dizer que estamos constatando a presença do mosquito transmissor, o Aedes aegypti. Nesse sentido, a pergunta subsequente é quanto ao porquê da persistência desses elevados índices de infestação do mosquito no país. Ora, o Aedes aegypti se reproduz em todo e qualquer objeto que possa acumular água, independentemente de tamanho, desde uma tampa de uma garrafa PET até uma piscina, e essa é a realidade que o país está enfrentando. Temos quantidades gigantescas de objetos que podem acumular água, que estão acumulando água e que não são protegidos de alguma forma. Um exemplo bem concreto é o do abastecimento irregular da água para uso doméstico. Toda vez que falta água em determinada comunidade, quando a água retorna para as torneiras, é natural que aquela população vá armazená-la para usar durante os dias seguintes. Ocorre que, muitas vezes, esses objetos são inadequadamente vedados e terminam por se transformar em focos de proliferação do mosquito. Esse é apenas um exemplo. Então, essa explosão no número de casos é resultante de fatores como a nova circulação do sorotipo 2 do vírus, aliado aos elevados índices de infestação do mosquito Aedes aegypti, transmissor desse vírus, que por sua vez decorrem de fatores ambientais normalmente associados à presença e à ação dos seres humanos.

No combate ao mosquito, a técnica popularmente conhecida como fumacê é utilizada há décadas, em controle de vetores no país. No entanto, é potencialmente cancerígeno para os seres humanos, além de mostrar-se ineficaz. O que o senhor pensa a respeito?

O uso do fumacê para matar o mosquito adulto que está voando, método que chamamos de aspersão, com liberação do inseticida em ultrabaixo volume, tem se mostrado inócuo, insuficiente para resolver o problema durante as epidemias e mesmo antes delas. Primeiro, porque há uma resistência comprovada ao inseticida. Segundo, porque é preciso contar com vários fatores: o mosquito vive essencialmente dentro dos domicílios, ou no peridomicílio, e, muitas vezes, os veículos que lançam o fumacê passam nas ruas a uma certa distância, e o jato que aspergem não alcança o interior desses domicílios, que ainda podem estar fechados, ou os quintais. Enfim, há uma questão logística que contraria o uso de inseticidas que, no entanto, continuam sendo espalhados no ambiente de forma quase que descontrolada. Ele tem, sim, um efeito psicológico, de acalmar a população e dar a impressão de que o problema da ocorrência da dengue está sendo adequadamente resolvido, o que não é verdade! Em outras palavras, não recomendamos o uso de inseticida, não recomendamos o uso do fumacê, salvo em situações dramáticas, em que possa estar ocorrendo uma epidemia localizada em determinada localidade, como tentativa de se reduzir a população de mosquitos adultos. Mas tem que ser em situações bem avaliadas e excepcionais. A metodologia que utilizamos para o controle do mosquito transmissor, que foi exitosa há 110, 115 anos, com Oswaldo Cruz, perdeu o sentido, porque o espaço urbano do Brasil nesses últimos cem anos tornou-se infinitamente mais complexo.

Essa explosão no número de casos é resultante de fatores como a nova circulação do sorotipo 2 do vírus, aliado aos elevados índices de infestação do mosquito Aedes aegypti, transmissor desse vírus, que por sua vez decorrem de fatores ambientais normalmente associados à presença e à ação dos seres humanos

E, quais seriam as formas eficazes de combate à dengue?

Há testes bem avançados com outras metodologias. Citarei três delas. Uma seria o uso do mosquito transgênico que, ultimamente, tem ganhado espaço no noticiário nacional. Essa, no entanto, não é uma alternativa sustentável, porque a soltura dos mosquitos tem que se dar frequentemente, em período largo. Outra metodologia é a de unidades dispersoras de larvicida, ou seja, armadilhas nas quais é colocado o produto que vai matar a larva do inseto. Os mosquitos, quando vêm beber água ou se alimentar ali, sujam suas patas com o larvicida e ao pousarem em uma outra armadilha onde também tem a água, eles mesmos disseminam esse inseticida. Essa é uma alternativa excelente, sobretudo em comunidades de difícil acesso, seja pela violência, seja por questões geográficas e topográficas. Pesquisadores da Fiocruz Manaus, da equipe do doutor Sérgio Luiz, estão estudando e apontando resultados muito promissores. É uma metodologia barata, se comparada com as demais. Outra alternativa, ainda, que vem sendo avaliada é a do uso do da bactéria Wolbachia nas fêmeas do Aedes aegypti. Essa bactéria que já existe na natureza, ou seja, não se trata de um processo geneticamente modificado. Uma vez inoculada no mosquito, a bactéria impede a fêmea de passar adiante o vírus da dengue e também de outras doenças, como chikungunya, zika e febre amarela. Seria como uma vacina. O mosquito é vacinado com a bactéria Wolbachia e perde a capacidade de transmitir as doenças. É uma alternativa altamente autossustentável, como tem mostrado todos os estudos.

O que falta para essa metodologia ser empregadas?

Elas ainda estão em estudo e não se desenvolvem, ainda, em um padrão de produção capaz de dar a resposta a um país inteiro, com as dimensões do Brasil, em curto espaço de tempo. É uma ferramenta altamente promissora.

E quanto às políticas públicas, como água encanada, saneamento básico e segurança pública, que o senhor sempre enfatiza como necessárias nesse processo?

O Brasil vive uma situação de apartheid social. Convivemos com uma realidade gestada ao longo de séculos, e hoje estamos colhendo o que plantamos. O Brasil tem muitas localidades, em especial, na periferia dos grandes e médios centros urbanos, nas quais saneamento e coleta de resíduos sólidos são muito deficientes. O lixo cotidiano não sendo coletado fica ao relento e pode se transformar em potencial foco de proliferação do Aedes aegypti, se acumular água. Como já mencionei, o fornecimento irregular de água para consumo doméstico faz com que o cidadão, a cidadã vá armazená-la, em quaisquer objetos, muitas vezes inadequadamente vedados e também acabam se transformando em potenciais focos de proliferação do vetor. Outro aspecto a ser considerado é a violência urbana. Temos muitas comunidades, em especial, nas regiões metropolitanas, nas quais a atuação do agente de controle de endemia é quase que impossível, devido à dificuldade de acesso. Muitas vezes, ações policiais desmedidas têm resultados trágicos, geram isso que o Brasil está vivenciando e que o Rio de Janeiro está chorando, como a morte de crianças. Violência gera violência e nós temos que pregar uma cultura de paz. E essa violência atrapalha a atividade do agente de controle de endemias. Um fator, ainda, que também tem contribuído para o aumento de casos é o desemprego.

De que forma o desemprego relaciona-se à transmissão do vírus?

O desempregado, depois de certo período, acaba indo menos vezes em busca de trabalho – e o IBGE tem documentado isso, indicando o desalento de parcela desses desempregados, os que desistiram de procurar emprego porque não estão encontrando. Quanto mais pessoas no ambiente doméstico e peridoméstico, maior a probabilidade de uma fêmea do Aedes aegypti infectada encontrá-las, contaminá-las e, assim, retomarmos a cadeia de transmissão da epidemia. Assim, temos: a coleta do lixo irregular, ineficiente no país; a distribuição de água para uso doméstico, também irregular, a violência, que impede a ação dos agentes de controle de endemias e demais ações da saúde e da educação, e, por fim, o desemprego, que entra como uma questão mais recente e que, a cada dia, tem impactado e feito sofrer parcela significativa da população.

Mais um verão está chegando. O que esperar, diante do aumento significativo no número de casos de dengue?

É preciso lembrar que a consciência do risco, da gravidade de uma situação, não necessariamente gera atitude proativa. E que o mosquito existe no espaço doméstico. Ou seja, cada cidadão, cada cidadã deve dar sua contribuição, procurar minuciosamente os focos de mosquito dentro de seu domicílio, conversar com os vizinhos sobre objetos, de qualquer tamanho, que estejam ao relento e possam acumular água. É preciso também que o poder público faça sua parte, que os governantes ofertem água para o consumo doméstico de forma regular, façam a coleta do resíduo sólido de forma regular, gerem políticas capazes de produzir emprego para essa massa desempregada que está no domicílio. Enfim, que os governantes gerem melhores condições de vida e desenvolvam uma cultura de paz.

* Edição: Eliane Bardanachvili

Redação

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