do Viomundo
por Tânia Mandarino*
Acompanhei a tarde de julgamentos da primeira sessão do ano realizada hoje, 20/02, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A Reclamação Disciplinar proposta contra a juíza Gabriela Hardt, que quando era substituta da 13ª Vara Federal de Curitiba homologou acordo cível para criação de um fundo milionário a pedido de Deltan Dallagnol mesmo sendo juíza criminal, era o número 20 da pauta.
Os números 3 e 4 tratavam de duas reclamações de caráter nitidamente persecutório, propostas por procuradores da República em face do juiz Edevaldo de Medeiros, por suas decisões garantistas à frente da Vara Federal de Itapeva/SP. Isso ocorreu logo depois de ele ter vindo visitar Lula na prisão em 2019.
Foram julgados na sessão do CNJ os processos 1 e 2 da pauta. Os do juiz Edevaldo seriam, portanto, os próximos.
Só que para minha surpresa foi apregoado o 20 depois do 2 da pauta. Um verdadeiro salto duplo twist carpado na sessão de julgamento.
“Trata-se aqui de Reclamação Disciplinar para apurar se a requerida atuou fora da sua competência e exarou decisão inconstitucional ao homologar o acordo de assunção de compromissos firmado entre o Ministério Público Federal, Petrobras, interveniência do Departamento de Defesa e da Securities and Exchange Commission dos Estados Unidos e da operação lava jato (…) ”, apregoou o ministro Barroso, parecendo muito bem disposto, ao passar a palavra para o conselheiro Luíz Felipe Salomão.
— Eu tinha a notícia de que seria o número 21 da pauta, Vossa Excelência…? Só pra… Só pra deixar… indagou Salomão a Barroso.
— É… Não… Veja, Vossa Excelência, é, podemos aqui conciliar… Nós temos ainda, é, dois processos que envolvem risco de prescrição, esse aqui, pelo que entendi de V. Excelência, não envolve risco de prescrição, argumentou Barroso.
— É, ele envolve indiretamente, mas… Mas podemos seguir, já que V. Excelência apregoou… disse Salomão.
— É. Eu apregoei, porque V. Excelência disse que gostaria de julgar, justificou Barroso.
— Podemos seguir, presidente, confirmou Salomão, iniciando seu voto.
O 21 da pauta era um processo também da relatoria de Salomão, um pedido de providências feito pela Corregedoria, mas, pelo visto, por alguma razão que nada tem a ver com risco de prescrição, a questão da juíza Hardt, o número 20 da pauta, tinha que ser discutida na sessão de hoje, como de fato foi.
A discussão em torno do processo 20 da pauta durou cerca de uma hora e 16 minutos.
Houve uma acentuada divergência entre as posições de Salomão e Barroso, sobre as quais posso falar em outro texto, porque o que me chama a atenção mesmo hoje é a perceptível disposição dos conselheiros, com destaque para Barroso, em discutir o Direito, com D maiúscula, trazendo teses técnicas, uma belezura de ver.
Uma belezura de ver Barroso defendendo com afinco o “ato jurisdicional” da juíza Hardt, que não pode ter interferência dos órgãos de fiscalização e controle, sob pena de desnaturar-se a magistratura e o ofício judicante.
Uma belezura de ver, sabem, a disposição do ministro em discutir o Direito cru, ainda que tenha ficado esquisito quando ele começou a chamar a juíza Hardt de “essa moça”.
Barroso disse repetidamente coisas sobre Hardt como “estão se vingando dessa moça” e “não podemos julgar diferente só porque os ventos mudaram”.
O ministro lamentou, ainda, que “essa moça” esteja sofrendo há três anos os suplícios de responder uma reclamação disciplinar, que, segundo ele, desestabilizam emocionalmente um magistrado.
É dizer, ele dissecou as questões políticas, chegou a dizer, no início, que a representação proposta por Gleisi Hoffmann e outros parlamentares do PT contra Hardt demonstra que “há erros graves que justificam a posição crítica dos proponentes contra a lava jato”.
Citou quatro desses erros:
1. Vazamento da conversa entre Dilma e Lula.
2. Condução coercitiva de Lula.
3. Power point de Dallagnol já apresentando o culpado no início do processo
4. O vazamento indevido da colaboração premiada de Palocci às vésperas das eleições de 2018.
Mas fez tudo isso para centrifugar o caso, numa aparente tentativa de separar a política do Direito, insistindo para que Hardt fosse julgada dentro do contexto de direito que, segundo ele, “não revela a mínima infração disciplinar”.
Que nada! Ao final, a posição de Barroso é Política pura. Política de defender a lava jato e talvez, veremos, até o TRF4.
O que mais contribuiu para consolidar essa minha impressão foi justamente o julgamento dos processos 3 e 4 da pauta, que foram apregoados logo após o intervalo de 15 minutos chamado por Barroso depois do conselheiro Guilherme Caputo Bastos pedir vista do processo contra Hardt, prometendo trazer seu raciocínio lógico-jurídico na sessão do dia 5/3.
Por sua vez, Salomão prometeu trazer em dois meses o resultado da correição extraordinária na 13ª. VF de Curitiba, que impactará diretamente na reclamação disciplinar amplamente discutida na sessão de hoje.
Bem, ao voltar do intervalo para julgar os processos contra o juiz Edevaldo de Medeiros, os conselheiros pareciam ter esvaído toda a energia para discutir o direito, com d Maiúscula ou não, num aparente desprezo pela questão posta em julgamento.
Na prática se tratava de duas revisões de questões já enfrentadas pelo tribunal de atuação do juiz Edevaldo, uma a seu próprio pedido, e outra determinada pela outrora corregedora nacional de justiça, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, em continuidade à perseguição empreendida contra o juiz.
Teve sustentações orais.
O Ministério Público acusou, acusou, leu dados que não me pareceram factíveis em relação às decisões do juiz Edevaldo, sublinhou que “não tinha a ver com ideologia” e pediu a cabeça dele em uma bandeja de prata: um período de disponibilidade com prazo certo.
A relatora, conselheira Jane Granzotto, que tinha falado antes do MP, não dava para ter certeza se era uma conselheira do CNJ ou uma linha auxiliar da acusação. Acusava com algo que parecia uma raiva, nada técnica, também trazendo dados bastante questionáveis e apelativos quanto às decisões do juiz de Itapeva.
Me parecia, no início, que o MP proporia revisar a pena do juiz de advertência para censura. Mas, depois que a relatora esclareceu que queria a pena de afastamento por 180 dias para o juiz, o MP aderiu.
Enquanto isso, aqueles senhores que tão dedicadamente discutiram o Direito no processo 20 da pauta, estavam absolutamente apáticos.
Barroso bocejou e parecia que já nem estava mais ali. Ao apregoar os processos 3 e 4 da pauta quase não leu direito o nome do juiz Edevaldo e a impressão que dava é de que ele teria lido: “um qualquer”.
O advogado do juiz Edevaldo colocou todos os pingos nos ís, trazendo dados reais sobre as decisões do magistrado, lembrando que o Dr. Edevaldo sofre imputações administrativas pelo menos desde 2019 na última correição.
“Permitir a punição disciplinar de um magistrado simplesmente porque ele adota um entendimento contra majoritário é transbordar a competência disciplinar e passar a julgar questões da competência jurisdicional do juiz”.
Dessa vez, porém, o ministro Barroso não esboçou qualquer reação em defesa do ato jurisdicional do juiz, como fizera enfaticamente quanto àquela “moça”, a juíza Hardt.
Tampouco ponderou que “esse moço” esteja sofrendo há cinco anos os suplícios de estar exposto a questões disciplinares, que, segundo ele, no caso da juíza Hardt, desestabilizam emocionalmente um magistrado.
Barroso chegou a declarar, depois da brilhante sustentação oral do advogado do juiz Edevaldo, que seu julgamento seria suspenso e retomado na próxima sessão. Parecia exausto do empenho realizado no julgamento anterior, o número 20 da pauta.
O ministro Salomão também já sugerira a suspensão mesmo antes de se apregoarem os processos do juiz Edevaldo.
Acontece que antes de suspender efetivamente a sessão, o ministro Barroso passou a palavra para a relatora se manifestar sobre o sustentado pelo advogado Rodrigo Castro na tribuna.
Tudo na fala da relatora expressava vingança. Jamais justiça.
Louvou a peça acusatória do ministério público, buscou trecho da representação acusatória sobre decisões do juiz em casos envolvendo pornografia (o último grito da moda usado por fascistas para tentar atingir progressistas, vide caso PC Siqueira), uma fala apelativa que demonstrou que ela estava ali para cumprir uma missão determinada: punir o juiz Edevaldo com 180 dias de disponibilidade, sanção apenas inferior à pena máxima de aposentadoria compulsória.
Curiosamente, o ministro Barroso, que antes decretara a suspensão do julgamento, instado pelo ministro Salomão, que comentou com ele algo como “ninguém vai discordar, podemos concluir hoje”, desdiz a suspensão e declara o resultado, unânime, com a sanção aplicada pelo CNJ ao juiz Edevaldo.
E, então, eu pude entender que o desprezo, o desdém e a raiva são todos elementos provenientes de uma só questão: a classe!
Importante lembrar que um tanto do ódio que se tem contra o juiz de Itapeva vem de ele ser garantista e ter visitado Lula na prisão.
Outro tanto vem das atividades e projetos do juiz que asseguram que seus jurisdicionados acessem a justiça e o Fórum de Itapeva.
E seus jurisdicionados são, em esmagadora maioria, indígenas, quilombolas e camponeses.
Muito do ódio estampado nessa sanha persecutória é, na verdade, porque o juiz Edevaldo, sendo filho de gente simples, trabalhadora, de pai nordestino, se atreveu a ser juiz federal.
E sendo juiz federal, ousou tratar com isonomia a gente simples, trabalhadora, explorada, dizimada que está sob sua jurisdição.
O juiz Edevaldo, assim como seus jurisdicionados, não usa black tie.
Antes de apregoar o julgamento dos processos do juiz Edevaldo no CNJ na tarde dessa terça-feira (20), Barroso exibe nas mãos os dois processos referentes ao caso e diz, rindo, como se tivesse sido acometido por algum mal pressentimento: “só de pegar o processo já me assustei!”
Talvez ele tenha sentido o peso da força de todos que, certa vez, presenciei o juiz Edevaldo dando voz em um evento no Fórum de Itapeva: indígenas, quilombolas, juventudes periféricas, jovens e velhos camponeses, representantes das diversas religiões, de evangélicas às de matriz africana, e todos o que o apoiam e estão indignados com a enorme injustiça representada por essa perseguição.
Todas as pessoas que, como o juiz Edevaldo, não usam black tie e seguirão clamando por JUSTIÇA. Inclusive eu, Tânia Mandarino.
Tânia Mandarino é advogada; integra o Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD).
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Essa galera defende os interesses da corporação independentemente dos méritos. Ao fazê-lo, estão defendendo seus próprios interesses e se precavendo
Triste, mas sempre importante termos exemplos práticos da luta de classe. Se não, as pessoas tendem a acredita que a luta entre opressores e oprimidos é só abstração. Bicho papão.
Essa luta acontece em qualquer lugar, desde os exemplos explanados pela autora à policial da Corregedoria morta no RJ por milicianos! Sempre que os detentores do poder se sentem ameaçados, ou mesmo que não haja uma ameaça plena, eles vão [ permanecerão a te] atacar. O exemplo da PM é didático pra ilustrar que não existe estado repressor, sem milícias e grande capitais e, vice-versa.
Barroso devia declarar-se suspeito ou ser impedido de atuar no processo da Moça