A guerra invisível: O Labirinto da Desinformação e seus Efeitos na Democracia, por Reynaldo Aragon Gonçalves

Como think tanks, fundações e ONGs manipulam percepções e criam ambiente de medo e desconfiança nas duas primeiras décadas do século XXI

Foto de Markus Winkler via pexels.com

A guerra invisível: O Labirinto da Desinformação e seus Efeitos na Democracia

Por Reynaldo Aragon Gonçalves*

O Brasil se tornou um laboratório global de operações psicológicas onde a desinformação e dentro do espectro da guerra cultural são usadas para desestabilizar governos e polarizar a sociedade. Este artigo reflete sobre como think tanks, fundações e ONGs manipulam percepções, criando um ambiente de medo e desconfiança nas duas primeiras décadas do século XXI.

Nos últimos anos, a expressão operações psicológicas (psyops) tem ganhado notoriedade em diversos setores da sociedade brasileira. Pesquisadores, jornalistas, professores e ativistas passaram a se preocupar com um fenômeno que, embora pareça recente, na verdade possui raízes profundas na história das civilizações.

Desde as primeiras disputas de poder, manipular percepções e emoções sempre foi uma estratégia eficaz de controle social. No entanto, a partir do século XX, essas operações passaram a ser formalizadas com técnicas cada vez mais sofisticadas, especialmente no campo militar e político, ganhando contornos metodológicos e intervencionistas que passaram a moldar a realidade contemporânea.

Operações psicológicas ou psyops[1], sigla em inglês, são estratégias deliberadas voltadas à manipulação da percepção, emoção e comportamento de indivíduos ou grupos sociais. Essas operações envolvem a disseminação de estímulos diversos, como no caso de informações cuidadosamente selecionadas – verdadeiras, distorcidas ou falsas – com o objetivo de influenciar a opinião pública e moldar decisões políticas e sociais.

Governos, setores da mídia, think tanks e organizações com grande poder econômico utilizam estímulos condicionantes – como o medo, o moralismo ou a esperança – para criar narrativas que reforçam certos padrões de pensamento e comportamento. Esses estímulos são frequentemente direcionados a sistemas de crenças profundamente enraizados na sociedade, como a moralidade, a identidade nacional e as expectativas sociais.

Por exemplo, o medo é utilizado para acentuar percepções de insegurança e ameaças externas, promovendo uma visão de mundo onde a igreja e seus ethos moral, são vistos como os únicos salvadores, legitimando intervenções autoritárias. O moralismo, por sua vez, alimenta a noção de que determinadas classes ou grupos são moralmente superiores, justificando políticas de exclusão e a marginalização de vozes dissidentes.

Já a esperança é manipulada para promover promessas de mudança, mas muitas vezes serve para distrair e desviar a atenção dos problemas sistêmicos, reforçando a adesão a agendas que não necessariamente atendem às necessidades reais da população.

Através da repetição e da amplificação desses estímulos em diversas plataformas, a construção de narrativas se torna um mecanismo eficaz de controle social, moldando não apenas a percepção, mas também as ações e reações da sociedade em relação às políticas e instituições.

A repetição dessas mensagens, amplificada por canais midiáticos e digitais, condiciona a resposta emocional do público e fortalece ideias específicas, enquanto enfraquece discursos divergentes. No Brasil, esse tipo de estratégia vem sendo usado para polarizar a sociedade, canalizando emoções como medo, ódio ou indignação para objetivos políticos e econômicos que beneficiam determinados grupos de poder.

No Brasil, desde 2005, tais práticas assumem um papel central nas disputas pelo poder, revelando o país como um dos maiores laboratórios globais dessa guerra invisível. Com a saída do Brasil das negociações da ALCA e a adoção de políticas públicas soberanas, teve início uma onda coordenada de operações psicológicas, inserida no espectro da guerra cultural e, mais tarde, da guerra híbrida.

O objetivo foi desestabilizar um governo nacionalista e desenvolvimentista que promovia uma agenda de inclusão social e reforço da soberania econômica. Uma das principais características dessa ofensiva foi o uso estratégico de think tanks, ONGs e fundações como vetores da guerra cultural[2][3][4].

Organizações como o Instituto Millenium, fundado em 2005, tiveram um papel crucial na disseminação de um discurso neoliberal e anti social, apresentando o Estado como ineficiente e promovendo a austeridade fiscal. Inspirado em modelos estrangeiros, o Instituto Millenium não apenas moldou a narrativa midiática, mas também orientou líderes políticos e empresariais em torno de uma agenda de mercado.

Muitas pesquisas acadêmicas já demonstraram a participação ativa de ONGs, think tanks e fundações na promoção de agendas políticas e econômicas específicas no Brasil e na América Latina. Estudos publicados por publicações acadêmicas nacionais e internacionais demonstram como essas organizações operam em rede, influenciando narrativas públicas e decisões governamentais por meio de relatórios, campanhas de desinformação e lobby político, sempre alinhadas a interesses neoliberais e geopolíticos globais.

Outra peça importante desse quebra-cabeça é a atuação da Atlas Network, uma rede internacional de think tanks com influência direta em vários países da América Latina, incluindo o Brasil. A Atlas Network, em parceria com instituições como o Instituto Millenium[5], ajudou a estruturar um discurso de oposição às políticas sociais e soberanas do governo brasileiro, promovendo ideias de privatização e desregulamentação.

Esse alinhamento com a lógica neoliberal fortaleceu setores empresariais e políticos que se beneficiaram com o enfraquecimento do papel do Estado. Paralelamente, instituições como a Heritage Foundation, com sede nos Estados Unidos, e a Transparência Internacional[6] contribuíram para a narrativa de desestabilização política no Brasil através da promoção do pânico moral, em especial com denúncias, na maioria das vezes infundadas, sobre corrupção no Governo Lula.

Enquanto crimes financeiros e escândalos de setores privados eram subestimados ou ignorados, a corrupção foi associada exclusivamente ao governo federal e ao Partido dos Trabalhadores, alimentando a ideia de que o Estado era intrinsecamente corrupto.

Essa narrativa, reforçada pela mídia e amplificada por campanhas digitais, ajudou a construir um inimigo interno e pavimentou o caminho para a judicialização da política. Essas fundações e think tanks operaram como uma frente organizada, difundindo relatórios, pesquisas e análises com viés ideológico, moldando a opinião pública e capturando o debate político.

A atuação dessas organizações faz parte de uma estratégia de guerra híbrida, na qual a manipulação da informação se combina com outras táticas de desestabilização – como campanhas judiciais, pressão midiática e mobilização de protestos – para atingir objetivos políticos e econômicos.

Esse processo de desgaste e desconstrução do governo desenvolvimentista, iniciado em 2005, evoluiu ao longo dos anos, culminando na consolidação de um projeto político autoritário em 2018. As operações psicológicas e a guerra cultural serviram para minar a confiança na democracia e fomentar o ódio de classes, instrumentalizando a desinformação e o moralismo como armas poderosas.

A decisão do Brasil de rejeitar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), liderada pelos Estados Unidos, foi um ponto de inflexão que desencadeou uma onda de desestabilização política e econômica.

O projeto da ALCA visava integrar as economias do continente sob uma lógica de livre mercado, beneficiando as grandes potências e enfraquecendo a soberania dos países latino-americanos. A saída do Brasil do acordo foi vista como uma ameaça aos interesses hegemônicos, principalmente porque o governo Lula assumiu uma postura soberanista, fortalecendo alianças regionais e ampliando sua autonomia política e econômica.

Esse movimento foi um dos primeiros atos de confronto contra a agenda neoliberal global, gerando resistência de setores que dependiam da inserção subordinada do Brasil na economia internacional. Logo após a ruptura com a ALCA, em 2005, a Crise dos Correios surgiu como um marco simbólico das operações psicológicas no Brasil.

A denúncia de corrupção na estatal foi amplamente explorada pela mídia, inaugurando uma narrativa que associava o governo federal a esquemas ilícitos e má administração. A cobertura intensa e contínua dos escândalos foi usada para criar uma crise de percepção, onde cada falha do governo era amplificada para fomentar desconfiança e deslegitimar o projeto político desenvolvimentista.

Essa tática, típica das operações psicológicas, buscava minar a confiança da sociedade nas instituições públicas, apresentando o governo como corrupto e incapaz de administrar o Estado.

A partir desse momento, operações psicológicas voltadas à criação de inimigos internos começaram a ser estruturadas de maneira sistemática. A corrupção, um problema estrutural e histórico no Brasil, foi transformada em um instrumento ideológico seletivo, explorado para atacar apenas o governo federal e seus aliados.

A mídia tradicional, think tanks como o Instituto Millenium e grupos conservadores passaram a articular uma narrativa moralista, simplificando problemas complexos e mobilizando a opinião pública contra figuras específicas do governo e da esquerda. Esse discurso moralista foi combinado com elementos de anticomunismo, apresentando políticas sociais e desenvolvimentistas como ameaças à ordem e aos “valores tradicionais” da sociedade brasileira.

Embora o comunismo não representasse um perigo real para estas elites, ele foi ressuscitado como um espectro político, utilizado para alimentar o medo e justificar ataques contra lideranças progressistas. Esse moralismo estratégico condicionava as emoções do público, provocando indignação seletiva e direcionada, enquanto práticas corruptas de elites privadas e opositores eram minimizadas ou ignoradas.

Think tanks e organizações internacionais, como a Atlas Network e a Heritage Foundation, desempenharam um papel fundamental nesse processo. Essas instituições forneceram não apenas suporte financeiro e intelectual, mas também estratégias de comunicação e marketing político, orientando lideranças conservadoras no uso da desinformação e da infodemia como armas psicológicas.

Em campanhas de operações psicológicas, criar uma narrativa clara de bem contra mal é essencial para modular o comportamento da sociedade, e a polarização política foi intensificada com essa finalidade. A construção do inimigo interno também serviu para justificar um maior controle sobre as manifestações da sociedade civil e pavimentou o caminho para campanhas judiciais e midiáticas.

Ao combinar moralismo, anticomunismo e denúncias seletivas de corrupção, essas operações conseguiram modular a opinião pública em um cenário de guerra cultural contínua. As pessoas, bombardeadas por informações manipuladas e narrativas simplificadas, passaram a reagir emocionalmente em vez de racionalmente, criando uma divisão profunda e duradoura na sociedade brasileira.

As operações psicológicas no Brasil têm raízes profundas e continuam a se manifestar de forma intensa até os dias atuais. O escândalo do Mensalão, ocorrido em 2005, não apenas marcou uma nova fase de desestabilização política, mas também deu início ao uso de lawfare como estratégia para deslegitimar adversários. Nesse contexto, a disseminação massiva de desinformação criou uma verdadeira infodemia, confundindo o público e minando a confiança nas instituições, consolidando a ideia de que o governo representava uma ameaça à moralidade pública. Historicamente, as operações psicológicas não são novas no Brasil.

Durante a ditadura militar de 1964, think tanks conservadores, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), utilizaram táticas de manipulação para justificar o golpe. Hoje, essas estratégias foram adaptadas ao ambiente digital, com redes sociais e mídias alternativas, amplificando o uso do medo e da confusão para enfraquecer a democracia e moldar crenças e emoções na população.

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 consolidou um modelo de governo que faz uso permanente de operações psicológicas. O Bolsonarismo institucionalizou a desinformação e a polarização, transformando a mentira e o revisionismo histórico em ferramentas centrais de sua governança. A construção de inimigos imaginários e a negação da ciência agravam a fragmentação social e solidificam uma base ideológica radicalizada, perpetuando o ciclo de manipulação.

Superar essa guerra invisível requer um esforço conjunto da sociedade civil, com um público informado e crítico, além de ecossistemas mídia comprometidos com a qualidade da informação. É fundamental restaurar a confiança nas instituições democráticas e promover um debate público saudável, essencial para a construção de um Brasil mais soberano e justo.

Contudo, essa tarefa não recai apenas sobre os ombros da sociedade civil; as instituições de Estado e os governos soberanistas têm um papel crucial a desempenhar. É imperativo que esses atores compreendam a importância das operações psicológicas como estratégias de guerra em um mundo cada vez mais conflagrado, onde as técnicas de manipulação da informação são empregadas com crescente frequência. A desinformação e a construção de narrativas adversas não são fenômenos isolados, mas táticas calculadas que visam desestabilizar governos e enfraquecer a democracia.

Portanto, faz-se necessário que se invista de forma contundente em pesquisas que se debruçam sobre esse problema, abordando-o de maneira séria, objetiva e soberana. A promoção de estudos acadêmicos, investigações e análises críticas sobre as operações psicológicas permitirá a criação de ferramentas e estratégias de defesa mais eficazes.

Somente por meio desse comprometimento com a verdade e a transparência será possível fortalecer as bases da democracia e assegurar a soberania do Brasil em um cenário global repleto de desafios.

É hora de agir, para que o país não apenas enfrente, mas também vença essa guerra invisível.


[1] A Guerra Neocortical

[2] Conexões ultraliberais nas Américas o think tank norte-americano Atlas Network e suas vinculações com organizações latino-americanas – Kátia Baggio.pdf

[3] Repositório Institucional da UFPB: Os think tanks e a importação do ideário ultraliberal: estudo de caso sobre a Atlas Network e institutos parceiros no Brasil

[4] O_boom_das_novas_direitas-libre.pdf

[5] Complexo IPES/IBAD, 44 anos depois: Instituto Millenium? | Revista Aurora

[6] A Comunicação Política depois do Golpe: notas para uma agenda de pesquisa | Compolítica

* Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, diretor da Rede Conecta de Inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática e pesquisador associado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT – DSI).

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3 Comentários

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  1. “…Superar essa guerra invisível requer um esforço conjunto da sociedade civil, com um público informado e crítico, além de ecossistemas de mídia comprometidos com a qualidade da informação.” Aqui acabou a validade do artigo, até então com um diagnóstico histórico bem amparado na lucidez, mas que envereda pelo otimismo irracional na terapêutica do problema. É sobejamente conhecido que o mundo editorial, que de fato governa a divulgação e disseminação de informações na mídia hegemônica, tem lado e alinha-se aos interesses dominantes. Esperar por um ecossistema de mídia “comprometido com a qualidade de informação”, capaz de criar um “público informado e crítico”, propõe algo tão inverossímil quanto esperar pela fada do dente. Não consigo mais ter tanto otimismo com o Brasil, acho mais provável chegarmos a uma teocracia do que atingirmos um esclarecimento tamanho. Infelizmente…

  2. Muito oportuno artigo. Precisa considerar as articulações dessas entidades com a mídia capitalista corporativa (GLOBO) e fundamentalista ou religiosa!!! (Aborto e outros temas)
    Democracia é um projeto frágil!!!!

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