Mário e o folclore, por Walnice Nogueira Galvão

Muitas décadas após seu planejamento, o novo livro de Mário de Andrade "Aspectos do folclore brasileiro" sai pela Global, com todos os cuidados editoriais

Aquarela de Carlos Julião, que inspirou o ilustrador Mauricio Negro para a capa de ‘Aspectos do Folclore Brasileiro” | Foto: Reprodução

Mário e o folclore

por Walnice Nogueira Galvão

O elevado padrão de pesquisa mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP é visível na edição do novo livro de Mário de Andrade, Aspectos do folclore brasileiro, que permanecia inédito. Muitas décadas após seu planejamento e inclusão na lista preparada pelo autor para suas Obras Completas, sai pela Global, com todos os cuidados editoriais.

Para melhor avaliar esses cuidados, convem dar uma vista d´olhos nas realizações do IEB, concretizadas em seu Fundo Mário de Andrade, que há mais de meio século se consagra à organização e exploração do acervo deixado pelo escritor. O IEB foi formando equipes de especialistas e produzindo, a partir de sua prática e de sua reflexão, uma expertise com normas cada vez mais rigorosas que norteiam as edições. Quem comanda o Fundo é Telê Ancona Lopez, esteio e fonte de tudo isso (ver entrevista em Jornal GGN, 7.2.2013).

Mário, que morreria precocemente aos 51 anos, em 1945, deixou sua obra incompleta – e completá-la tem sido missão do Fundo. No supracitado plano de publicações, o presente livro, que nunca apareceu, ocupa o número 13.

Quando, por iniciativa de Antonio Candido, a USP adquiriu o acervo de Mário de Andrade em 1968, a aquisição incluiu a biblioteca de 17 mil volumes com anotações – a marginália -, as pinturas e telas, a coleção de arte popular, afora os papeis de seu arquivo pessoal, inclusive a correspondência. Até a máquina de escrever de Mário, que ele batizara de “Manuela”, foi parar lá. Tudo isso constituiu desde então o Fundo Mário de Andrade no IEB. A parte de artes visuais foi organizada por Marta Rossetti Batista e receberia dois maravilhosos catálogos, um para arte erudita e outro para arte popular, por ela preparados.

A parte de arquivo compreende ainda manuscritos seus e de outros escritores; recortes de jornais e revistas; fotografias; programas de teatro e de outros espetáculos; e até cardápios por vezes anotados. Não se podem esquecer as partituras e discos, pois Mário, além de pianista, era musicólogo e professor no Conservatório Musical de São Paulo.

Como os recursos não sobravam, a transferência foi concebida como uma operação de guerra. Houve santo barroco que viajou no colo, enrolado num cobertor, no carro do diretor do IEB.

Tanta pertinácia foi, ao longo do tempo, e com o suporte incansável da Fapesp, do CNPq e da CAPES, dando resultados.  Foram publicados cerca de meia dúzia de livros novos de Mário, desentranhados de seu acervo, entre os quais se destaca pela importância O turista aprendiz. Também saíram muitos volumes da correspondência, tarefa ainda em andamento. Isso sem falar nas dezenas e talvez centenas de teses que resultaram de pesquisas no arquivo, orientadas por seus professores.

Os novos termos e as novas exigências que a equipe vem desenvolvendo se materializaram em livros com esse nível de rigor. O presente volume pertence a uma coleção coordenada por Telê Ancona Lopez para a Global. Seguindo fielmente o plano de Mário, combina partes já publicadas com inéditos encontrados no Fundo. Tem três seções: I – “O folclore no Brasil”; II – “Estudos sobre o negro”; III – “Nótulas folclóricas”, estas num total de 19. Além do dossiê documental e da bibliografia raisonnée, completam o volume textos de especialistas escritos agora, destinados a atualizar a leitura. Uma apresentação registra o histórico do livro, enquanto um ensaio crítico sobre o folclorista e outro sobre o africanista aumentam nossa compreensão do porte e do alcance de Mário nessas áreas. Aliás, bem mais importantes a seu tempo do que hoje poderíamos supor, dada a ascensão de sua produção ficcional e poética a primeiro plano na estima atual, por vezes obscurecendo o restante.

Numa pasta, Mário juntava recortes impressos; anotações em retalhos de papel ou nas costas de envelopes; se fosse texto seu já publicado, rasurava por cima visando à reedição, adicionando observações e eliminando outras. A tudo isso acrescentava seus manuscritos. Em suma, um amontoado de papeis aparentemente incongruentes mas todos relacionados com o mesmo assunto. O novo livro dá uma boa visão do método de trabalho de um grande intelectual.


*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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Walnice Nogueira Galvão

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