O conhecimento não é um bem público, por isso educação não basta para o desenvolvimento econômico! Por Paulo Gala

A existência de fortes barreiras à difusão de tecnologias por meio da imposição de patentes torna, portanto, falaciosa a ideia de que o conhecimento seja um bem público

O conhecimento não é um bem público, por isso educação não basta para o desenvolvimento econômico!

por Paulo Gala e Andre Roncaglia

O conhecimento produtivo é o grande valor que um país tem, isso o torna rico. Esse conhecimento está nas empresas, marcas, tecnologias e patentes de propriedade de seu sistema produtivo. Isso nunca é transferido para os países emergentes, especialmente por multinacionais. Transferência tecnológica, conhecimento tácito e capacidades organizacionais: um dos obstáculos envolvidos no aprendizado tecnológico das nações diz respeito aos custos associados à assimilação das tecnologias transferidas de parceiros comerciais posicionados na fronteira tecnológica em seus respectivos setores. Amsden (2001, p. 29) redefiniu, à luz da experiência de “O resto”, que o desenvolvimento econômico pode ser redefinido como “um processo em que se passa de um conjunto de ativos baseados em produtos primários, explorados por mão-de-obra não especializada, para um conjunto de ativos baseados no conhecimento, explorados por mão-de-obra especializada. A transformação exige que se atraia capital tanto humano como físico da busca de renda, do comércio e da “agricultura” (definida em termos amplos) para as manufaturas, o coração do crescimento econômico moderno”. Os recursos tecnológicos que criam novos produtos e novas técnicas de produção constituem ativos “invisíveis” de uma empresa, como salientou Itami (1987). Esses ativos permitem que uma empresa venda abaixo dos custos dos concorrentes e acima de seus padrões de qualidade. Ademais, tais ativos são apropriáveis, intangíveis e, portanto, difíceis de copiar, gerando lucros anormais apoiados em rendas de monopólio conferidas aos seus proprietários. A existência de fortes barreiras à difusão de tecnologias por meio da imposição de patentes torna, portanto, falaciosa a ideia de que o conhecimento seja um bem público

Adicionalmente, Amsden (2001, p. 5) nos relembra que, mesmo na ausência de patentes, a natureza da própria tecnologia dificulta a aquisição de conhecimento. As propriedades de uma dada tecnologia não podem ser totalmente documentadas, de forma que a otimização do processo e a especificação do produto permanecem uma “arte”, dependendo de habilidades gerenciais que são mais tácitas do que explícitas. Khan (2019) mostrou recentemente o quão intricado e arredio é o processo de assimilação de conhecimento tecnológico, o qual pode ser assimilado pelo indivíduo ou por coletividades. No primeiro caso, o conhecimento formal codificado (alfabetização, conhecimento matemático e científico) pode ser necessário para adquirir habilidades específicas tácitas, associadas à prática profissional. Nesta última categoria encontra-se o conhecimento do tipo não-codificado, que se manifesta no “know-how” embutido em rotinas inconscientes e muitas vezes complexas que são compreendidas e internalizadas através da aprendizagem na prática. No plano do conhecimento compartilhado, Khan sugere um tipo específico de “hiato de conhecimento” que inibe a transformação estrutural conducente à maior competitividade: as capacidades organizacionais.

É portanto ilusório acreditar que a mera escolarização da população será capaz de elevar a produtividade ao níveis requeridos pela competitividade nos mercados internacionais. A transformação estrutural em tempos de acelerada evolução tecnológica requer uma estratégia de aprendizagem tecnológica eficaz. Para tanto, é preciso identificar os hiatos de conhecimento relevantes e as políticas que podem ser implementadas de maneira correta para lidar com essas deficiências. Nas palavras do próprio autor: “Não se trata apenas de produzir trabalhadores com níveis de ensino secundário ou superior em volume certo para atender às demandas projetadas. Esses trabalhadores também precisam ter o conhecimento adequado para poder operar competitivamente as tecnologias existentes e emergentes. Mais importante ainda, empresas bem organizadas precisam surgir para empregar essas pessoas com níveis de produtividade altos o suficiente para alcançar competitividade. A eficiência organizacional também se baseia no conhecimento, mas é de um tipo diferente. Não é o conhecimento que um indivíduo possui, mas o conhecimento que um grande número de indivíduos possui sobre como cooperar e coordenar efetivamente entre si dentro de uma organização. Sem este último, os investimentos em conhecimentos e habilidades codificados podem obter baixos retornos. A ausência de qualquer elemento pode eliminar potenciais retornos aos investimentos em outros tipos de conhecimento. Em particular, na ausência de empresas capazes de empregar trabalhadores de forma produtiva, os investimentos em educação e habilidades só podem resultar no surgimento de um grande número de pessoas desempregadas com grau de instrução e de habilidades (Khan, 2019, p. 42– tradução nossa)”. Portanto, organizações eficientes permitem aos indivíduos aproveitarem seu estoque de conhecimento formal e tácito de sorte a realizar plenamente seu potencial produtivo, bem como estes dois tipos de saber podem auxiliar na estruturação de organizações eficientes, capazes de aproveitar as externalidades e complementaridades estratégicas que caracterizam essas atividades. Trata-se de um tipo específico de “conhecimento coletivo”, distinto do conhecimento codificado e do know-how incorporado nos indivíduos. “Sem capacidades organizacionais apropriadas, os investimentos em outros tipos de conhecimento não conseguem obter retornos adequados” (Khan 2019, p. 42). Embora muitas empresas de países em desenvolvimento possam adquirir máquinas para muitas atividades básicas de produção e contem com razoável disponibilidade de trabalhadores qualificados, falta-lhes a capacidade de processar e operar articuladamente todos estes fatores para uma produção competitiva. Além de as tecnologias diferirem, sensíveis diferenças em termos de hierarquias sociais, padrões de trabalho coletivo, estruturas externas de governança e de controle tendem a variar sobremaneira.

Com efeito, uma vez compreendida esta dimensão da assimilação tecnológica, torna-se ingênua a crença na efetividade da simples transposição emulativa de estruturas organizacionais formais de outros contextos sociotécnicos. A aprendizagem coletiva envolve todos os níveis operacionais das firmas e é necessária para adaptar as funções de rotinas específicas para se adequar aos contextos locais. Como se não fosse difícil o suficiente, Khan (2019, p. 44) adverte que este processo de aprendizagem se torna mais complexo com produtos de maior sofisticação tecnológica, porque processos técnicos, de controle de qualidade e organizacionais mais complicados provavelmente estão envolvidos para obter resultados eficientes. O resultado é, por conseguinte, uma aprendizagem organizacional coletiva mais complexa, elaborada e gradual.

Referências 

ARTHUR, W., B. (2015), Complexity and the Economy, Oxford University Press, New York.

BRESSER-PEREIRA, L.,C., (2007) “Doenca holandesa e sua neutralizacao: uma abordagem ricardiana”, Revista Brasileira de Economica Politica, 28(1), pg47-71

__________________, (2007) The Dutch disease and its neutralization, a Ricardian approach. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 28, n. 1, jan./mar.

________; NAKANO, (2003) Crescimento com poupança externa? Revista de Economia Política, São Paulo, v. 23, n. 2, abr./jun.

CHANG, Ha-Joon (2003) “The East Asian development experience” in Rethinking Development Economics, Ha-Joon Chang (ed.), Anthem Press.

________. (2004). Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. Tradução: Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora UNESP.

CHERIF, Reda, Fuad HASANOV, and Alfred KAMMER (2016), “Lessons for Today and the Way Forward.” In Cherif, Reda, Fuad Hasanov, and Min Zhu (editors), Breaking the Oil Spell: The Gulf Falcons’ Path to Diversification. Washington, DC: International Monetary Fund Press.

CHERIF, Reda; HASANOV, Fuad (2019), The Return of the Policy That Shall Not Be Named: Principles of Industrial Policy, IMF Working Papers no. 019/74, March 26, 79 pp.

CIMOLI, M. (1992) Exchange rate and productive structure in a technological gap model. Economic Notes by Monte dei Paaschi di Siena, v. 21, n. 3.

CLEARY, Ekaterina Galkina, Jennifer M. Beierlein, Navleen Surjit Khanuja, Laura M. McNamee, Fred D. Ledley (2018) “Contribution of NIH funding to new drug approvals”, Proceedings of the National Academy of Sciences, March, 115 (10) 2329-2334; DOI: 10.1073/pnas.1715368115

FELIPE, J., et al (2011), “Product complexity and economic development”, in Structural Change and Economic Dynamics, Junho.

FURTADO, Celso (1998) O Capitalismo Global, 7ª. Ed. – Paz e Terra.

______. (1999) O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil, 2ª. Ed. – Paz e Terra.

GRAEBER, David (2018), Bullshit Jobs, New York : Simon & Schuster.

HARTMANN, Dominik; JARA-FIGUEROA, Cristian; KALTENBERG, Mary; GALA, Paulo (2019), “O espaço setorial-ocupacional revela a estratificação socioeconômica no Brasil” FGV EESP – Textos para Discussão / Working Paper Series, n. 506, Junho, 29 pp.

HAUSMANN, R. e HIDALGO, C., et al (2011), The Atlas of Economic Complexity, mapping paths to prosperity, Harvard Univ Press, Boston

HIDALGO, C., D. HARTMANNM.R. GUEVARAC. JARA-FIGUEROAM. ARISTARÁN,  (2015), “Linking Economic Complexity, Institutions and Income Inequality”, arXiv:1505.07907.

HIDALGO, C. A., B. KLINGER, A.-L. BARABÁSI, AND R. HAUSMANN, (2007) “The Product Space Conditions the Development of Nations”, Science 27 July, : 317 (5837), 482-487. DOI:10.1126/science.1144581

ITAMI, H. (1987). Mobilizing Invisible Assets. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

JOHNSON, N., F., (2007), Simply Complexity, a clear guide to complexity theory, Oneworld publications, Oxford.

KALDOR, N., (1966) Causes of the slow rate of economic growth of the United Kingdom. In: FURTHER essays on economic theory. New York: Holmes & Meier Publisher.

________, (1978) Further essays on economic theory. New York: Holmes & Meier Publisher.

KHAN, Mustaq H. (2019). “Knowledge, skills and organizational capabilities for structural transformation”. Structural Change and Economic Dynamics 48, p. 42–52.

KRUGMAN, P., FUJITA, e VENABLES (1999) The Spatial Economy, cities regions and international trade, MIT Press.

MARCONI, N. et al (2015) Industria e desenvolvimento produtivo no Brasil, Elsevier, ed FGV, São Paulo.

MAZZUCATO, Mariana (2014). O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público x setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin.

MILBERG, W.; WINKLER, D. (2013). Outsourcing Economics: Global Value Chains in Capitalist Development. Cambridge: Cambridge University Press.

MINCER, J. (1958). Investment in Human Capital and Personal Income Distribution. Journal of Political Economy, 66(4), 281-302.

NORTH, D., (1981) Structure and Change in Economic History, Norton, New York.

________ (1990) Institutions, Institutional Change and Economic performance, Cambridge University Press, Cambridge.

________ and Robert P. Thomas, (1973) The Rise of the Western World: A New Economic History, Cambridge University Press, Cambridge, 1973.

PALMA, G., (2005) “Gansos voadores e patos vulneráveis: a diferença da liderança do Japão e dos Estados Unidos no desenvolvimento do Sudeste Asiático e da América Latina ” in O poder americano, José Luis Fiori (org.), ed. Vozes, Petrópolis, RJ.

_________ , (2003b) “Four sources of de-industrialization and a new concept of the Dutch Disease”, in Ocampo, J.,A. (ed.) New Challenges for Latin American Development, ECLAC-World Bank.

PASINETTI, L., (1981) Structural change and economic growth – a theoretical essay on the dynamics of the wealth of nations. Cambridge: Cambridge University Press.

PRZEWORSKI, Adam. (2005). A última instância: as instituições são a causa primordial do desenvolvimento econômico?. Novos estudos CEBRAP, (72), 59-77. https://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002005000200004

PUGNO, M., (1996) A Kaldorian model of economic growth with labour shortage and major technical changes. Structural change and economic dynamics, 7.

RAINER K. & REINERT, E. (2010) “Modernizing Russia: Round III. Russia and the other BRIC countries: forging ahead, catching up or falling behind?,” The Other Canon Foundation and Tallinn University of Technology Working Papers in Technology Governance and Economic Dynamics 32, TUT Ragnar Nurkse School of Innovation and Governance.

RAINER K. & JAN A. KREGEL & ERIK S. REINERT, (2009) “The Relevance of Ragnar Nurkse and Classical Development Economics,” The Other Canon Foundation and Tallinn University of Technology Working Papers in Technology Governance and Economic Dynamics 21, TUT Ragnar Nurkse School of Innovation and Governance.

REINERT, E. (2008), How rich countries got rich and why poor countries stay poor, Public Affairs.

___________ (2010) “DEVELOPMENTALISM,” The Other Canon Foundation and Tallinn University of Technology Working Papers in Technology Governance and Economic Dynamics 34, TUT Ragnar Nurkse School of Innovation and Governance.

REINERT, S. (2011), Translating Empire, emulation and the origins of political economy, Harvard University Press.

REINERT, Erik S.; REINERT, Sophus A. (2011) ‘Mercantilism and Economic Development: Schumpeterian Dynamics, Institution Building and International

Benchmarking’, originalmente publicado em Jomo K. Sundaram and Erik S. Reinert (eds.), The Origins of Development Economics: How Schools

of Economic Thought Have Addressed Development, London: Zed Books, 2005, pp. 1-23.

ROCHA, I. L (2015), “Essays on Economic Growth and Industrial Development: A comparative analysis between Brazil and South Korea”, PhD Thesis, University of Cambridge.

RODRIK, D., (2004) “Growth Strategies”, John F. Kennedy School of Government, Harvard University, Draft, August.

RODRIK & HAUSMANN, (2013), “Economic Development as Self Discovery”.

SCHTEINGART, D. (2014), Estructura productivo-tecnológica, inserción internacional y desarrollo, Tesis de Maestría en Sociología Económica, IDAES-UNSAM”.

TAYLOR,L., (2004) Reconstructing Macroeconomics, Structuralist Porposals and Critiques of the Mainstream, Harvard University, Cambridge Massachusetts.

WADE, R., (1990) Governing the market, economic theory and the role of government in East Asian industrialization, Princeton University Press, Princeton.

Redação

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. É importante salientar que a educação per si, não reúne os pré-requisitos para catapultar um país da periferia do capitalismo como o Brasil a condição de potência econômica. Convém, discorrer que os países centrais promoveram as reformas clássicas do capitalismo: agrária, tributária e social, além das Revoluçoes Burguesas que contribuíram para ao sistema educacional correlato com o desenvolvimento dessas nações. Entretanto, a educação e vendida como um fetiche no Brasil, pois a maioria dos diplomas tem pouco valor no mercado, o segmento de trabalho que mais cresceu foi o padrão Uber, Ifood, Rappi. Tem milhares de trabalhadores com curso superior atuando neste segmento de labor precário.

  2. Excelente texto.
    Procurem a diferença entre as palavras de origem inglesa: “Knowledge” e “Knowhow”, assim vocês acharão a síntese do texto acima.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador