Governo “subestimou as bets” e a regulamentação do Congresso está incompleta, diz Wadih Damous, secretário nacional do consumidor

Dolores Guerra
Dolores Guerra é formada em Letras pela USP, foi professora de idiomas e tradutora-intérprete entre Brasil e México por 10 anos, e atualmente transita de carreira, estudando Jornalismo em São Paulo. Colabora com veículos especializados em geopolítica, e é estagiária do Jornal GGN desde março de 2014.
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Secretário fala com exclusividade ao GGN sobre as medidas do governo para combater ilegalidades das bets; assista

Wadih Damous
(foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

O governo federal subestimou as consequencias danosas das bets sobre a vida dos brasileiros e a economia nacional, mas ainda há tempo de complementar a lei e enquadrar as empresas de apostas nas normas vigentes que defendem os usuários. É o que avalia Wadih Damous, chefe da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão relacionado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Em entrevista exclusiva ao jornalista Luis Nassif, fundador do GGN, Damous falou sobre a regulação do mercado de apostas e jogos online no Brasil. Com uma carreira marcada por sua atuação como parlamentar, advogado e ex-presidente da OAB, Damous criticou alguns aspectos da lei 14.790/23, sobretudo a previsao de que as empresas do setor tem seis meses para se adaptar às normas. “São seis meses para continuar praticando crime. Inacreditável.”

O Banco Central divulgou uma nota técnica indicando que os brasileiros estão gastando entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês em apostas online. Um dado preocupante revela que, em agosto, R$ 3 bilhões foram enviados por beneficiários do Bolsa Família às empresas de apostas via Pix, o que representa 14% do total desembolsado no país em jogos de azar.

Na entrevista ao GGN, Damous explica como a Senacon começará a fiscalizar as plataformas de apostas, verificando se estão oferecendo bonificações adequadas e garantindo que menores de 18 anos não tenham acesso a essas atividades. Além disso, o secretário aborda o monitoramento de eventuais propagandas abusivas que possam enganar os consumidores.

Damous presidiu a OAB por dois mandatos, onde trabalhou em prol da defesa dos direitos dos cidadãos e da promoção da justiça. Ele também presidiu a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e a Comissão Nacional dos Direitos Humanos da OAB.

Leia a entrevista completa abaixo:

Luis Nassif: Quando se fala em defesa do consumidor, quem é o consumidor a ser defendido, Wadih?

Wadih Damous: Todas as pessoas que, efetiva ou potencialmente, possam vir a apostar ou apostam. Está estabelecida aí uma relação de consumo e a principal lei que rege a relação de consumo é o Código de Defesa do Consumidor. Você pode ponderar: “Não, mas tem a Lei Geral das Apostas, a Lei nº 14.790/23”. A Lei das Apostas é uma lei geral em confronto com a lei especial, que é o Código de Defesa do Consumidor. Na hermenêutica jurídica, a lei especial prevalece sobre a lei geral. No meu entendimento, o que tem que prevalecer é o Código de Defesa do Consumidor.

Nassif: As bets são jogos. Há os jogos dos campeonatos, que é mais fácil fiscalizar para saber se houve suborno, essas coisas, mas quando entra em sorteios, que tipo de golpe que o consumidor pode sofrer?

Wadih: Qual era o nosso problema inicialmente com as bets? Elas começam essa propaganda avassaladora, essa publicidade terrível, desde meados de 2022, ou desde o ano passado, e a gente começou a ser cobrado. Eu, pessoalmente, comecei a ser cobrado: “Poxa, rapaz, tem que ver esse negócio aí dessa bet, “isso aí está um negócio, está viciando todo mundo”, “as pessoas estão perdendo dinheiro, se endividando”. Quando eu comecei a mexer nisso, nós vimos que não podíamos fazer nada, porque as sedes delas são no exterior. Nós não temos jurisdição, não posso notificar uma bet lá na Tailândia, Nova Zelândia, Vietnã. Então começou a pressão para a regulamentação e veio a lei aprovada a toque de caixa no Congresso.

A lei traz alguns pontos positivos no sentido de tentar amenizar essa fúria publicitária das bets e essa coisa potencial de criar dependência, de produzir vício. Então, é proibição de aposta com cartão de crédito, proibição de bonificação. Isso é expressamente proibido pela lei e, agora, no dia 1 de outubro, venceu o prazo para legalização, ou seja, para autorização das bets poderem operar, atuar legalmente aqui no país. Se não me engano, foram autorizadas 192 ou 193 bets.

Nós agora vamos notificá-las, discriminar os dispositivos legais que já estão violados e cobrar explicações. A lei desse Congresso Nacional traz uma armadilha, que diz o seguinte: elas têm seis meses para se adequar. Eu entendo que não se aplica a norma proibitiva. Agora, tem que ver qual é o entendimento do restante do governo. Por mim, isso aí nem seria autorizado aqui no Brasil. Enfim, já está autorizado, vamos tratar de, pelo menos, mitigar os efeitos deletérios que esse troço gera.

Nassif: As bets são só em cima de jogos nacionais ou elas trazem apostas de outros campeonatos também?

Wadih: Boa pergunta, eu tenho a impressão que ela traz e não é só de futebol não! Futebol é o mais visível, mas aposta também basquete, aposta tudo, e tem aposta também de jogos no exterior. Sim, tenho essa impressão, fica sob ressalva.

Nassif: É porque, se houver suborno, com jogos do exterior também, a fiscalização fica impossível.

Wadih: Embora elas venham a ter representação aqui no Brasil, todas elas têm a sede é no exterior. Então, isso vai ficar sob a jurisdição das justiças e tem que ver o que é relação de consumo e o que não é, aí é uma sobreposição. Por exemplo, essa parte é mais de polícia, lavagem de dinheiro, isso aí tem um potencial de lavagem de dinheiro imenso, mas já não é nossa competência, é da Polícia Federal. A gente trata da relação direta do apostador com as bets e das promessas que possam vir na publicidade.

Nassif: E das promessas que possam vir na publicidade, é isso?

Wadih: A minha convicção é de que nós, o governo, subestimou e a regulamentação ficou no meio do caminho. Ela tem que ser complementada, sobretudo, no âmbito da publicidade. Tem que usar como parâmetro a publicidade de cigarro, de álcool, que predomina a restrição. Tem que ter medidas restritivas nessa publicidade. É avassalador.

Nassif: Tanto na mídia convencional quanto em redes sociais?

Wadih: Sem dúvida! Porque é avassalador, Nassif. Aquele relatório da semana passada do Banco Central: R$ 3 bilhões do Bolsa Família [foram para as bets]. Um programa social para a sobrevivência das pessoas, para as pessoas comerem, e as pessoas deixam de consumir bens de primeira necessidade para apostar. Isso é inaceitável.

Nassif: Esse período que ficou sem regulamentação acabou criando parcerias entre bets e órgãos de mídia, clubes de futebol, deputados. Elas ganharam uma força política que não precisavam ter ganhado.

Wadih: E hoje elas patrocinam tudo, né? Não tem time de futebol do Brasil que não seja patrocinado por bets. Empresas de televisão, influenciadores… Isso movimenta uma máquina de convencimento que gera dependência, vício, superendividamento. As pessoas se endividam e nós sabemos as consequências disso: suicídios, dissolução de laços familiares, isolamento social. Não vejo nada de positivo nesse negócio. A única coisa que o governo deve ter visto lá atrás é arrecadação. Mas acho que a alíquota, inclusive, é baixíssima. Devia ser uma alíquita muito maior.

Nassif: Arrecada de um lado, permite lavagem de dinheiro do outro, tem um baita gasto por saúde, fora a questão humana de dissolução de lares, inadimplências, os caras caindo nas taxas de juros do sistema bancário. A soma de inconvenientes é avassaladora.

Wadih: É avasssaladora, então, do meu ponto de vista, repito, reitero, a complementação necessária dessa regulamentação deve ter, sobretudo, publicidade.

Nassif: A Secretaria Nacional do Consumidor vai atuar em conjunto com o Ministério da Saúde ou outra áreas do Ministério da Justiça? Como é que está a articulação?

Wadih: Estamos reunindo. Na verdade, a lei 14.780, que veio para regulamentar esse jogo de apostas, ela criou uma interseção entre nós e o Ministério da Fazenda. Isso, num primeiro momento, às vezes nós vamos atuar, cada qual com a sua autonomia, tendo como alvo um mesmo episódio; o que não é muito bom. Vai ser no andar da carruagem que as competências vão ficar mais claras. As competências da Fazenda, as competências da Secretaria Nacional do Consumidor…

Nassif: Mas vai ser um trabalho… Porque se você não tem uma bet oficializada, você não tem lavagem de dinheiro. Porque você vai declarar pra Receita aquilo que você pode declarar. Agora, quando você tem a bet legalizada, então, a lavagem de dinheiro fica muito mais fácil.

Wadih: É verdade, isso que eu estou dizendo, por exemplo, a questão de lavagem não é com a gente, é com outros órgãos do governo. A polícia, o Ministério da Fazenda, enfim.

Nassif: Agora, de alguma maneira vocês estão fazendo uma avaliaçao da legislação de outros países também? Que tipo de restrições que é mais comum? Que nem você disse, é fundamentalmente em cima da publicidade.

Wadih: Não sei como é que está isso em outros países, mas aqui no Brasil, você liga a televisão e só vê propaganda de bet. Outro dia teve um manifesto do comércio, de setor do capitalismo, dizendo: ‘Olha só, nós estamos perdendo. As pessoas não estão mais consumindo, elas estão apostando. Não compram mais geladeira, não compram mais eletrodoméstico, não compram mais comida. Elas estão desviando tudo para apostar.’

Nassif: E quando a gente vai ver, digamos, quem controla os sites de apostas no mundo inteiro, são as organizações. Aqui é o jogo do bicho. Ou seja, foi um passo imprudente mesmo. Você tem toda a razão.

Wadih: Eu acho, com muita franqueza aqui, nós subestimamos, mas é tempo ainda de corrigir. Porque isso aí só tende a superendividamento, a aumentar em proporções exponenciais se nós deixarmos correr solto. Antes o endividamento, pelo menos, era para compra de produtos. Agora é zerado. Nem compra de produtos não é mais. E você me perguntou, além da questão da publicidade, é aplicar com rigor as normas proibitivas da lei e interpretando em conjunto com o Código de Defesa do Consumidor, a bonificação, a bonificação não pode e é por isso que a lei proíbe. Aí vem essa história: “Não, mas elas têm seis meses para se adequar.” Pô, tem seis meses para continuar praticando crime. Inacreditável.

Dolores Guerra é estagiária em redação.
Edição: Cintia Alves

Assista a entrevista completa:

1 Comentário

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  1. Tá ficando feio, a kriptonita do PT é assumir que erra, o governo Lula deixou e vai deixar tudo solto pelo simples fato que tá dando para tributar, o problema é a realidade que os bens pensantes pensam que somos trouxa, aí fica difícil

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