Lista de livros: A Era das Revoluções (1789-1848) – Eric J. Hobsbawm

Lista de livros: A Era das Revoluções (1789-1848) – Eric J. Hobsbawm

Editora: Paz e Terra

ISBN: 978-85-7753-099-1

Tradução: Marcos Penchel e Maria L. Teixeira

Opinião: muito bom

Páginas: 456

      “Economicamente, entretanto, a sociedade rural ocidental era muito diferente. O camponês típico tinha perdido muito da sua condição de servo no final da Idade Média, embora ainda frequentemente guardasse muitas marcas amargas da dependência legal. A propriedade típica já de há muito deixara de ser uma unidade de iniciativa econômica e tinha-se tornado um sistema de cobrança de aluguéis e de outros rendimentos monetários. O camponês mais ou menos livre, grande, médio ou pequeno, era o lavrador típico. Se de alguma forma arrendatário, pagava aluguel ao senhor das terras (ou, em algumas áreas, uma quota da safra). Caso fosse tecnicamente um livre proprietário, provavelmente ainda devia ao senhor local uma série de obrigações que podiam ou não ser convertidas em dinheiro (como por exemplo, a obrigação de enviar seu trigo para o moinho do senhor), assim como devia impostos ao príncipe, dízimos à Igreja, e algumas obrigações de trabalho forçado, todas elas em contraste com a isenção relativa das camadas sociais mais altas. Mas se estes vínculos políticos fossem retirados, uma enorme parte da Europa surgiria como uma área de agricultura camponesa; uma área na qual, geralmente, uma minoria de camponeses abastados tendesse a se tornar de fazendeiros comerciais, vendendo ao mercado urbano um excedente permanente da safra, e uma maioria de pequenos e médios camponeses vivesse de suas propriedades mais ou menos de forma autossuficiente, a menos que elas fossem tão pequenas que os obrigassem a trabalhar parte do tempo na agricultura ou na manufatura, em troca de salários.”

 

       “A alimentação da Europa era essencialmente regional. Os produtos de outros climas eram ainda raridades próximas do luxo, exceto talvez o açúcar, o mais importante alimento importado dos trópicos e cuja doçura provocou mais amargura humana do que qualquer outro.”

 

       “Pois, de fato, o “iluminismo”, a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza – de que estava profundamente imbuído o século XVIII – derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos. E seus maiores campeões eram as classes economicamente mais progressistas, as que mais diretamente se envolviam nos avanços tangíveis da época: os círculos mercantis e os financistas e proprietários economicamente iluminados, os administradores sociais e econômicos de espírito científico, a classe média instruída, os fabricantes e os empresários. (…)

       Estes homens se organizavam por toda parte em lojas de franco-maçonaria, onde as distinções de classe não importavam e a ideologia do iluminismo era propagada com um desinteressado denodo.

     É significativo que os dois principais centros dessa ideologia fossem também os da dupla revolução, a França e a Inglaterra; embora de fato as ideias iluministas ganhassem uma voz corrente internacional mais ampla em suas formulações francesas (até mesmo quando fossem simplesmente versões galicistas de formulações britânicas). Um individualismo secular, racionalista e progressista dominava o pensamento “esclarecido”. Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o seu principal objetivo: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo, da superstição das igrejas (distintas da religião “racional” ou “natural”), da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida, a fraternidade de todos os homens eram seus slogans. No devido tempo se tornaram os slogans da Revolução Francesa.

     O reinado da liberdade individual não poderia deixar de ter as consequências mais benéficas. Os mais extraordinários resultados podiam ser esperados – podiam de fato já ser observados como provenientes – de um exercício irrestrito do talento individual num mundo de razão. A apaixonada crença no progresso que professava o típico pensador do iluminismo refletia os aumentos visíveis no conhecimento e na técnica, na riqueza, no bem-estar e na civilização que podia ver em toda a sua volta e que, com certa justiça, atribuía ao avanço crescente de suas ideias. No começo do século XVIII, as bruxas ainda eram queimadas; no final, os governos do iluminismo, como o austríaco, já tinham abolido não só a tortura judicial mas também a escravidão. O que não se poderia esperar se os remanescentes obstáculos ao progresso, tais como os interesses estabelecidos do feudalismo e da Igreja, fossem eliminados?

     Não é propriamente correto chamarmos o “iluminismo” de uma ideologia da classe média, embora houvesse muitos iluministas – e foram eles os politicamente decisivos – que assumiram como verdadeira a proposição de que a sociedade livre seria uma sociedade capitalista. Em teoria seu objetivo era libertar todos os seres humanos. Todas as ideologias humanistas, racionalistas e progressistas estão implícitas nele, e de fato surgiram dele. Embora na prática os líderes da emancipação exigida pelo iluminismo fossem provavelmente membros dos escalões médios da sociedade, embora os novos homens racionais o fossem por habilidade e mérito e não por nascimento, e embora a ordem social que surgiria de suas atividades tenha sido uma ordem capitalista e “burguesa”.

     É mais correto chamarmos o “iluminismo” de ideologia revolucionária, apesar da cautela e moderação política de muitos de seus expoentes continentais, a maioria dos quais – até a década de 1780 – depositava sua fé no despotismo esclarecido. Pois o iluminismo implicava a abolição da ordem política e social vigente na maior parte da Europa. Era demais esperar que os anciens régimes se abolissem voluntariamente. Ao contrário, como vimos, em alguns aspectos eles estavam se fortalecendo contra o avanço das novas forças econômicas e sociais. E suas fortalezas (fora da Grã-Bretanha, as Províncias Unidas e alguns outros lugares onde já tinham sido derrotados) eram as próprias monarquias em que os iluministas moderados depositavam sua fé.”

 

       “O que significa a frase “a revolução industrial explodiu”? Significa que a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços.”

 

       “Sob qualquer aspecto, a revolução industrial foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades.”

 

       “A perspectiva tradicional que viu a história da revolução industrial britânica primordialmente em termos de algodão é correta. A primeira indústria a se revolucionar foi a do algodão, e é difícil perceber que outra indústria poderia ter empurrado um grande número de empresários particulares rumo à revolução. Até a década de 1830, o algodão era a única indústria britânica em que predominava a fábrica ou o “engenho” (o nome derivou-se do mais difundido estabelecimento pré-industrial a empregar pesada maquinaria a motor); a princípio (1780-1815), principalmente na fiação, na cardação e em algumas operações auxiliares, depois (de 1815) também cada vez mais na tecelagem. As “fábricas” de que tratavam os novos Decretos Fabris eram, até a década de 1860, entendidas exclusivamente em termos de fábricas têxteis e predominantemente em termos de engenhos algodoeiros. A produção fabril em outros ramos têxteis teve desenvolvimento lento antes da década de 1840, e em outras manufaturas seu desenvolvimento foi desprezível. Nem mesmo a máquina a vapor, embora aplicada a numerosas outras indústrias por volta de 1815, era usada fora da mineração, que a tinha empregado pioneiramente. Em 1830, a “indústria” e a “fábrica” no sentido moderno ainda significavam quase que exclusivamente as áreas algodoeiras do Reino Unido.

      Com isto não se pretende subestimar as forças que introduziram a inovação industrial em outras mercadorias de consumo, notadamente outros produtos têxteis, alimentos e bebidas, cerâmica e outros produtos de uso doméstico, grandemente estimuladas pelo rápido crescimento das cidades. Mas, para começar, estas indústrias empregavam muito menos pessoal: nenhuma se aproximava sequer remotamente do milhão e meio de pessoas empregadas diretamente na indústria algodoeira ou dela dependentes em 1833. Em segundo lugar, seu poder de transformação era muito menor: a cervejaria, que era em muitos aspectos um negócio técnica e cientificamente muito mais avançado e mecanizado, e que se revolucionou muito antes da indústria algodoeira, pouco afetou a economia à sua volta, como pode ser provado pela grande cervejaria Guinness em Dublin, que deixou o resto de Dublin e da economia irlandesa (embora não o paladar local) idênticos ao que eram antes de sua construção. As exigências que se derivaram do algodão – mais construções e todas as atividades nas novas áreas industriais, máquinas, inovações químicas, eletrificação industrial, uma frota mercante e uma série de outras atividades – foram bastantes para que se credite a elas uma grande proporção do crescimento econômico da Grã-Bretanha até a década de 1830. Em terceiro lugar, a expansão da indústria algodoeira foi tão vasta e seu peso no comércio exterior da Grã-Bretanha tão grande que dominou os movimentos de toda a economia. A quantidade de algodão em bruto importada pela Grã-Bretanha subiu de 11 milhões de libras-peso em 1785 para 588 milhões em 1850; a produção de tecidos, de 40 milhões para 2,025 bilhões de jardas.

     Os produtos de algodão constituíam entre 40 e 50% do valor anual declarado de todas as exportações britânicas entre 1816 e 1848. Se o algodão florescia, a economia florescia, se ele caía, também caía a economia. Suas oscilações de preço determinavam a balança do comércio nacional. Só a agricultura tinha um poder comparável, e, no entanto, estava em visível declínio.”

 

       “Brevemente as nações esclarecidas colocarão em julgamento aqueles que têm até aqui governado os seus destinos. Os reis fugirão para os desertos, para a companhia dos animais selvagens que a eles se assemelham; e a Natureza recuperará os seus direitos.”

(Saint-Just; Sur La Constitution de Ia France, Discours prononcé à Ia Convention, 24 de abril de 1793.)

 

       “O exército era uma carreira como qualquer outra das muitas abertas ao talento pela revolução burguesa, e os que nele obtiveram sucesso tinham um interesse investido na estabilidade interna como qualquer outro burguês. Foi isto que fez do exército, a despeito de seu jacobinismo embutido, um pilar do governo pós-termidoriano, e de seu líder Bonaparte uma pessoa adequada para concluir a revolução burguesa e começar o regime burguês. O próprio Napoleão Bonaparte, embora cavalheiro de nascimento pelos padrões de sua bárbara ilha natal da Córsega, era um carreirista típico daquela espécie. Nascido em 1769, ambicioso, descontente e revolucionário, subiu vagarosamente na artilharia, um dos poucos ramos do exército real em que a competência técnica era indispensável. Durante a Revolução, e especialmente sob a ditadura jacobina que ele apoiou firmemente, foi reconhecido por um comissário local em um fronte de suma importância – por casualidade, um patrício da Córsega, fato que dificilmente pode ter abalado suas intenções – como um soldado de dons esplêndidos e muito promissor. O Ano II fez dele um general. Sobreviveu à queda de Robespierre, e um dom para o cultivo de ligações úteis em Paris ajudou-o em sua escalada após este momento difícil. Agarrou a sua chance na campanha italiana de 1796, que fez dele o inquestionado primeiro soldado da República, que agia virtualmente independente das autoridades civis. O poder foi meio atirado sobre seus ombros e meio agarrado por ele quando as invasões estrangeiras de 1799 revelaram a fraqueza do Diretório e a sua própria indispensabilidade. Tornou-se primeiro cônsul, depois cônsul vitalício e Imperador. E com sua chegada, como que por milagre, os insolúveis problemas do Diretório se tornaram solúveis. Em poucos anos a França tinha um Código Civil, uma concordata com a Igreja e até mesmo o mais significativo símbolo da estabilidade burguesa – um Banco Nacional. E o mundo tinha o seu primeiro mito secular.

      Os leitores mais velhos ou os de países antiquados conhecem o mito napoleônico tal como ele existiu durante o século em que nenhuma sala da classe média estava completa sem o seu busto, e talentos panfletários podiam afirmar, mesmo como piada, que ele não era um homem mas um deus-sol. O extraordinário poder deste mito não pode ser adequadamente explicado nem pelas vitórias napoleônicas nem pela propaganda napoleônica, ou tampouco pelo próprio gênio indubitável de Napoleão. Como homem ele era inquestionavelmente muito brilhante, versátil, inteligente e imaginativo, embora o poder o tivesse tornado sórdido. Como general, não teve igual; como governante, foi um planejador, chefe e executivo soberbamente eficiente e um intelectual suficientemente completo para entender e supervisionar o que seus subordinados faziam. Como indivíduo parece ter irradiado um senso de grandeza, mas a maioria dos que deram esse testemunho, por exemplo, Goethe, viram-no no auge de sua fama, quando o mito já o tinha envolvido. Foi, sem sombra de dúvidas, um grande homem e – talvez com a exceção de Lênin – seu retrato é o que a maioria das pessoas razoavelmente instruídas, mesmo hoje, reconheceriam mais prontamente numa galeria de personagens da história, ainda que somente pela tripla marca registrada do tamanho pequeno, do cabelo escovado para a frente sobre a testa e da mão enfiada no colete entreaberto. Talvez não tenha sentido fazer uma comparação dele, em termos de grandeza, com candidatos a esse título no século XX.

      Pois o mito napoleônico baseia-se menos nos méritos de Napoleão do que nos fatos, então sem paralelo, de sua carreira. Os homens que se tornaram conhecidos por terem abalado o mundo de forma decisiva no passado tinham começado como reis, como Alexandre, ou patrícios, como Júlio César, mas Napoleão foi o “pequeno cabo” que galgou o comando de um continente pelo seu puro talento pessoal. (Isto não foi estritamente verdadeiro, mas sua ascensão foi suficientemente meteórica e alta para tornar razoável a descrição.) Todo jovem intelectual que devorasse livros, como o jovem Bonaparte o fizera, escrevesse maus poemas e romances e adorasse Rousseau poderia, a partir daí, ver o céu como o limite e seu monograma enfaixado em lauréis. Todo homem de negócios daí em diante tinha um nome para sua ambição: ser – os próprios clichês o denunciam – um “Napoleão das finanças” ou da indústria. Todos os homens comuns ficavam excitados pela visão, então sem paralelo, de um homem comum que se tornou maior do que aqueles que tinham nascido para usar coroas. Napoleão deu à ambição um nome pessoal no momento em que a dupla revolução (industrial e francesa) tinha aberto o mundo aos homens de vontade. E ele foi mais ainda. Foi um homem civilizado do século XVIII, racionalista, curioso, iluminado, mas também discípulo de Rousseau o suficiente para ser ainda o homem romântico do século XIX. Foi o homem da Revolução, e o homem que trouxe estabilidade. Em síntese, foi a figura com que todo homem que partisse os laços com a tradição podia-se identificar em seus sonhos.

     Para os franceses ele foi também algo bem mais simples: o mais bem-sucedido governante de sua longa história. Triunfou gloriosamente no exterior, mas, em termos nacionais, também estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das instituições francesas como existem até hoje. Reconhecidamente, a maioria de suas ideias – talvez todas – foram previstas pela Revolução e o Diretório; sua contribuição pessoal foi fazê-las um pouco mais conservadoras, hierárquicas e autoritárias. Mas seus predecessores apenas previram; ele realizou. Os grandes monumentos de lucidez do direito francês, os Códigos que se tornaram modelos para todo o mundo burguês, exceto o anglo-saxão, foram napoleônicos. A hierarquia dos funcionários – a partir dos prefeitos, para baixo –, das cortes, das universidades e escolas foi obra sua. As grandes “carreiras” da vida pública francesa, o exército, o funcionalismo público, a educação e o direito ainda têm formas napoleônicas. Ele trouxe estabilidade e prosperidade para todos, exceto para os 250 mil franceses que não retornaram de suas guerras, embora mesmo para os parentes deles tivesse trazido a glória. Sem dúvida, os britânicos se viam como lutadores pela causa da liberdade contra a tirania; mas em 1815 a maioria dos ingleses era mais pobre do que o fora em 1800, enquanto que a maioria dos franceses era quase que certamente mais rica, e ninguém, exceto os trabalhadores assalariados cujo número era insignificante, tinha perdido os substanciais benefícios econômicos da Revolução. Há pouco mistério quanto à persistência do bonapartismo como uma ideologia de franceses apolíticos, especialmente dos camponeses mais ricos, depois da queda do ditador. Foi necessário um segundo Napoleão menor, entre 1851 e 1870, para dissipá-la.

      Ele destruíra apenas uma coisa: a Revolução Jacobina, o sonho de igualdade, liberdade e fraternidade, do povo se erguendo na sua grandiosidade para derrubar a opressão. Este foi um mito mais poderoso do que o dele, pois, após a sua queda, foi isto e não a sua memória que inspirou as revoluções do século XIX, inclusive em seu próprio país.”

 

       “Não é verdade que a guerra seja determinada por princípio divino; não é verdade que a terra tenha sede de sangue. O próprio Deus amaldiçoa a guerra, como o fazem também os homens que a empreendem e que a suportam em secreto horror.”

(Alfred de Vigny, Servitude et grandeur militaires)

 

       “A estratégia e a tática militares dos Estados ortodoxos do século XVIII não esperavam nem desejavam a participação civil nas guerras: Frederico, o Grande, disse com firmeza a seus leais berlinenses, que se ofereceram para lutar contra os russos, para deixar a guerra aos profissionais a quem ela pertencia. Mas isto transformou a ação bélica dos franceses de Napoleão e os fez incomensuravelmente superiores aos exércitos do velho regime. Tecnicamente os velhos exércitos eram mais bem treinados e disciplinados, e onde estas qualidades eram decisivas, como na guerra naval, os franceses foram sensivelmente inferiores. Eles eram bons corsários e rápidos incursores, mas não podiam compensar a falta de um número suficiente de marujos treinados e, sobretudo, de oficiais navais competentes, classe que havia sido dizimada pela Revolução, pois constituía-se amplamente de elementos provenientes da pequena nobreza normanda e bretã, e que não podia ser rapidamente improvisada. Em seis grandes e oito pequenas batalhas navais entre os britânicos e os franceses, as baixas francesas foram cerca de dez vezes maiores que as dos ingleses.

     Mas no que tange à organização improvisada, mobilidade, flexibilidade e acima de tudo, pura coragem ofensiva e moral de luta, os franceses não tinham rivais. Estas vantagens não dependiam do gênio militar de ninguém, pois o saldo militar dos franceses antes que Napoleão tomasse o poder era bastante impressionante, e a qualidade média do generalato francês não era excepcional. Mas isto deve ter em parte dependido do rejuvenescimento dos quadros militares franceses dentro e fora do país, o que é uma das principais consequências de qualquer revolução. Em 1806, de 142 generais do poderoso exército prussiano, 79 tinham mais de 60 anos de idade, bem como um-quarto de todos os comandantes de regimentos. Mas em 1806 Napoleão, que chegou a general aos 24 anos, Murat, que comandou uma brigada aos 26, Ney, que o fez aos 27, e Davout estavam todos entre 26 e 37 anos de idade. (…)

       No mar, entretanto, os franceses estavam por esta época completamente derrotados. Após a batalha de Trafalgar (1805), qualquer chance não apenas de invadir a Grã-Bretanha pelo Canal da Mancha, como também de manter contatos ultramarinos, desapareceu. O único modo que parecia haver para derrotar a Grã-Bretanha era a pressão econômica, e isto Napoleão tentou exercer eficazmente através do Sistema Continental (1806). As dificuldades de impor este bloqueio de maneira eficiente minaram a estabilidade do Tratado de Tilsit e levaram ao rompimento com a Rússia, que foi o ponto decisivo da sorte de Napoleão. A Rússia foi invadida e Moscou ocupada. Se o czar tivesse feito a paz como a maioria dos inimigos de Napoleão tinham feito sob circunstâncias semelhantes, o jogo teria terminado. Mas o czar não estabeleceu a paz, e Napoleão se viu diante da opção entre uma guerra interminável, sem perspectiva clara de vitória, ou a retirada. Ambas eram igualmente desastrosas.

     Os métodos do exército francês, como vimos, implicavam rápidas campanhas em áreas suficientemente ricas e densamente povoadas para que ele pudesse retirar sua manutenção da terra. Mas o que funcionou na Lombardia e na Renânia, onde estes processos tinham sido desenvolvidos pela primeira vez, e ainda era viável na Europa Central, fracassou totalmente nos amplos, pobres e vazios espaços da Polônia e da Rússia. Napoleão foi derrotado não tanto pelo inverno russo quanto por seu fracasso em manter o Grande Exército com um suprimento adequado. A retirada de Moscou destruiu o Exército. De 610 mil homens que tinham, num ou noutro momento, atravessado a fronteira russa, 100 mil retornaram aproximadamente.

     Nessas circunstâncias, a coalizão final contra os franceses foi formada não só por seus velhos inimigos e vítimas mas também por todos os que se sentiam ansiosos por estar do lado que a esta altura aparecia claramente como o vencedor; só o rei da Saxônia abandonou sua adesão à França tarde demais. Um novo exército francês, largamente imaturo, foi derrotado em Leipzig (1813), e os aliados avançaram inexoravelmente sobre a França, a despeito das brilhantes manobras de Napoleão, enquanto os britânicos avançavam sobre ela a partir da Península. Paris foi ocupada e o Imperador renunciou a 6 de abril de 1814. Ele tentou restaurar seu poder em 1815, mas a batalha de Waterloo (junho de 1815) o liquidou.”

 

       “O longo período de melhoria econômica que antecedeu a 1789 fez com que a fome e suas companheiras, a peste e a praga, não acrescentassem muito às devastações das batalhas e dos saques, pelo menos até depois de 1811. (O principal período de fome ocorreu depois das guerras, em 1816-17.) As campanhas militares tendiam a ser curtas e impetuosas, e os armamentos usados – de artilharia relativamente leve e móvel – não eram muito destrutivos segundo os padrões modernos. Os cercos não eram comuns. Os incêndios eram provavelmente os maiores perigos para as habitações e os meios de produção, e as pequenas casas ou fazendas eram facilmente reconstruídas. A única destruição material realmente difícil de reparar rapidamente em uma economia pré-industrial é a das florestas ou plantações de azeitonas e frutas, que levam muitos anos para crescer, e não parece ter havido muita destruição desse tipo na época.

      Consequentemente, as perdas puramente humanas devidas a estas duas décadas de guerra não parecem ter sido, pelos padrões modernos, assustadoramente altas, embora, na verdade, nenhum governo tenha tentado avaliá-las e todas as modernas estimativas sejam vagas e não passem de puras conjecturas, exceto as que se referem às baixas francesas e a alguns casos especiais. Um milhão de mortos nas guerras de todo o período seria um índice favorável se comparado às perdas isoladas de qualquer um dos principais países beligerantes nos quatro anos e meio da Primeira Guerra Mundial ou mesmo aos aproximadamente 600 mil mortos da Guerra Civil Americana de 1861-5. Até mesmo dois milhões, para mais de duas décadas de guerra generalizada, não pareceria um índice particularmente assassino, quando nos lembramos da extraordinária capacidade mortífera da fome e da epidemia naqueles tempos: ainda em 1865, na Espanha, uma epidemia de cólera, segundo estimativas, fez 236.744 vítimas.

      De fato, nenhum país indica uma desaceleração acentuada do crescimento populacional durante este período, com exceção talvez da França. Para a maioria dos habitantes da Europa, exceto os combatentes, a guerra provavelmente não significou mais do que uma interrupção direta ocasional do cotidiano, se é que chegou a significar isto. As famílias do interior nos romances de Jane Austen seguiam seus afazeres como se a guerra não existisse. Os Mecklenburgers, de Fritz Reuter, recordam-se da ocupação estrangeira como anedota e não como um drama; o velho Herr Kuegelgen, lembrando-se de sua infância na Saxônia (uma das “rinhas da Europa”, cuja situação política e geográfica atraía exércitos e batalhas como igualmente apenas a Bélgica e a Lombardia o faziam), só relembrou das poucas semanas em que os exércitos marcharam sobre Dresden ou ali se aquartelaram. Reconhecidamente, o número de homens armados envolvidos era muito maior do que tinha sido comum em guerras anteriores, embora não fosse extraordinário pelos padrões modernos. Até mesmo o recrutamento não implicava a convocação de mais que uma parte dos homens capacitados: o departamento francês da Costa do Ouro, durante o reinado de Napoleão, forneceu somente 11 mil homens de seus 350 mil habitantes, ou seja, 3,15%, e entre 1800 e 1815 não mais que 7% da população da França foi recrutada, contra os 21% durante o período bem mais curto da Primeira Guerra Mundial. Ainda assim, em números absolutos, a quantidade era muito grande. O levée en masse de 1793-4 colocou talvez 630 mil homens em armas (de um recrutamento teórico de 770 mil); a força militar de Napoleão durante o período de paz de 1805 era de mais ou menos 400 mil homens, e, no início da campanha contra a Rússia, em 1812, o Grande Exército se constituía de 700 mil homens (300 mil dos quais não eram franceses), sem contar as tropas francesas no resto do continente, principalmente na Espanha. As mobilizações permanentes dos adversários da França eram muito menores, ainda que somente devido ao fato de que eles estivessem muito menos continuamente no campo de batalha (com a exceção da Grã-Bretanha) ou porque os problemas financeiros e de organização tornavam muitas vezes difícil a mobilização total (por exemplo, para os austríacos, que em 1813 foram autorizados, pelo tratado de paz de 1809, a manter um exército de 150 mil homens, mas que mantinham apenas 60 mil realmente preparados para uma campanha). Os britânicos, por outro lado, mantinham um número surpreendentemente alto de homens mobilizados. No seu auge (1813-14), com bastante dinheiro empenhado num exército regular de 300 mil homens e mais 140 mil marinheiros e fuzileiros navais, devem ter tido uma carga proporcionalmente mais pesada com suas forças militares do que os franceses. 

      As perdas eram pesadas, embora não excessivamente, novamente segundo os aniquiladores padrões do nosso século; mas curiosamente poucas dessas perdas deveram-se realmente ao inimigo. Somente 6 ou 7% por cento dos marinheiros britânicos que morreram entre 1793 e 1815 sucumbiram diante dos franceses; 80% morreram devido a doenças e acidentes. A morte no campo de batalha era um risco pequeno; somente 2% das baixas em Austerlitz e talvez 8 ou 9% das de Waterloo corresponderam de fato às mortes em combate. Os riscos realmente aterradores da guerra eram a negligência, a sujeira, a má organização, os serviços médicos deficientes e a ignorância em termos higiênicos, que massacravam os feridos, os prisioneiros e, em propícias condições climáticas, como nos trópicos, praticamente todos. As operações militares propriamente ditas matavam pessoas, direta ou indiretamente, e destruíam equipamento produtivo, mas como vimos, nada faziam à ponto de interferir seriamente no curso normal da vida e do desenvolvimento de um país. As exigências econômicas da guerra e a guerra econômica tinham consequências muito maiores. Pelos padrões do século XVIII, as guerras revolucionárias e napoleônicas eram excessivamente caras, e de fato seus custos chegavam a impressionar os contemporâneos, talvez mais do que as perdas humanas que provocavam. Certamente a queda no ônus financeiro da guerra na geração pós-Waterloo foi muito mais notável do que a queda nas perdas de vidas humanas: estima-se que enquanto as guerras entre 1821 e 1850 custaram uma média de menos de 10% por ano do valor equivalente em 1790-1820, a média anual de mortes causadas pela guerra permaneceu a um nível um pouco menor que 25% do período anterior.”

 

       “Fora da Europa, é difícil falar de nacionalismo. As muitas repúblicas latino-americanas que substituíram os velhos impérios espanhol e português (para sermos exatos, o Brasil se tornou uma monarquia independente e assim permaneceu de 1816 a 1889), com suas fronteiras frequentemente refletindo pouco mais do que a distribuição das propriedades dos nobres que tinham apoiado essa ou aquela rebelião local, começaram a adquirir interesses políticos estáveis e aspirações territoriais. O ideal pan-americano original de Simon Bolívar (1783- 1830) na Venezuela e San Martin (1778-1850) na Argentina foi impossível de realizar, embora persistisse como uma poderosa corrente revolucionária em todas as regiões unidas pela língua espanhola, exatamente como o pan-balcanismo, o herdeiro da unidade ortodoxa contra a islâmica, persistiu e pode ainda persistir hoje em dia. A grande extensão e variedade do continente, a existência de focos de rebelião independentes no México (que deram origem à América Central), na Venezuela e em Buenos Aires, e o especial problema do centro do colonialismo espanhol no Peru, que foi libertado a partir de fora, impunham uma fragmentação automática. Mas as revoluções latino-americanas foram obra de pequenos grupos de aristocratas, soldados e elites afrancesadas “evoluídas”, deixando a massa da passiva população branca, católica e pobre, e dos índios, indiferente ou hostil. Só no México a independência foi conquistada pela iniciativa de um movimento de massa agrário, isto é, indígena, que marchou sob a bandeira da Virgem de Guadalupe; e por isso o México trilhou desde então um caminho diferente e politicamente mais avançado que o resto da América Latina continental. Entretanto, mesmo entre a minúscula camada dos latino-americanos politicamente decisivos, seria anacrônico falarmos nesse período de algo mais que o embrião da “consciência nacional” colombiana, venezuelana, equatoriana etc.”

 

       “Na Índia a terra pertencia – de jure ou de facto – a coletividades autogovernadas (tribos, clãs, comunas de aldeias, irmandades, etc.), e o governo recebia uma percentagem de sua produção. Embora algumas terras fossem de certa forma alienáveis, e algumas relações agrárias pudessem ser interpretadas como arrendamentos e alguns pagamentos rurais como renda, não havia de fato nem senhores feudais, nem arrendatários, nem propriedade individual da terra ou arrendamento no sentido inglês. Era uma situação totalmente desagradável e incompreensível para os governantes e administradores britânicos, que então trataram de inventar a organização rural com que estavam familiarizados.”

 

       “As massas de novos proletários tinham que se adaptar ao ritmo industrial de trabalho por meio da mais cruel disciplina ou então eram largadas para apodrecerem caso não a aceitassem. E ainda assim, até hoje, o coração se contrai ante a visão do panorama construído por aquela geração: Esta sombria devoção ao utilitarismo burguês, que os evangelistas e puritanos partilhavam com os agnósticos “filósofos radicais” do século XVIII, que a verbalizaram em termos lógicos para eles, produziu sua própria beleza funcional nas estradas de ferro-pontes e armazéns, e seu horror romântico nas infindáveis fileiras de casinhas cinzentas ou avermelhadas envoltas em fumaça e dominadas pelas fortalezas das fábricas.

     A nova burguesia vivia fora dessa paisagem (se tivesse acumulado dinheiro suficiente para se mudar), ministrando autoridade, educação moral e assistência ao esforço missionário entre os pagãos negros no exterior. Seus homens personificavam o dinheiro, que provava seu direito de dominar o mundo; suas mulheres, que o dinheiro dos maridos privava até da satisfação de realmente executar o trabalho doméstico, personificavam a virtude da classe: ignorantes (“seja boa, doce donzela, e deixe quem quiser ser inteligente”), sem instrução, pouco práticas, teoricamente assexuadas, sem património e protegidas, elas foram o único luxo a que se permitiu a era da frugalidade e do cada um por si.”

 

       “O período que culminou por volta da metade do século foi, portanto, uma época de insensibilidade sem igual, não só porque a pobreza que rodeava a respeitabilidade da classe média era tão chocante que o homem rico preferia não vê-la, deixando que seus horrores provocassem impacto apenas sobre os visitantes estrangeiros (como é o caso hoje em dia das favelas da índia), mas também porque os pobres, como os bárbaros do exterior, eram tratados como se não fossem seres humanos. Se seu destino era o de se tornarem trabalhadores industriais, eles eram simplesmente massa que deveria ser modelada pela disciplina através da pura coerção, sendo a draconiana disciplina fabril suplementada com a ajuda do Estado. (É bastante característico que a opinião da classe média contemporânea não percebesse qualquer incompatibilidade entre o princípio de igualdade perante a lei e os códigos trabalhistas deliberadamente discriminatórios que, como no caso do Código Britânico de Patrões e Empregados, de 1823, puniam os trabalhadores com a prisão por quebra de contrato e os empregadores com modestas multas, se tanto.) Eles deveriam estar constantemente à beira da indigência, porque, caso contrário, não trabalhariam, sendo inacessíveis às motivações “humanas”. “É no próprio interesse do trabalhador”, disseram os empregadores a Viller-mé no final da década de 1830, “que ele deve estar sempre fustigado pela necessidade, pois assim ele não dará a seus filhos um mau exemplo, e sua pobreza será uma garantia de sua boa conduta”.”

 

       “O hiato entre os ricos e os pobres certamente estivesse crescendo de uma maneira bastante clara. A época em que a Baronesa de Rothschild usou um milhão e meio de francos em joias no baile de máscaras do Duque de Orleans, em 1842, era a mesma em que John Bright assim descreveu as mulheres de Rochdale: “2 mil mulheres e moças passaram pelas ruas cantando hinos – um espetáculo surpreendente e singular – chegando às raias do sublime. Assustadoramente famintas, devoravam uma bisnaga de pão com indescritível sofreguidão, e se o pedaço de pão estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente devorado com avidez”.”

 

       “Qualquer que fosse a verdadeira situação dos trabalhadores pobres, não pode haver nenhuma dúvida de que todos aqueles que pensavam um pouco sobre a sua situação, que aceitavam as aflições dos pobres como parte do destino e do eterno rumo das coisas – consideravam que o trabalhador era explorado pelo rico, que cada vez mais enriquecia, ao passo que os pobres ficavam ainda mais pobres. E que os pobres sofriam porque os ricos se beneficiavam. O mecanismo social da sociedade burguesa era profundamente cruel, injusto e desumano. “Não pode haver riqueza sem trabalho” escreveu o jornal Lancashire Co-operator. “O trabalhador é a fonte de toda a riqueza. Quem tem produzido todos os alimentos? O pobre e mal alimentado lavrador. Quem construiu todas as casas e armazéns, e os palácios, que pertencem aos ricos, que jamais trabalham ou produzem qualquer coisa? O trabalhador. Quem tece todos os fios e faz o tecido? As tecedoras e os tecelões.” Ainda assim “o operário continua pobre, ao passo que os que não trabalham são ricos e possuem abundância em excesso.”

      E o desesperado trabalhador rural (cujos ecos literários ainda se ouvem hoje em dia nas canções evangélicas dos negros americanos) se expressava com menos clareza, mas talvez de maneira mais profunda: se a vida fosse coisa que o dinheiro pudesse obter Os ricos viveriam e os pobres deveriam morrer.”

 

       “O movimento operário proporcionou uma resposta ao grito do homem pobre. Ela não deve ser confundida com a mera reação coletiva contra o sofrimento intolerável, que ocorreu em outros momentos da história, nem sequer com a prática da greve e outras formas de militância que se tornaram características da classe trabalhadora. Estes acontecimentos também têm sua própria história que começa muito antes da revolução industrial. O verdadeiramente novo no movimento operário do princípio do século XIX era a consciência de classe e a ambição de classe. Os “pobres” não mais se defrontavam com os “ricos”. Uma classe específica, a classe operária, trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões ou capitalistas. A Revolução Francesa deu confiança a esta nova classe; a revolução industrial provocou nela uma necessidade de mobilização permanente. Uma existência decente não podia ser obtida simplesmente por meio de um protesto ocasional que servisse para restabelecer a estabilidade da sociedade perturbada temporariamente. Era necessária uma eterna vigilância, organização e atividade do “movimento” – o sindicato, a sociedade cooperativa ou mútua, instituições trabalhistas, jornais, agitação. Mas a própria novidade e a rapidez da mudança social que os envolvia, encorajava os trabalhadores a pensar em termos de uma sociedade totalmente diversa, baseada na sua experiência e em suas ideias em oposição às de seus opressores. Seria cooperativa e não competitiva, coletivista e não individualista. Seria “socialista”, e representaria não o eterno sonho da sociedade livre, que os pobres sempre levam no recôndito de suas mentes, mas na qual só pensam em raras ocasiões de revolução social generalizada, e sim uma alternativa praticável e permanente para o sistema em vigor.”

 

       “Por sua vez, a tradição jacobina ganhou solidez e continuidade sem precedentes e penetração nas massas a partir da coesiva solidariedade e da lealdade que eram características do novo proletariado. Os proletários não se mantinham unidos pelo simples fato de serem pobres e estarem num mesmo lugar, mas pelo fato de que trabalhar junto e em grande número, colaborando uns com os outros numa mesma tarefa e apoiando-se mutuamente constituía sua própria vida. A solidariedade inquebrantável era sua única arma, pois somente assim eles poderiam demonstrar seu modesto, mas decisivo ser coletivo. “Não ser furador de greve” (ou palavras de efeito semelhante) era – e continuou sendo – o primeiro mandamento de seu código moral; aquele que deixasse de ser solidário tornava-se o Judas de sua comunidade. Uma vez que adquiriram uma fagulha mínima de consciência política, suas demonstrações deixaram de ser meras erupções ocasionais de uma “turba” exasperada, que se extinguiam rapidamente, e se converteram no rebulir de um exército.”

 

       “O movimento trabalhista foi uma organização de autodefesa, de protesto e de revolução. Mas para os trabalhadores pobres era mais do que um instrumento de luta: era também um modo de vida. A burguesia liberal nada lhes oferecia; a história arrancou-os da vida tradicional que os conservadores, em vão, se ofereciam para manter ou restaurar. Nada podiam esperar do tipo de vida para o qual eles eram crescentemente arrastados. Mas o movimento tinha a ver com este tipo de vida, ou melhor, a vida que eles mesmos criaram para si e que era coletiva, comunal, combativa, idealista e isolada implicava o movimento, pois a luta era a sua própria essência. E em troca o movimento lhe dava coerência e propósito. O mito liberal supunha que os sindicatos eram compostos de trabalhadores imprestáveis instigados por agitadores sem consciência, mas na realidade os imprestáveis eram os menos sindicalizados, enquanto que os mais inteligentes e competentes eram os mais firmes em seu apoio aos sindicatos.”

 

       “Deem-me um povo em que as paixões em ebulição e a ganância terrena sejam acalmadas pela fé, a esperança e a caridade; um povo que veja esta terra como uma peregrinação e a outra vida como sua verdadeira pátria; um povo ensinado a admirar e a acatar no heroísmo cristão sua própria pobreza e seu próprio sofrimento; um povo que ame e adore em Jesus Cristo o primogênito de todos os oprimidos, e em sua cruz adore o instrumento da salvação universal. Deem-me, digo eu, um povo assim moldado, e o socialismo não será somente derrotado com facilidade, mas será impossível mesmo que se pense nele…”

(Cilviltà Cattolica)

 

       “Este retorno à religião militante, literal e ultrapassada tinha três aspectos. Para as massas, era, principalmente, um método de luta contra a sociedade cada vez mais fria, desumana e tirânica do liberalismo da classe média: segundo Marx (mas ele não foi o único a usar tais palavras), era “o coração de um mundo sem coração, como é o espírito de um mundo sem espírito… o ópio do povo”. Mais do que isto: era uma tentativa de criar instituições políticas, sociais e educacionais em um ambiente que não proporcionava nenhuma delas, e um meio de dar às pessoas pouco desenvolvidas politicamente uma expressão primitiva de seus descontentamentos e aspirações. Seu literalismo, emocionalismo e superstição tanto protestavam contra toda uma sociedade em que dominava o cálculo racional, como contra as classes superiores que deformavam a religião em sua própria imagem.

      Para as classes médias vindas das massas, a religião podia ser um amparo moral poderoso, uma justificativa para sua existência social contra o desprezo e o ódio da sociedade tradicional, e um mecanismo de sua expansão. Quando sectaristas, a religião os libertava dos grilhões daquela sociedade. Dava a seus lucros um título moral maior do que o do mero interesse próprio racional; legitimava sua aspereza em relação aos oprimidos; unia-os ao comércio que proporcionava civilização aos pagãos, e vendas a seus produtos.

      A religião fornecia estabilidade social para as monarquias e aristocracias, e de fato para todos os que se encontravam no alto da pirâmide. Tinham aprendido com a Revolução Francesa que a Igreja era o mais forte amparo do trono. Os povos analfabetos e devotos, como os do sul da Itália, os espanhóis, os tiroleses e os russos tinham-se lançado às armas para defender sua igreja e seu governante contra os estrangeiros, os infiéis e os revolucionários, abençoados e, em alguns casos, liderados por seus sacerdotes. Os povos analfabetos e religiosos viveriam contentes na pobreza para a qual Deus os havia conclamado, sob a liderança de governantes que lhes foram dados pela Divina Providência, de maneira simples, digna e ordenadamente e imunes aos efeitos subversivos da razão. Para os governos conservadores depois de 1815 – e que governos da Europa continental não o eram? – o encorajamento dos sentimentos religiosos e das igrejas era uma parte tão indispensável da política quanto a organização da política e da censura: o sacerdote, o policial e o censor eram agora os três principais apoios da reação contra a revolução.

      Para a maioria dos governos estabelecidos, bastava que o jacobinismo ameaçasse os tronos e as igrejas os preservassem. Entretanto, para um grupo de intelectuais e ideólogos românticos, a aliança entre o trono e o altar tinha um significado mais profundo: o de preservar uma velha sociedade viva e orgânica contra a corrosão da razão e o liberalismo; o indivíduo encontrava nesta aliança uma expressão mais adequada de sua trágica condição do que em qualquer solução formulada pelos racionalistas.”

 

       “Os governos genuinamente conservadores se inclinavam a desconfiar de todos os intelectuais e ideólogos, até dos que eram reacionários, pois, uma vez aceito o princípio do raciocínio em vez da obediência, o fim estaria próximo.”

 

      “O argumento social da economia política de Adam Smith era tanto elegante quanto confortador. É verdade que a humanidade consistia essencialmente de indivíduos soberanos de certa constituição psicológica, que buscavam seus próprios interesses através da competição entre uns e outros. Mas poderia ser demonstrado que estas atividades, quando deixadas tanto quanto possível fora de controle, produziam não só uma ordem social “natural” (distinta da artificial imposta pelos interesses estabelecidos, o obscurantismo, a tradição ou a intromissão ignorante da aristocracia), mas também o mais rápido aumento possível da “riqueza das nações”, quer dizer, do conforto e do bem-estar, e portanto, da felicidade, de todos homens. A base desta ordem natural era a divisão social do trabalho. Podia ser cientificamente provado que a existência de uma classe de capitalistas donos dos meios de produção beneficiava a todos, inclusive aos trabalhadores que se alugavam a seus membros, exatamente como poderia ser cientificamente comprovado que os interesses da Grã-Bretanha e da Jamaica estariam melhor servidos se aquela produzisse mercadorias manufaturadas e esta produzisse açúcar natural.

     O aumento da riqueza das nações continuava com as operações das empresas privadas e a acumulação de capital, e poderia ser demonstrado que qualquer outro método de assegurá-lo iria desacelerá-lo ou mesmo estancá-lo. Além do mais, a sociedade economicamente muito desigual que resultava inevitavelmente das operações de natureza humana não era incompatível com a igualdade natural de todos os homens nem com a justiça, pois além de assegurar inclusive aos mais pobres condições de vida melhores, ela se baseava na mais equitativa de todas as relações: o intercâmbio de valores equivalentes no mercado. Como disse um moderno erudito: “nada dependia da benevolência dos outros, pois para tudo que se obtinha era devolvido, em troca, um equivalente. Além disso, o livre jogo das forças naturais destruiria todas as posições que não fossem construídas com base em contribuições ao bem comum”.

     O progresso era, portanto, tão “natural” quanto o capitalismo. Se fossem removidos os obstáculos artificiais que no passado lhe haviam colocado, se produziria de modo inevitável; e era evidente que o progresso da produção estava de braços dados com o progresso das artes, das ciências e da civilização em geral. Que não se pense que os homens que tinham tais opiniões eram meros advogados dos consumados interesses dos homens de negócios. Eram homens que acreditavam, com considerável justificativa histórica neste período, que o caminho para o avanço da humanidade passava pelo capitalismo. A força desta visão panglossiana apoiava-se não apenas naquilo que se acreditava ser a irrefutável habilidade de demonstrar seus teoremas econômicos através de um raciocínio dedutivo, mas também no evidente progresso da civilização e do capitalismo do século XVIII. Reciprocamente, começou a tropeçar não só porque Ricardo descobrira contradições dentro do sistema que Smith preconizara, mas porque os verdadeiros resultados sociais e econômicos do capitalismo provaram ser menos felizes do que tinham sido previstos. A economia política na primeira metade do século XIX tornou-se uma ciência “lúgubre” mais do que cor-de-rosa.

     Naturalmente, ainda se poderia sustentar que a miséria dos pobres que (como argumentou Malthus em seu famoso Ensaio sobre a População, de 1798) estava condenada a se prolongar até a beira da extenuação, ou (como argumentava Ricardo) a padecer com a introdução das máquinas, ainda se constituía na maior felicidade do maior número de pessoas, número que simplesmente resultou ser muito menor do que se poderia esperar. Mas tais fatos, bem como as marcantes dificuldades para a expansão capitalista no período entre 1810 e a década de 1840, refrearam o otimismo e estimularam a investigação crítica, especialmente sobre a distribuição em contraste com a produção, que havia sido a preocupação maior da geração de Smith.

     A economia política de David Ricardo, uma obra-prima de rigor dedutivo, introduziu assim consideráveis elementos de discórdia na natural harmonia em que os primeiros economistas tinham apostado. E até mesmo enfatizou, bem mais do que o tinha feito Smith, certos fatores que se poderia esperar que detivessem a máquina do progresso econômico, atenuando o suprimento de seu combustível essencial, tal como uma tendência para o declínio da taxa de lucros. E mais ainda, David Ricardo criou a teoria geral do valor como trabalho, que só dependia de um leve toque para ser transformada em um argumento potente contra o capitalismo. Contudo, seu domínio técnico como pensador e seu apaixonado apoio aos objetivos práticos que a maioria dos homens de negócios britânicos advogavam – o livre comércio e a hostilidade aos proprietários de terras – ajudaram a dar à economia política clássica um lugar ainda mais firme que antes na ideologia liberal.”

 

       “Os próprios argumentos do liberalismo clássico podiam e foram prontamente transformados contra a sociedade capitalista que eles tinham ajudado a construir. De fato, a felicidade, como dizia Saint-Just, era “uma ideia nova na Europa”, mas nada era mais fácil de observar que a maior felicidade do maior número de pessoas, que claramente não estava sendo atingida, era a felicidade do trabalhador pobre. Nem era difícil, como William Godwin, Robert Owen, Thomas Hodgskin e outros admiradores de Bentham o fizeram, separar a busca da felicidade das conjecturas de um individualismo egoísta. “O objetivo primordial e necessário de toda a existência deve ser a felicidade”, escreveu Owen, “mas a felicidade não pode ser obtida individualmente; é inútil esperar-se pela felicidade isolada; todos devem compartilhar dela ou então a minoria nunca será capaz de gozá-la.”

      Mais ainda, a economia política clássica em sua forma ricardiana podia virar-se contra o capitalismo, fato este que levou os economistas da classe média posteriores a 1830 a ver Ricardo com alarme, e até mesmo a considerá-lo, como o fez o americano Carey (1793- 1879), como fonte de inspiração de agitadores e destruidores da sociedade. Se, como argumentava a economia política, o trabalho representava a fonte de todo o valor, então por que a maior parte de seus produtores viviam à beira da privação? Porque, como demonstrava Ricardo – embora ele se sentisse constrangido em relação às conclusões de sua teoria – o capitalista se apropriava – em forma de lucro – do excedente que o trabalhador produzia além daquilo que ele recebia de volta sob a forma de salário. (O fato de que os proprietários de terras também se apropriassem de uma parte deste excedente não afetou fundamentalmente o assunto.) De fato, o capitalista explorava o trabalhador. Era necessário eliminar os capitalistas para que fosse abolida a exploração. Um grupo de “economistas do trabalho” ricardianos logo surgiu na Grã-Bretanha para fazer a análise e concluir a moral da história.

      Se o capitalismo tivesse realmente alcançado aquilo que dele se esperava nos dias otimistas da economia política, tais críticas não teriam tido ressonância. Ao contrário do que frequentemente se supõe, entre os pobres há poucas “revoluções de melhora do nível de vida”. Mas no período de formação do socialismo, isto é, entre a publicação da Nova Visão da Sociedade, de Robert Owen, lançado a público em 1813-14,9 e o Manifesto Comunista, de 1848, a depressão, os salários decrescentes, o pesado desemprego tecnológico e as dúvidas sobre as futuras possibilidades de expansão da economia eram simplesmente muito inoportunas. Portanto, os críticos podiam-se apegar não só à injustiça da economia, mas também aos defeitos de seu funcionamento, a suas “contradições internas”. Olhos aguçados pela antipatia detectavam, assim, as flutuações ou “crises” do capitalismo (Sismondi, Wade, Engels) que seus partidários dissimulavam, e cuja possibilidade, de fato, negava uma “lei” associada ao nome de J. B. Say (1767-1832). Dificilmente poderia deixar de advertir que a distribuição crescentemente desigual das rendas nacionais neste período (“os ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres”) não era um acidente, mas o produto das operações do sistema. Em poucas palavras, podiam demonstrar não só que o capitalismo era injusto, mas que parecia funcionar mal e, na medida em que funcionava, produzia resultados opostos aos que tinham sido preditos por seus defensores.

      Deste modo, os novos socialistas simplesmente se defendiam empurrando os argumentos do liberalismo clássico franco-britânico para além do ponto até onde os liberais burgueses estavam preparados para ir. A nova sociedade por eles defendida também não necessitava abandonar o terreno tradicional do humanismo clássico e do ideal liberal. Um mundo no qual todos fossem felizes e no qual todo indivíduo realizasse livre e plenamente suas potencialidades, no qual reinasse a liberdade e do qual desaparecesse o governo coercitivo era o objetivo máximo de liberais e socialistas. O que distinguia os vários membros da família ideológica descendente do humanismo e do iluminismo – liberais, socialistas, comunistas ou anarquistas – não era a amável anarquia mais ou menos utópica de todos eles, mas sim os métodos para alcançá-la. Neste ponto, entretanto, o socialismo se separava da tradição clássica liberal.

      Em primeiro lugar, rompia radicalmente com a suposição liberal de que a sociedade era um mero agregado ou combinação de seus átomos individuais, e que sua força motriz estava no interesse próprio e na competição. Ao fazer isto, os socialistas voltaram à mais antiga de todas as tradições ideológicas humanas: a crença de que o homem é naturalmente um ser comunitário. Os homens, naturalmente, vivem juntos e se ajudam mutuamente. A sociedade não era uma redução necessária, embora lamentável, do natural e ilimitado direito do homem de fazer o que lhe agradasse, mas o cenário de sua vida, felicidade e individualidade. A ideia smithiana de que o intercâmbio de mercadorias equivalentes no mercado garantia de alguma forma a justiça social lhes chocava como algo incompreensível ou imoral. A maior parte do povo comum compartilhava este ponto de vista mesmo quando não podia expressá-lo. Muitos críticos do capitalismo reagiram contra a óbvia desumanização da sociedade burguesa (o termo técnico “alienação”, que os seguidores de Hegel e o próprio Marx, no princípio de sua carreira, usavam, refletia o velho conceito de sociedade mais como o “lar” do homem do que como o simples local das atividades do indivíduo independente), culpando todo o curso da civilização, do racionalismo, da ciência e da tecnologia. Os novos socialistas – ao contrário dos revolucionários do tipo dos velhos artesãos como o poeta William Blake e Jean Jacques Rousseau – tiveram o cuidado de não agir desta forma. Mas partilhavam não só do tradicional ideal da sociedade como o lar do homem, mas também do conceito de que antes da instituição da sociedade de classes e da propriedade os homens tinham, de uma forma ou de outra, vivido em harmonia, conceito este expresso por Rousseau através, da idealização do homem primitivo, e também pelos panfletistas radicais menos sofisticados através do mito da antiga liberdade e irmandade dos povos conquistados por governantes estrangeiros – os saxônicos pelos normandos, os gauleses pelos alemães. “O gênio”, disse Fourier, “deve redescobrir os caminhos daquela primitiva felicidade e adaptá-la às condições da indústria moderna.” O comunismo primitivo buscava através dos séculos e dos oceanos um modelo a propor ao comunismo do futuro.

      Em segundo lugar, o socialismo adotou uma forma de argumentação que, se não estava fora do alcance da clássica tradição liberal, tampouco estava muito dentro dela: a argumentação histórica e evolutiva. Para os liberais clássicos, e de fato para os primeiros socialistas modernos, tais propostas eram naturais e racionais, distintas da sociedade irracional e artificial que a ignorância e a tirania tinham, até então, imposto ao mundo. Agora que o progresso e o iluminismo tinham mostrado ao mundo o que era racional, tudo o que restava a ser feito era retirar os obstáculos que evitavam que o senso comum seguisse seu caminho. De fato, os socialistas “utópicos” (seguidores de Saint-Simon, Owen, Fourier e outros) tratavam de mostrar-se tão firmemente convencidos de que a verdade bastava ser proclamada para ser instantaneamente adotada por todos os homens sensatos e de instrução, que inicialmente limitaram seus esforços para realizar o socialismo a uma propaganda endereçada em primeiro lugar às classes influentes – os trabalhadores, embora indubitavelmente viessem a se beneficiar com ele, eram infelizmente um grupo retrógrado e ignorante – e, por assim dizer, à construção de plantas-piloto do socialismo – colônias comunistas e empresas cooperativas, a maioria delas situada nos espaços abertos da América, onde não havia tradições de atraso histórico que se opusessem ao avanço dos homens. (…)

     Mas só depois que Karl Marx (1818-83) transferiu o centro de gravidade da argumentação socialista de sua racionalidade ou desejabilidade para sua inevitabilidade histórica, o socialismo adquiriu sua mais formidável arma intelectual, contra a qual ainda se erguem defesas polêmicas. Marx extraiu esta linha de argumentação de uma combinação das tradições ideológicas alemães e franco-britânicas (da economia política inglesa, do socialismo francês e da filosofia alemã). Para Marx a sociedade humana havia inevitavelmente dividido o comunismo primitivo em classes, inevitavelmente se desenvolvia através de uma série de sociedades classistas, cada uma delas “progressista” em seu tempo, a despeito de suas injustiças, cada uma delas contendo as “contradições internas” que, a certa altura, se constituem em obstáculo para o progresso futuro e geram as forças para sua superação. O capitalismo era a última delas, e Marx, longe de limitar-se a atacá-lo, usou toda a sua eloquência abaladora para proclamar seus empreendimentos históricos. Mas era possível demonstrar, por meio da economia política, que o capitalismo apresentava contradições internas que inevitavelmente o convertiam, até certo ponto, em uma barreira para o progresso e que haviam de mergulhá-lo em uma crise da qual não poderia sair.

     Além do mais, o capitalismo (como também se poderia demonstrar através da economia política), inevitavelmente criava seu próprio coveiro, o proletariado, cujo número e descontentamento crescia à medida que a concentração do poder econômico em mãos cada vez menos numerosas tornavam-no mais vulnerável, mais fácil de ser derrubado. A revolução proletária devia, portanto, inevitavelmente derrubá-lo. Mas também podia-se demonstrar que o sistema social que correspondia aos interesses da classe trabalhadora era o socialismo ou o comunismo. Como o capitalismo predominara, não só porque era mais racional do que o feudalismo, mas também devido à força social da burguesia, também o socialismo predominaria pela inevitável vitória dos trabalhadores. Seria tolice supor que este era um ideal eterno, o qual os homens poderiam ter realizado se tivessem sido suficientemente inteligentes na época de Luís XIV. O socialismo era o filho do capitalismo. Nem mesmo poderia ter sido formulado de uma maneira adequada antes da transformação da sociedade que criou as condições para seu advento. Mas, uma vez que essas condições existiam, a vitória era certa, pois “a humanidade sempre se propõe apenas as tarefas que pode solucionar”.”

 

       “O que determina o florescimento ou o esgotamento das artes em qualquer período ainda é muito obscuro. Entretanto, não há dúvida de que entre 1789 e 1848, a resposta deve ser buscada em primeiro lugar no impacto da revolução dupla. Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nesta época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o com seu exemplo, que a revolução industrial com seu horror, enquanto a sociedade burguesa, que surgiu de ambas, transformava sua própria experiência e estilos de criação.

     Neste período, sem dúvida, os artistas eram diretamente inspirados e envolvidos pelos assuntos públicos. Mozart escreveu uma ópera propagandística para a altamente política maçonaria (A Flauta Mágica em 1790), Beethoven dedicou a Eroica a Napoleão como o herdeiro da Revolução Francesa, Goethe foi, pelo menos, um homem de Estado e laborioso funcionário. Dickens escreveu romances para atacar os abusos sociais. Dostoievsky foi condenado à morte em 1849 por atividades revolucionárias. Wagner e Goya foram para o exílio político. Pushkin foi punido por se envolver com os dezembristas, e toda a Comédia Humana de Balzac é um monumento de consciência social. Nunca foi menos verdadeiro definir os artistas criativos como “não comprometidos”.”

 

       “Como se poderia encontrar uma expressão quantitativa para o fato, que hoje em dia poucos poderiam negar, de que a revolução industrial criou o mundo mais feio no qual o homem jamais vivera, como testemunhavam as lúgubres, fétidas e enevoadas vielas dos bairros baixos de Manchester? Ou, para os homens e mulheres, desarraigados em quantidades sem precedentes e privados de toda segurança, que constituíam provavelmente o mais infeliz dos mundos?”

 

       “O mundo da década de 1840 era completamente dominado pelas potências europeias, política e economicamente, às quais se somavam os Estados Unidos. A Guerra do Ópio de 1839-42 demonstrara que a única grande potência não europeia sobrevivente, o Império da China, estava inerte em face de uma agressão econômica e militar do Ocidente. Nada, ao que parecia, poderia obstar a invasão de canhoneiras ou de regimentos ocidentais que lhe traziam o comércio e as bíblias. E dentro deste domínio ocidental, a Grã-Bretanha era a maior potência, graças a seu maior número de canhoneiras, comércio e bíblias. A supremacia britânica era tão absoluta que mal necessitava de um controle político para funcionar. Não restavam quaisquer outras potências coloniais, exceto com a conivência britânica, e consequentemente não havia rivais. O império francês estava reduzido a umas poucas ilhas espalhadas e a algumas feitorias comerciais, embora estivesse no processo de se reabilitar no Mediterrâneo e na Argélia.

      Os holandeses, recuperados na Indonésia sob o olhar vigilante da nova feitoria britânica de Singapura, mal eram competidores; os espanhóis retinham Cuba, as Filipinas e algumas vagas pretensões na África; as colônias portuguesas estavam esquecidas. O comércio britânico dominava a Argentina, o Brasil e o sul dos Estados Unidos tanto quanto a colônia espanhola de Cuba ou as colônias britânicas na índia. Os investimentos britânicos tinham os seus mais fortes interesses no norte dos Estados Unidos ou em qualquer local que fosse economicamente desenvolvido. Nunca, em toda a história do mundo, uma única potência havia exercido uma hegemonia mundial como a dos britânicos na metade do século XIX, pois mesmo os maiores impérios ou hegemonias do passado tinham sido meramente regionais – como no caso dos chineses, dos maometanos e dos romanos. Desde então, nenhuma outra potência jamais conseguiu estabelecer uma hegemonia comparável, e nem há possibilidades de que isto venha a acontecer no futuro, já que nenhuma potência pôde nem poderá reivindicar para si o título de “oficina do mundo”.

      Contudo, o futuro declínio da Grã-Bretanha já era visível. Observadores inteligentes, mesmo nas décadas de 1830 e 1840, como Tocqueville e Haxthausen, já previam que o tamanho e os recursos potenciais dos Estados Unidos e da Rússia viriam a transformá-los nos gêmeos gigantes do mundo; dentro da Europa, a Alemanha (como previu Frederick Engels em 1844) logo viria também entrar na competição em termos iguais. Só a França havia decisivamente se retirado da competição pela hegemonia internacional, embora isto ainda não fosse evidente a ponto de dar garantias aos estadistas britânicos ou de outros países.

      Em poucas palavras, o mundo da década de 1840 se achava fora de equilíbrio. As forças de mudança econômica, técnica e social desencadeadas nos últimos 50 anos não tinham paralelo, eram irresistíveis mesmo para o mais superficial dos observadores. Por exemplo, era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, a escravidão ou a servidão (exceto nas remotas regiões ainda não atingidas pela nova economia, onde permaneciam como relíquias) teria de ser abolida, como era inevitável que a Grã-Bretanha não poderia para sempre permanecer o único país industrializado. Era inevitável que as aristocracias proprietárias de terras e as monarquias absolutas perderiam força em todos os países em que uma forte burguesia estava se desenvolvendo, quaisquer que fossem as fórmulas ou acordos políticos que encontrassem para conservar sua situação econômica, sua influência e sua força política. Além do mais, era inevitável que a injeção de consciência política e de permanente atividade política entre as massas, que foi o grande legado da Revolução Francesa, significaria, mais cedo ou mais tarde, um importante papel dessas mesmas massas na política. E dada a notável aceleração da mudança social desde 1830, e o despertar do movimento revolucionário mundial, era claramente inevitável que as mudanças – quaisquer que fossem seus motivos institucionais – não poderiam mais ser adiadas.

      Tudo isto teria sido o bastante para dar aos homens da década de 1840 a consciência de uma mudança pendente. Mas não o bastante para explicar o que se sentia concretamente em toda a Europa: a consciência de uma revolução social iminente. Era bastante significativo que essa consciência não se limitasse aos revolucionários, que a preparavam meticulosamente, nem às classes governantes, cujo temor das massas pobres é patente em tempos de mudança social. Os próprios pobres sentiam-na e as suas camadas mais cultas a expressavam, como escreveu o cônsul americano em Amsterdã durante a fome de 1847, relatando os sentimentos dos emigrantes alemães que passavam pela Holanda: “Todas as pessoas bem informadas expressam a crença de que a atual crise esta tão profundamente entrelaçada com os acontecimentos do atual período que ela não é senão o começo da grande Revolução, que eles consideram que, mais cedo ou mais tarde, venha a dissolver o atual estado de coisas”.” 

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