No Maracanã o povo acendeu a pira funerário-política de Michel Temer

Ontem, durante a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, Michel Temer foi intensamente vaiado por mais tempo do que ficou ao microfone. Durante as vaias, que foram transmitidas em tempo real pelas redes de TV a mais de um bilhão de pessoas, a pira Olímpica foi poeticamente transformada numa pira funerário-política para o tirano que chegou ao poder por intermédio de um golpe de estado.

E já que estamos nos domínios da cultura grega, de onde extraímos três coisas fundamentais (poesia, democracia e olimpíadas) tomo a liberdade de transcreve a Ilíada e a Odisséia para tecer alguns comentários sobre o destino que a História reservará para Michel Temer.  

 

“Por nove dias é lenha infinita à cidade trazida;

e quando, ao décimo, a Aurora surgiu com seus dedos de rosa,

por entre lágrimas levam o corpo de Heitor valoroso,

sobre a fogueira o colocam e a chama incansável acendem.

Logo que a Aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina,

em torno à pira de Heitor vai-se o povo de Tróia reunido.

Quando ao chamado acudiram e todos se acharam  reunidos,

vinho brilhante lançaram nas brasas, com o fim de apagá-las,

té onde a força do fogo chegara. Os irmãos, em seguida,

e os companheiros de Heitor recolheram-lhe os cândidos ossos,

sempre a chorar, pelas faces correndo-lhes pranto amaríssimo,

e em urna de ouro, de rico lavor, os depõe cuidadosos,

a qual envolvem em mantos purpúreos, de fino tecido,

para a levarem, por fim, ao cavado sepulcro. Sobre este,

blocos de pedra, ajustados, colocam, e o túmulo, à pressa,

com muita terra, levantam, postando-lhe ao pé sentinelas,

para surpresa evitarem dos Dânaos de grevas bem feitas.

Logo que o túmulo pronto ficou, para o burgo retornam,

onde, reunidos, celebram solene banquete funéreo

dentro da régia de Príamo, o rei pelos numes nutrido.

Os funerais estes foram de Heitor, domador de cavalos.” (Ilíada, Homero, tradução Carlos Alberto Nunes, Ediouro, Rio de Janeiro, 2009, p. 548)

 

“Mas nesse instante achegou-se-nos a alma de Aquiles Peleio,

mais a de Pátroclo, como a do herói impecável Antíloco,

com a de Ajaz, que, em finura de traços e forte estatura,

era o mais belo dos Dânaos, depois do impecável Aquiles.

Reconheceu-me a alma logo de Aquiles, de pés muito rápidos,

e, com queixumes, me diz as palavras aladas:

“Filho de Laertes, de origem divina, Odisseu engenhoso,

que nova empresa, infeliz, mais ousada que as outras concebes?

Como até o Hades ousaste baixar, onde os mortos se encontram,

de consciências privados, quais vãos simulacros dos homens?

Isso me disse; em resposta lhe torno as seguintes palavras:

‘Ó nobre filho do Eácida, Aquiles, primeiro entre os Dânaos!

Vim, por me ser necessário pedir um conselho de Tirésias

sobre a maneira de em Ítaca alpestre chegar de tornada.

Ainda ao país dos Aqueus não fui ter, nem à pátria querida;

sim, continuo a vagar e sofrer. Mas ninguém, nobre Aquiles,

é tão feliz como tu, no passado e nos tempos vindouros.

Enquanto vivo, os Argivos te honrávamos, qual se um deus fosses;

ora que te achas no meio dos mortos, sobre eles exerces

mando inconteste. Não podes queixar-te da Morte, ó Pélida!’

Isso lhe disse; ele logo me volve as seguintes palavras:

‘Ora não venhas, solerte Odisseu, consolar-me da Morte,

pois preferiria viver empregado em trabalhos no campo

sob um senhor sem recursos, ou mesmo de parcos haveres,

a dominar deste modo os mortos aqui consumidos.” (Odisséia, Homero, tradução Carlos Alberto Nunes, Ediouro, Rio de Janeiro, 2009,  p. 203)

 

Comparado à pira de Heitor, que foi preparada e acesa com cuidado e amor na presença dos amigos e familiares do domador de cavalos, o poder absoluto sobre as almas conferido ao simulacro de Aquiles no Hades se torna bem mais odioso do que o próprio Pélida foi capaz de admitir a Odisseu. Os temas da amizade e do poder são evidentes nestes dois fragmentos.

Sentimento que aproxima os homens até nos momentos de luto, a amizade não pode ser comprada com dinheiro ou imposta pela força. Ela tem valor justamente porque é desinteressada e não pode ser avaliada. O poder, que domina as pessoas mediante subornos e ameaças, nunca terá o mesmo valor que a amizade. Uma liga as pessoas na alegria e na dor. O outro apenas distancia o que manda daquele que suporta o julgo.

A amizade é vida, o poder é morte. No fundo é isto que Aquiles diz a Odisseu ao afirmar que preferiria viver como empregado de um senhor sem recursos a dominar os mortos consumidos no Hades. Ele também diz a Odisseu outro coisa: que a vida que ele mesmo levou e que o levou a morrer em combate não tinha qualquer valor. A sutileza da poesia homérica é evidente. Quando estava vivo, Aquiles era implacável, violento, irrascível. A conduta dele em face de Agamemnon e dos troianos era uma negação do valor da amizade. Morto o simulacro dele nega inutilmente esta negação para que seu interlocutor (Odisseu) aprenda algo de útil enquanto ainda está vivo.

Michel Temer recebeu uma lição homérica no Maracanã. Homem apegado ao poder, ele foi capaz de trair Dilma Rousseff, de corromper o Senado e de pisotear a soberania popular para ficar num cargo para o qual não foi eleito. O interino não é capaz de ser “amigo do povo”, nunca terá do povo um enterro digno como o de Heitor. De fato, ele foi incinerado vivo pela TV diante de mais de um bilhão de pessoas no exato momento em que deveria estar no seu maior momento de glória.

A democracia se fez ouvir no Maracanã durante a abertura das Olimpíadas. Se o tirano e seus sequazes no Senado e no STF não ouvirem a mensagem muitos outras piras funerárias serão acesas no Brasil. Aqueles que querem dominar a nação contra a vontade do povo brasileiro podem acabar se lamentando no Hades como Aquiles. Mas eles nem mesmo conseguirão ter a mesma imortalidade poética que o Pélida que morreu sem conseguir saquear Tróia e aprendeu o valor da amizade (e da vida) quando não podia mais desfrutar o prazer deste sentimento.    

 
Fábio de Oliveira Ribeiro

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