Lendas e mitos do senso comum sobre a presunção da inocência, por Lenio Luiz Streck

O que um Amigo da Corte tem a dizer sobre a presunção da inocência!

da Consultor Jurídico – ConJur

Lendas e mitos do senso comum sobre a presunção da inocência

por Lenio Luiz Streck

Na última quinta-feira (17), o Supremo Tribunal Federal deu início a um julgamento histórico. Não apenas pela liberdade, pelas garantias fundamentais que estão em jogo — o julgamento das ADCs 44 e 54 é histórico também no que diz respeito à própria Suprema Corte. Não falo da ADC 43 porque seus atuais autores entregaram por WO.

Na mesma quinta, no mesmo julgamento, estive no STF como amicus curiae pela Abracrim. Luto desde 2016 por essa causa. Por isso, fui coautor da ADC 44.

Fiz, e faço aqui, aquele que me parece ser o papel da doutrina, o papel do jurista que aceita a responsabilidade política que cabe ao teórico: o papel de constrangimento epistemológico. O papel de dizer que, na democracia, as coisas são o que são, e que há uma linguagem pública que diz o que elas são. Como falei na tribuna, Bernd Rüthers, importantíssimo professor alemão, mostrou o quanto faz mal a falta de uma “Unbegrenzte Auslegung”, isto é, o quanto mal faz a ausência de uma interpretação jurídica sem constrangimentos, sem explicitação dos limites, sem as necessárias fronteiras. Ele mostrou como isso fez falta na Alemanha nos anos 30 do século XX. O livro é belíssimo.

Como doutrinador, aceitei a difícil — e por vezes, antipática — tarefa de tentar expressar a importância do momento em sete minutos. Para sintetizar ainda mais, posso dizer com tranquilidade o seguinte: meu papel, lá e aqui, foi e é o de dizer que, na democracia, presunção de inocência significa presunção de inocência, e que não existe linguagem privada para que x possa passar a significar y simplesmente porque sim. Por isso pedi, lhana e respeitosamente, por exemplo, que o Min. Fachin adote, por coerência, a mesma tese literalista que expos, dias atrás, na leitura do artigo 403 do CPP.

De todo modo, eu não falo isso apenas como doutrinador. Porque, como falei acima, o momento não é histórico apenas pela liberdade, pelas garantias, pelos direitos em jogo (como se já não fosse suficiente); é histórico também no que diz respeito ao próprio Supremo.

E se, na democracia, as coisas são o que são, também um amicus curiae deve ser o que é: um amigo da Corte. Inimigos, esses o Supremo já tem demais. Não contem comigo para atacar uma instituição da dignidade e da importância do STF; contem comigo, sim, para ser um amigo da Corte.

Amigos, verdadeiros, não são aqueles que dizem só o que é bom e o que é fácil. Como amigo da Corte — porque as coisas são o que são —, estive, estou e estarei sempre aqui para lembrar que na democracia, as coisas são o que são. E se

1) o STF é o guardião da Constituição,
2) presunção de inocência significa presunção de inocência, e
3) a Constituição não apenas não proíbe como sustenta o art. 283 do CPP, dizendo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, bem… só resta ao STF reafirmar essa autonomia do Direito.

Porque, respeitando o CPP e a CF, o STF estará reafirmando a si próprio como guardião da Constituição.  Na democracia, há que se fazer a coisa certa. A realidade constrange (limita, traça fronteiras) e mostra que os mitos são mitos porque… não são de verdade:

Mito 1: O reconhecimento da constitucionalidade do art. 283 manda 180 mil “bandidos perigosos” para as ruas. Falso. Mentira. Mito. Que feio inventarem isso.
Mito 2: A decisão pela presunção de inocência proíbe a prisão. Falso. Mentira. Mito. Também é feio inventarem isso.
ito 3: Se o STF não der provimento às ADCs, as prisões em segundo grau serão automáticas. Falso. Pelo menos até o momento isso é mito. Só há dois votos nesse sentido, conforme explicitado na ADC 54, que ajudei a escrever.

Veja-se a formação de lendas urbanas. Assim como o sol “nascerá” amanhã, prisões preventivas e temporárias continuarão sendo absolutamente legítimas e, sobretudo, repito de outro modo para que fique claro, da presunção de inocência não decorre a proibição de prisão. O que fica é nada mais do que a obviedade: o art. 5º não obriga a prisão após segunda instância, como tentou dizer o TRF-4 em súmula (n. 122), essa sim, inconstitucional.

Porque, na democracia, as coisas são o que são. E por trás de todos os mitos, de todos os argumentos consequencialistas-utilitaristas, por trás de todas análises econômicas e bayesianas e probabilísticas e tabelísticas e quejandos, o ponto é o seguinte:

quem defende a tese da prisão tem o ônus de mostrar que a Constituição Federal obriga que se prenda após segunda instância.

Vejam: quem é a favor da prisão em segunda instância deve provar que a frase “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” torna obrigatória a prisão em segunda instância e que o artigo 283 é inconstitucional.

Isso é malabarismo retórico.  Daí por que é assustador ver gente do baixo e do alto clero jurídico defendendo o fim da presunção de inocência com base em argumentos vazios como “voz das ruas”, “opinião pública”, “impunidade”, com base nos mitos que falei acima. Porque uma coisa é minha tia mandando corrente de fake news no uatisap; uma coisa é o caminhoneiro (o final de semana estava cheio de mensagens de caminhoneiros) que acha que tem que prender todo mundo. Mas gente do Direito contra os direitos é outra coisa.

Jornalistas, jornaleiros, e principalmente os juristas, esses têm responsabilidade. Porque, na democracia, as coisas são o que são. Essa gente tem um fetiche pela “caminhoneirização do Direito”. Sabem bem, mas fazem igual. Razão cínica. Sabem bem o que o Direito, o que a Constituição diz. Mas não se importam. Entre o texto legal e seu significado público, optam pelo canto das sereias e a linguagem privada. É a moral fazendo uma fagocitose ruim do Direito.

Muita gente gosta de jogar para a plateia. Optam pela sanha autoritária, que acha que, num país com quase 800 mil presos, a solução é… prender mais. E a palavra é acha mesmo, porque os argumentos são todos baseados em achismos. Não sei quantos por cento são a favor de não sei o quê. Bom, a um, são mesmo? A dois, que pesquisa é essa? A três, qual foi o critério?

Quatro, e daí? Desde quando o Supremo Tribunal Federal virou lugar de plebiscito? Como falei na sustentação dia 17, STF deve fazer a coisa certa. Supremas Cortes — em todo o mundo — não disputam popularidade.

Suprema Corte não tem nada que ouvir voz das ruas. Primeiro porque ela nem existe. Segundo porque, mesmo que existisse, não tem autoridade. A autoridade é do Direito.

Como amigo da Corte — e não inimigo — , eu digo que ouvir a voz das ruas é a derrota do STF. A Suprema Corte que diz ouvir a voz das ruas está dizendo que abre mão de suas funções constitucionais. Pode ser autofágico. A Suprema Corte que ouve o canto das sereias em vez do sentido autêntico de um texto legal está ouvindo os inimigos da Corte.

Os inimicus querem uma espécie de “caminhoneirização do Direito”. Querem vencer no grito, no susto, bloqueando “estradas epistêmicas”. Sim, o movimento contra a presunção da inocência usa até whatsapp de caminhoneiros, tipo “se o STF decidir assim, vamos parar o país”. Incrível, não?

Mas, afinal, qual é a diferença entre o que dizem caminhoneiros e quejandos e o que apregoa, abertamente, (por todos) um professor como Modesto Carvalhosa, quem esculhamba o STF todos os dias e admite (estou sendo generoso) o seu fechamento? Isso tem nome: “caminhoneirização do Direito”, sem ofensa a essa nobre classe.

De jornalistas a jornaleiros, de generais a advogados, de professores a caminhoneiros, há um conjunto de pessoas que quer o terrorismo autoritário. Seus membros querem pintar um cenário em que a reafirmação do Direito leva à “impunidade” — outro argumento retórico que não para em pé, já que ninguém é a favor da impunidade.

Os amicus curiae, como eu, esses querem que a Suprema Corte esteja à altura da própria dignidade e lute contra essa caminhoneirização.

O Supremo Tribunal Federal deve fazer a coisa certa.

Deve afirmar a Constituição, não o editorial dos jornais e TVs que ouvem os jornaleiros.

Deve ouvir os amigos, não os inimigos.

Ministros, estamos juntos. Pela força normativa da Constituição. Porque a realidade constrange e, ao final do dia, o Direito fica e se descobre que os mitos… são só mitos. Moinhos de vento são só moinhos de vento.

É hora de fazer a coisa certa. E os amigos da democracia serão também amigos da Corte.

Redação

5 Comentários

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  1. Na sociedade do espetáculo o Direito perde sua substância. Portanto, são irrelevantes as discussões jurídicas feitas pelos juristas. Eles não comandam o show e não podem escrever o enredo da encenação que substiti o julgamento dos processos. Isso é particularmente verdade quandl o processo já foi julgado pela mídia com base em critérios político-economicos. Enquanto os juristas não saírem do campo jurídico para pesquisar, descrever e estudar os conceitos pseudo-jurídicos que substituem a Lei, a jurisprudência e a doutrina durante os julgamentos nenhuma mudança irá ocorrer. E eles continuarão a ser ignorados, especialmente se forem sofisticados. O espetáculo desdenha a sofisticação e se expande ao infinito justamente porque simplifica os conceitos usando técnicas teatrais.

  2. Figuras como Fux, Fachin, Barroso e os demais que votaram contra a Constituição não o fizeram por não saber o que era uma cláusula pétrea, ora, ora. Infelizmente, não é ocioso repetir isto. O fato é que o calculo POLÍTICO (mesquinho) deu errado. Em vez de fazer o poder passar novamente para as mãos dos grupos que mandaram e desmandaram no período pos ditadura, sobretudo nos anos 90, fez cair no colo de um bando de boçais de marca maior do baixissimo clero da política. “Era o que tinha”… A incultura sociológica e os preconceitos compartilhados com essa turma falaram ainda mais alto que a covardia

  3. Figuras como Fux, Fachin, Barroso e os demais que votaram contra a Constituição não o fizeram por não saberem o que era uma cláusula pétrea, ora, ora. Infelizmente, não é ocioso repetir isto. O fato é que o calculo POLÍTICO (mesquinho) deu errado. Em vez de fazer o poder passar novamente para as mãos dos grupos que mandaram e desmandaram no período pos ditadura, sobretudo nos anos 90, fez cair no colo de um bando de boçais de marca maior do baixissimo clero da política. “Era o que tinha”… A incultura sociológica e os preconceitos compartilhados com essa turma falaram ainda mais alto que a covardia

  4. Nos estados democráticos de direito, as antinomias jurídicas são resolvidas com base em 4 critérios: O critério da hierarquia, o critério da especialidade, o critério cronológico e o critério da aplicação da lei mais benéfica à parte em desvantagem.

    Consoante o critério da hierarquia, um conflito entre dispositivos de leis de diferentes graus de hierarquia é solucionado em favor da lei hierarquicamente superior. Um conflito entre um dispositivo constitucional e um dispositivo de lei federal é resolvido em favor do dispositivo constitucional. Pelo critério da especialidade, se um dispositivo de uma legislação especial conflita com um dispositivo de uma lei comum, a solução se dá em favor da lei especial. Pelo critério da cronologia, uma lei posterior revoga os dispositivos de lei anterior que a contrariem. Finalmente, pelo critério da aplicação da lei mais benéfica à parte em desvantagem, como é o caso do réu criminal em relação ao Estado/Ministério Público, aplica-se a lei menos desfavorável ao réu.

    Pois bem. Foi detectada uma antinomia entre os arts. 283 e 637, ambos do Código de Processo Penal. Como a redação do art. 283, do CPP, é mais recente do que a redação do art. 637 do mencionado Código Processual, a antinomia (aparente) deveria ser (e de fato foi) solucionada com base no critério cronológico, com a prevalência do dispositivo cuja redação é mais recente sobre o artigo que o contraria, isto é, o art. 283, do CPP, deveria prevalecer sobre o art. 637, igualmente do CPP. Só que o Fachin resolveu este conflito jurídico com base no critério cronológico ignorando o critério da especialidade, segundo o qual, havendo contradição entre normas jurídicas, prevalece a específica sobre a geral. Fachin resolveu o conflito jurídico na seara processual penal recorrendo aos arts. 995, e 1.029, § 5º, ambos do Código de Processo Civil, por ser a redação destes dispositivos mais recente do que a redação do art. 283, do CPP.

    Por sua vez, a Ministra Rosa Weber reconheceu igualmente o conflito entre os arts. 283 e 637, ambos do CPP. Entretanto, ela descartou o art. 283 do CPP, cuja redação é mais recente, em benefício do art. 637, com base no Princípio da Colegialidade, nada obstante ela tenha reconhecido que, nesse caso específico, o mencionado Princípio da Colegialidade contraria o Princípio Constitucional da Presunção de Inocência (antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória). Ora, pelo critério da hierarquia, havendo conflito entre normas de diferentes hierarquias, prevalece a norma hierarquicamente superior. Em sendo assim, a Ministra Rosa Weber deveria ter feito o contrário do que fez: deveria ter sacrificado o Princípio da Colegialidade em benefício do Princípio Constitucional da Não-Culpabilidade (antes do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória) e, consequentemente, o deveria ter descartado o art. 637 do CPP, em favor do art. 283 do mesmo CPP.

    Ou o Fachin e a Rosa Weber são burros no que diz respeito à solução de antinomias jurídicas ou agiram de má-fé. Por isso, acho difícil ele atender ao seu pedido de dar uma interpretação literal ao art. 283, do CPP.

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